Comandante Guélas
Série Colégio Militar
Se
quisermos traçar um retrato do tema desta aventura, é necessário descrevê-lo de
múltiplos ângulos simultaneamente, porque falar do 25 de abril de 1974 é muito
denso e complexo. O Colégio Militar é a prova de que o passado existe e o
presente não é tudo o que há, e o que se fez de bom e de mau nos momentos
posteriores é importante para se sentir os tempos de exceção. Deram-nos tudo,
inclusive o amanhã. A vida no
Colégio Militar dos anos 70 era dura, desprovida de sentimentos éticos, com
pouca solidariedade, mas muita amizade. Reinava a tradicional
"apresentação à alvorada", o castigo preferido dos sádicos que
obrigava os subordinados a vestirem-se com a
farda de pano mal tocasse a corneta, apresentarem-se ao carrasco, voltarem à
origem e vestirem-se de cotim, irem de novo ao encontro do graduado, correrem
para a cama para se fardarem outra vez de pano, e apresentarem-se pela última
vez. Findo este ritual voltavam à farda de cotim, faziam a cama, sem vincos no
lençol, e teriam de chegar a tempo à formatura, cujo toque era vinte minutos
depois do da alvorada. E a maioria falhava! Teriam de passar pelo Comandante de
Companhia aluno que, de uma maneira geral, também sentia prazer em fazer sofrer
os “camaradas”, e por isso lhe enfiava um par de abrunhos, uma espécie de
pequeno-almoço adiantado. O domingo à noite era o regresso ao
Colégio Militar, no "Ricochete" havia sempre uma atividade frenética
na casa de banho, trocavam-se as calças à boca de sino, as camisas com golas em
forma de asas e os sapatos de tacão, pela farda cor de pinhão. A próxima ordem
de soltura seria no sábado à tarde seguinte, altura em que alguns voltariam a
visitar a família, enquanto outros permaneceriam meses e meses à guarda da
instituição, uns com os pais longe nas Províncias Ultramarinas e outros já sem
pais por terem tombado na sua defesa. A Porta de Armas esperava-os até às onze
da noite, hora a partir da qual teria de haver uma explicação plausível para o
atraso, senão arriscavam-se a ficar “detidos” no fim-de-semana seguinte, com
uma carecada aos ombros. Na zona da enfermaria havia a tradicional emboscada,
da responsabilidade dos graduados, que faziam do colégio a sua coutada, o seu
clube privado, e que de uma maneira geral nacionalizavam a bolama. Mas
houve uma quinta-feira única: O Escalope foi o primeiro Menino da Luz a
aperceber-se da revolução dos cravos! E tudo por causa dum ataque de meteorismo
intestinal que, para não levar os colegas a pensar ser o toque da corneta da
alvorada, o obrigou a ir soltar os gases para os lados das latrinas. Aí deu de
caras com o Elefante a ouvir num rádio azul a música “E depois do adeus”.
- Cheira-me a senha!
O 305 foi assim o primeiro aluno do
Colégio militar a saber que tudo iria ser diferente a partir desse dia. Até o
Diretor, que até essa data era o ”homem invisível”, foi visto a tomar o
pequeno-almoço no Corpo de Alunos. A refeição decorreu dentro da normalidade, de tempos a tempos ouvia-se um copo a despedaçar-se de encontro ao
chão, seguido de um grito em uníssono de metade do batalhão, “Paga já”, que
obrigava o Zé Pereira a deslocar-se em passo de corrida com um bloco na mão até ao prevaricador, obrigando-o a assinar uma nota de pagamento, que
seria depois entregue ao encarregado de educação. Mas de uma maneira geral eram
precisas mais notas de pagamento porque o lema do Colégio Militar, “um por
todos, todos por um” tinha sempre um sentido prático, e neste dia do mês de
abril de 1974 a amizade foi levada ao extremo: 180 alunos estavam dispostos a
suportar o prejuízo, “1/180 avos de um copo”. No regresso do refeitório havia soldados a
montarem metralhadoras em tripés na parada, e a posicionarem-se, e os alunos
foram informados de que não havia aulas e teriam de se manter naquele espaço.
