Comandante Guélas
Série Colégio Militar
No Spell e King as tochas eram feitas com os cadernos
e as cábulas dos finalistas, os graduados faziam o “balanço do ano lectivo” com
os sucessores, e entregavam-lhes a relíquia que só poderia ser usada quando
tivessem as divisas nos ombros: um molho de chaves que dava acesso a todos os
recantos do Colégio Militar! A todos? A todos, não! A missão dos novos responsáveis
era juntarem mais algumas, para que a próxima geração conseguisse chegar ainda mais
longe. E uma delas foi longe demais!
A noite ainda era uma menina, mas o Zimbório já estava às
escuras. De vigilantes nem sinal, e os praças destacados para vigiar o paiol
que, segundo a lenda, se situava por baixo dos claustros, roncavam noutro
local. O oficial de dia mantinha a tradição, vigiava dormindo, lá para os lados
das companhias, que o digam o 191, o Horrível, o 224 e o
Vinasse, que tantas vezes deslocaram o canhão das fotos da praxe para
junto da janela aberta do gabinete, por onde entrava o cano que ficava sempre
colado à cabeça do dorminhoco. A fúria era geralmente muita, não se sabe se por
bater com o coco no dito, após monumental cagaço, ou por não ser capaz de pôr
no lugar, sozinho, o mais rapidamente possível, a prova da sua desatenção. Quando
o Rato rodou a maçaneta da porta do Diretor ela abriu-se, sinal de que no
molho das chaves que tinham sido colecionadas ao longo de muitos anos, num
penoso trabalho de formiga, constava agora a do gabinete do chefe máximo. O
facto assemelhava-se à conquista do Evereste, pela primeira vez alguém ousava
penetrar no local mais inexpugnável do Colégio Militar, sem ser obrigado ou
convidado. O Peidão já tinha lá estado, devido à primeira opção, para
tomar conhecimento da sua pena de detenção durante a primeira semana das férias
da Páscoa, um segundo castigo para um só “crime”, porque o primeiro já tinha
sido aplicado umas semanas antes na primeira companhia, após o jantar, em
sentido em frente ao grupo de execução constituído por três graduados, que
tinha sido incumbido de aplicar a pena de várias festinhas cada um, bem aviadas
como era tradição, e tudo isto porque durante o último tempo letivo do dia
anterior fora encarregue de manter a disciplina do 1º E (turma que aparecera por geração espôntanea no segundo período, constituída por 6 alunos do 1º A, 7 do 1º B, 7 do 1º C e 6 do 1º D) devido à falta do
professor, e o oficial de dia, o tenente Aparício, ameaçara-o de umas bordoadas,
bem aviadas como também era tradição, caso ouvisse barulho, coisa que o 289
insistiu em fazer, tendo sido castigado com um banho de Óleo de Fígado de
Bacalhau, remédio da moda, presente em cápsulas na maioria das carteiras.
Quando chegou à Companhia o 413 sentiu-lhe o cheiro a texugo, e no
momento em que se preparava para arriar-lhe por “javardice”, o Stratopel, que
tinha entrada por cunha por ser desaparafusado, contou-lhe ter sido vítima de “bullying farmacêutico”.
- Um ato grave de barbárie, - disse o graduado aos colegas.
- O puto tinha tantos atos legais à disposição, firmeza,
murros, biqueiros, chapadas, mas foi logo escolher uma pena que atenta contra
os Direitos Humanos Colegiais! – Interveio o 434.
- Merece pena máxima e execução imediata, - gritou o Piscas.
- Óleo de fígado de bacalhau? Isto é um insulto às tradições
colegiais! – Exclamou o 413.
Acusação:
“despotismo”! Pena: “ação de…despotismo”! E o Diretor achou que a visita de
cortesia do réu ao Hospital Militar tinha sido irrelevante e, depois de mostrar
aos pais todos os seus diplomas que o confirmavam como um chefe justo, toma lá
mais um castigo! Eram assim as regras, e não consta que o Peidão tenha
ficado traumatizado. A festa estilo árabe ficou-lhe entranhada nas memórias,
para mais tarde recordar, principalmente quando dava de caras com meninos traumatizados
por lhe terem roubado um Bolicao, e que eram capas de jornais. Mas voltemos ao
Zimbório, mais propriamente ao gabinete do Diretor. Os heróis, que em vez de
terem ido divertir-se para o “Ricochete”, o café da zona, após terem sido
autorizados pelo graduado do pelotão a encetarem uma fuga, que começava nas
janelas altas da zona dos lavatórios, tinham-se arriscado a penetrar na única zona
que nem em pensamentos alguém ousara entrar, desde a fundação. E como prova do
feito, trouxeram umas estrelas que estavam em cima de um altar, dentro de um
pequeno recipiente destinado às hóstias, que foram guardadas numa caixa de
costura dourada, parte integrante do enxoval colegial. Quando no dia seguinte o
Diretor se preparava para colocar as ditas de prata, uma prenda da filha, e só apalpou
o pó do gabinete, sentiu de imediato o fluxo sanguíneo dilatar-lhe as veias, os
movimentos cardíacos e respiratórios aceleraram-se, os músculos contraíram-se,
a boca entreabriu-se, o rosto ruborizou-se, os dedos grandes dos pés
reviraram-se, foi envolvido por súbitos clarões, fragmentos curtos de
relâmpagos, fantasmas reais, que o transformaram a preto e branco, com muito
grão, num espectro psicótico.
- Mayday, red alert! – Gritou o chefe máximo desesperado.
Pôs o Colégio em "DEFCOM 1”
e mandou formar o batalhão. Estavam suspensas as saídas até os responsáveis lhe
devolverem as estrelas que tanta graxa…, perdão, trabalho, lhe tinham custado.
No íntimo apetecia-lhe aplicar uma firmeza geral, pô-los de cócoras até ao
nascer do sol, altura em que os rabos já estariam tão vermelhos como os dos
babuínos devido às biqueiradas sem fim; ou uma apresentação à alvorada no seu
gabinete de pano-cotim-pano-cotim-pano…o dia todo; ou um “abrir
fileiras…marche”, para poder distribuir bolachada até que os culpados cuspissem
as estrelas. Não podia, iria dar muito nas vistas, sempre negara a existência
destas práticas quotidianas, que obrigavam os oficiais de dia a esconderem-se
nos gabinetes à noite, altura em que o batalhão ficava entregue a si próprio.
- Vou chamar a Polícia
Judiciária Militar! – Ameaçou.
Iria ser quebrada uma tradição
secular, alguém do exterior viria tentar resolver um problema interno, e que
interno deveria continuar. Foi o suficiente para fazer os “heróis” darem um
passo em frente. O Colégio Militar não merecia ser enxovalhado por umas
estrelas foleiras!
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