Comandante Guélas
Série Colégio Militar
Estávamos num domingo à
noite e por isso de regresso a casa, o Colégio Militar, onde iríamos permanecer
até sábado à tarde, altura em que alguns iriam visitar os pais, enquanto outros
permaneceriam meses e meses à guarda da instituição, uns com os pais longe nas Províncias
Ultramarinas e outros já sem pais por terem tombado na sua defesa. A Porta de Armas esperava-nos até às onze da noite, hora a partir da qual teria de haver
uma explicação plausível para o atraso, senão arriscavamo-nos a ficar “detidos”
no fim-de-semana seguinte. Na zona da enfermaria havia sempre uma emboscada, da
responsabilidade daqueles que os comandavam, os graduados, que os aliviavam dos
chocolates e afins, a célebre “Bolama”, denotando já terem uma preocupação no
combate à obesidade dos seus subordinados. Um gordo tinha sempre mais
dificuldade em cumprir uma “Apresentação à Alvorada” (vestir-se a rigor com a
farda de pano e mostrar-se com sensualidade ao seu superior alguns segundos
depois do toque da alvorada, fazer o mesmo mas vestido de cotim e novamente de
pano), e ter ainda tempo para fazer a cama, sem vincos no lençol, fardar-se de
cotim e chegar a tempo à formatura, cujo toque era vinte minutos depois. Caso o
não fizesse teria de passar pelo Comandante de Companhia aluno que, de uma
maneira geral, lhe enfiava um par de abrunhos, uma espécie de pequeno-almoço
adiantado. Mas houve um dia em que todas as taras e manias ficaram em
banho-maria! O almoço decorria com normalidade, de tempos a tempos ouvia-se um
copo a despedaçar-se de encontro ao chão, seguido de um grito em uníssono de
metade do batalhão, “Paga já”, que obrigava o funcionário de nome Zé Pereira a
deslocar-se em passo de corrida com um bloco de notas na mão até ao prevaricador,
obrigando-o a assinar uma nota de pagamento, que seria depois entregue ao
encarregado de educação. Mas de uma maneira geral eram precisas mais notas de
pagamento porque o lema do Colégio Militar, “um por todos, todos por um” tinha
sempre um sentido prático, e desta vez foi levado ao extremo: 180 alunos
estavam dispostos a suportar o prejuízo (“1/180 avos de um copo” - sic). De
repente ouviu-se um grito do Leitão (384), que se pôs de pé a apontar para a Segunda
Circular. Duas Panhard faziam pisca para o Colégio Militar. De um momento para
o outro deu-se um levantamento, não de rancho, porque era dia de bifes de
cavalo e mousse de chocolate, mas de todo o batalhão, que correu à carga para o
exterior, e nem o Moca conseguiu parar a turba, apesar de ter acertado em
vários com o pau (no Escalope, 307, no Coiote, 95, no Macaca, 136, no Peida-Gorda,
668, no Elefante, 300, no Gordini, 601, no Peidão, 191, no 485, Micróbio, ….)
com que costumava abrir as janelas após o Toque da Alvorada, ao mesmo tempo que
gritava ordens numa língua que só ele compreendia. E aconteceu a primeira mudança:
correram para a porta de armas com dois dedos levantados em sinal de “vitória”,
e não formados como habitualmente.
- Cuidado jovens,
cuidado pois estão uns homens maus a atacar Lisboa – avisou o padre Vladimiro.
A segunda mudança aconteceu nos Claustros. Não
se formaram pelotões de ocasião (mínimo de cinco, quatro a marchar e um a
comandar), como era obrigatório, cada um correu como pode escadas acima. As
janelas trancadas não foram abertas, optou-se por partir os vidros. E lá fora
em cima duma Panhard um ex-aluno (1920-1928) saudava todos os militarzinhos em
transe. Finda a festa, deu-se a terceira mudança. Os alunos regressaram todos com
os chapéus na posição de “farra”, inclinados para trás, o equivalente ao “sou bué
radical” de agora. A primeira vítima do novo dia dava pelo nome de Capitão
Caetano, e tudo aconteceu quando um Che Guevara de ocasião entrou pelo seu
gabinete e, em vez de seguir o protocolo e pedir “Sua Excelência meu capitão dá
licença que entre”, trocou o verbo e gritou, “Sua Excelência meu capitão dá
licença que penetre”, e penetrou de imediato, a frio. O Capitão Caetano começou
a espumar e a tiritar, e quando se preparava para responder ao inabitual pedido
com um abrunho entre os olhos do indisciplinado, este desatou a correr para as
camaratas, levando colado ao seu traseiro um capitão à beira de um ataque de
nervos, que nunca o conseguiu alcançar. Noutra ponta do colégio a fava calhara
ao Didi, professor de inglês, que se encontrava numa situação invulgar, ao
verificar que no fim da aula, e já no exterior, os alunos tinham formado duas
fileiras, para ele passar pelo meio. Seria uma nova forma de festejar a
liberdade? E porque é que os militarzinhos tinham nas mãos dicionários da
disciplina? Puxou a franja para o lado e avançou, primeiro cautelosamente, mas
quando sentiu um livro a tocar-lhe nas costas, acelerou escadaria abaixo, com a
biblioteca no seu encalço. A partir daqui o Colégio Militar entrou em
autogestão, formaturas nem vê-las, as “apresentações à alvorada” eram coisas
dos “dias negros do fascismo”, o Cara de Cavalo vendia charros, e os graduados
eram somente aqueles que tinham umas estrelas amaricadas nos ombros. E um dia
apareceu, numa das raras formaturas da Terceira Companhia, um oficial com uma
monstruosa tabuleta ao peito a dizer “COPCON”. Trazia nos sacos várias calças,
blusões e uma colecção de sapatos. Informou então os presentes de que, devido à
restauração da balda…perdão, da liberdade, o povo da Luz iria ter direito a
decidir o seu próprio destino, a começar por aquilo que queria vestir. A
decisão foi tomada por unanimidade: calças à boca de sino, blusão justinho e
sapatos de tacão alto! O militar do Otelo olhou demoradamente para a escolha do
povo, e imaginou-o a marchar para o seu chefe em estilo Parada Gay. Arrumou
apressadamente a tralha e foi-se embora, gritando:
- Estão a brincar com a
Democracia.
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