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315 estórias

Sunday, September 30, 2012

O Orfeão Colegial


Comandante Guélas
Série Colégio Militar

O dia era de festa, 3 de março, e as vozes da elite do Colégio Militar preparavam-se para esgalhar na ampla nave central do Mosteiro dos Jerónimos. Em frente do padre Miguel Carneiro, especialista na formação e ensaio de grupos corais, mais conhecido por Carioca, perfilhava-se uma mão cheia de Meninos da Luz com farda de gala, tendo a seus pés um espaço sobrelotado de familiares e amigos a perder de vista, que tinham passado a manhã a assistir ao desfile militar dos dezasseis pelotões das quatro companhias do Batalhão Colegial. Quando as mãos do maestro se elevaram, as gargantas contraíram-se e deu-se início ao Hino Nacional. A “Portuguesa” ecoou pelo edifício encomendado por D. Manuel I, e até os pombos ficaram em sentido perante o espectáculo, com a primeira voz no red line, perto do limite do ruído permitido por lei, a segunda com decibéis normais e a terceira, a da elite da elite, a única audível, para onde só iam aqueles que já apresentavam uma quantidade de pêlos apreciáveis. A plateia já estava em transe, só comparável aos espectáculos do Tony Carreira, quando após o “marchar, marchar” o silêncio voltou a ouvir-se. Mas foi por pouco tempo! Todos se puseram de pé e aplaudiram durante algum tempo aqueles canários fardados de pano. Na entrada, longe da confusão, o 125 (Horrível), o 191 (Peidão), o 668 (Peida Gorda) e o 601 (Gordini) aproveitavam para agradecerem a todos os santos por terem sido recambiados, logo na primeira audição, para a ralé do Orfeão do Colégio Militar, o Canto Coral, que os dispensava de todas as aulas e, por consequência, de todas as festas, era uma espécie de paraíso, quando comparado com o inferno das três vozes. Mas não se afastavam muito do local dos ensaios, que decorriam à porta fechada com os “atletas” a cantarem de pé. E um dia até viram o 652 (Xoxo) a ser posto fora do ensaio à chapada, depois de ter alterado a letra duma canção. Quando a porta se fechou, e se ouviram os canários fardados de cotim retomar a atividade, o Zacarias (666) correu para ela e deu-lhe dois valentes biqueiros, que se sobrepuseram à mais potente voz alguma vez ouvida, a terceira, alterando, a frio, os planos do Carioca, alcunha herdada do seu antecessor, o maestro Jaime da Silva que, durante 28 anos (entrou em 1930) fez esgalhar as goelas dos Meninos da Luz. De imediato as portas abriram-se com estrondo, e de lá saiu um professor à beira de um ataque de nervos, e com um sprint de fazer inveja ao Usain Bolt. O 320 (vaca), que ia a passar, achou por bem fugir para sua segurança, levando no seu encalço um docente com vontade de esganar o primeiro Menino da Luz a que conseguisse deitar a mão. Ao longe, junto ao campo de futebol de 11 o coro era outro:
-  Ó Carioca lambe-me a pichota!
- Ó Carioca tira a mão da minhoca!
A organização do Orfeão do Colégio Militar não é consensual, há quem diga que havia duas primeiras e segundas vozes, seguidas de uma terceira e quarta, acabando no canto coral; ou uma primeira, uma segunda e outra segunda, mais grave, seguida das restantes, terceira, quarta e…canto-coral. Só o “paraíso” é que é comum às duas versões!

Voltemos ao Mosteiro dos Jerónimos. Depois da cena de histeria veio a bonança, e o padre Miguel Carneiro tornou a virar-se para os seus pupilos levantando as mãos. O que é que iria ser cantado naquele espaço mandado erguer por um rei para homenagear o regresso da Índia do grande navegador Vasco, carregadinho de especiarias, cujo dinheiro da venda foi direitinho para os bolsos dos governantes, um costume que ainda se mantém nos dias de hoje. Seguiu-se o Hino do Colégio, também a quatro vozes, que mais uma vez arrepiou os pêlos da assistência, seguido de uma música castelhana com variante medieval. Atingiu-se assim o clímax no espaço onde repousava o poeta Luís, e o Carioca virara-se em pose triunfal para a assistência. Até onde iria o talento destes jovens estudantes do Colégio Militar, escolhidos a dedo para emprestarem a sua voz ao Orfeão Colegial? A resposta veio com as cancões seguintes, “Minha Amora Madurinha”, “Ó cigarra, cigarrinha” e “Pedro, Tiago e João num barquinho”.Uns anos mais tarde, e já graduado, o Dáni convenceu, nesta fase dos festejos, uma mãe dum rata a prolongar a festa pela noite dentro! 


 

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