Colocaram televisões no geral das companhias onde o Balsinha, que mais tarde
iria perseguir os colegas do canal com uma pistola, fazia o relato do jogo. Por
volta das 19H30 deu-se o acontecimento mais marcante do dia, o ex-33, o general
que usava um fundo de garrafa num dos olhos, que seguia num Peugeot preto de
matrícula IC-52-69, escoltado pelo chaimite “Bula” em direção à Pontinha, deu
ordens para pararem, saiu do carro e com uma continência cumprimentou os
camaradas. O êxtase dos meninos da Luz só teve equivalência ao dos pastorinhos
de Fátima quando deram de caras com a madona na azinheira, e todos se
precipitaram para o exterior das companhias em direção ao Zimbório. Nem o Moca
conseguiu parar a turba, apesar de ter acertado em vários com o pau, no
Escalope, no Coiote, no Judy, no Peida-Gorda, no Elefante, no Gordini, no
Peidão, no Micróbio, com que costumava abrir as janelas após o Toque da
Alvorada, um som de uma corneta engasgada, ao mesmo tempo que gritava ordens
numa língua que só ele compreendia.
- Até tu Duque, - exclamou o
Comandante do Corpo de Alunos para um Menino da Luz com uma overdose de
adrenalina.
- Cuidado jovens, cuidado, pois estão
uns homens maus a atacar Lisboa – avisou o padre Baldomijo.
Nos claustros alguns correram pelas
escadas acima e saudaram o Spínola na varanda da sala por cima da do Diretor. Ainda
houve algumas escaramuças, um grupo meteu-se com soldados que iam para o
refeitório, cujo jantar foi croquetes com arroz branco e salsichas, e foi admoestado pelo oficial de dia:
- Energúmenos fascistas!
O 332 e os amigos foram obrigados a
irem pedir desculpa aos magalas. Os ideais revolucionários contaminaram muitos
alunos, o Teta sugeriu ao Escalope um 25 de abril lá para os lados do pavilhão
de ciências:
- Vamos soltar os ratos!
Houve momentos de camaradagem, o 608 chorou
baixinho junto à Infia por temer pela vida do pai, ministro do antigo regime, e
os amigos consolaram-no. A primeira vítima da nova era foi um capitão, e tudo
porque um Che Guevara de geração espontânea entrou pelo seu gabinete e, em vez
de seguir o protocolo e pedir “Sua Excelência dá licença que entre”, trocou o
verbo e gritou, “Sua Excelência dá licença que penetre”, e penetrou de
imediato, a frio. O oficial sentiu um vento e uma tempestade inesperada,
brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do
interior obscuro , e quando se preparava para responder ao pedido com um
abrunho entre os olhos do indisciplinado, este desatou a correr para as
camaratas, levando colado ao seu traseiro alguém à beira de um ataque de
nervos, que nunca o conseguiu alcançar. Noutra ponta do colégio a fava calhou
ao Didi, professor de inglês, que se encontrava numa situação invulgar, ao
verificar que no fim da aula, e já no exterior, os alunos tinham formado duas
fileiras, para ele passar pelo meio. Seria uma nova forma de festejar a
liberdade? E porque é que os militarzinhos tinham nas mãos dicionários da
disciplina? Puxou a franja para o lado e avançou, primeiro cautelosamente, mas
quando sentiu um livro a tocar-lhe nas costas, acelerou escadaria abaixo, com a
biblioteca no seu encalço. A partir daqui o Colégio Militar entrou em
autogestão, formaturas nem vê-las, as “apresentações à alvorada” eram coisas
dos “dias negros do fascismo”, muitos começaram a fumar, os cigarros deixaram de ser de uso exclusivo dos mais velhos e o Ramalho deixou de ter clientes. Um dia
apareceu, numa das raras formaturas da Terceira Companhia, um oficial com uma
monstruosa tabuleta ao peito a dizer “COPCON”. Trazia nos sacos várias calças,
blusões e uma coleção de sapatos. Informou então os presentes de que, devido à
restauração da balda…perdão, da liberdade, o povo da Luz iria ter direito a
decidir o seu próprio destino, a começar por aquilo que queria vestir. A
decisão foi tomada por unanimidade: calças à boca de sino, blusão slim e
sapatos de tacão alto! O militar do Otelo olhou demoradamente para a escolha do
povo, e imaginou-o a marchar para o seu chefe em estilo Parada Gay, viu-o a
rir-se, arrumou apressadamente a tralha e foi-se embora, gritando:
- Estão a brincar com a Democracia!
4 comments:
Brilhante como sempre!!!
Zacatraz irmão!!!
.ju17
Grandes tempos! Pani 103/72
❤️
Sempre com humor
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