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315 estórias

Thursday, April 28, 2016

Open Batata

O Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


Quando o estilo de vida era superior aos rendimentos, o adolescente Pierre Pomme-de-Terre arranjava sempre maneira de descobrir novas minas de ouro, que não passavam pelas libras lá de casa. Um dia resolveu organizar um Torneio de Futebol na Escola Náutica, tendo convencido o anãozinho de suspensórios, chefe máximo do Futebol Clube de Paço de Arcos (com sede junto ao “Bar Cu à Vela”) equipado com dois matraquilhos carunchosos com alguns jogadores decapitados, a emprestar o seu prestigiado nome ao “Open Batata”. A reunião que serviu para desviar as inscrições obrigatórias, teve lugar no gabinete do presidente, que também servia de urinol para os sócios, mas que foi interdito enquanto durasse a combinação da golpada. O Pierre Pomme-de-Terre estava com pressa, as férias no Algarve aproximavam-se e ele queria ir para o hotel “O Golfinho” em Lagos. Quando as inscrições abriram, as vagas esgotaram-se rapidamente. Nesse dia a reunião dos responsáveis do “Open Batata” foi no “Gambrinus”, pois a direcção considerava ser inapropriado para o bom-nome do clube interditar de novo o urinol aos sócios. No dia de abertura o adjunto Pierre Pomme-de-Terre tinha uma surpresa para os participantes: campo havia, bola também, mas as balizas tinham de levar as balizas, que ele não se importava de alugar, e estavam guardadas atrás do Cine-Teatro, para que o guarda do ringue da Avenida não as encontrasse. Cada equipa levava a sua baliza e tinha de entregá-la no fim do jogo. Para segurança do clube, tudo sempre pelo clube, eram obrigados a deixar uma caução no valor equivalente a duas balizas novas, que ficava à guarda do tesoureiro, o adjunto do anãozinho de suspensórios. O primeiro encontro foi entre duas das equipas candidatas ao troféu, que ninguém sabia qual era, uma vez que o responsável, o senhor Pierre Pomme-de-Terre, se encontrar em viagem de “trabalho” pelo Algarve. De um lado do campo estavam os “Benfiquistas”, cujo nome já dava indicações acerca do seu objectivo desportivo, e do outro os “Burrinhos da Pradaria”, estranho nome para uma equipa candidata à vitória final, que tinha como avançado um adolescente loirinho com incalculáveis dioptrias, de nome Mac Macléu Ferreira, um médio que jogava de chinelos e só dava rendimento com uma “sagres” fresquinha nas mãos, chamado Bajoulo, um defesa que parecia ser o mais ajuizado mas era detentor de um nome pouco ecológico, Peidão, um guarda-redes que defendia melhor de costas, o doutor Charlot e por fim um jogador que vinha decidido a marcar nas duas balizas e que o nome dizia tudo, Graise. Quando o árbitro apitou para dar início à partida não podia imaginar que no “Open Batata” só seriam dados três toques, o do Mac que fez um passe tão tenso para o Peidão que este não conseguiu desviar-se a tempo, tendo apanhado com a bola em cheio na testa (segundo se pensa o abanão foi tão forte que a região do córtex pré-frontal saiu do estado de dormência e começou a funcionar normalmente segundo foi comprovado pelos bons resultados a Matemática) e por último o Bajoulo que deu um biqueiro tão grande que a bola ultrapassou não só os limites do campo, mas também a vedação da Escola Náutica, só parando quando despedaçou o pára-brisas de um automobilista que se dirigia em direcção a Cascais. Soube-se mais tarde que o esférico levava cravadas algumas unhas do rematador luso-alemão. A debandada foi geral, o senhor presidente do Clube de Futebol de Paço de Arcos foi o primeiro a chegar à sede, apesar de ser coxo e ter alguma dificuldade em subir aos passeios devido à sua fraca altura. Esse foi o seu último dia de trabalho, pois apresentou a demissão em frente a um espelho, que foi aceite de imediato e usada como papel higiénico. Quanto ao adjunto, e grande responsável pela magnífica organização, estava naquele momento a gozar umas merecidas férias num hotel de cinco estrelas em Lagos, mas já a convencer o gerente para a realização do “Open Golfinho”.

Friday, April 08, 2016

A Sexualidade da Luz

O Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Nestes tempos de mudanças rápidas, pensar que virá o dia em que poder-se-á entrar aluno e sair aluna, caso as histéricas melancólicas de juízo curto, incapazes de suportar a tensão das suas impotências e tormentas, cujos casais de referência são o Romeu e Júlio, ou Mariana e Filomena, vençam, atira por terra o último dos mandamentos do Colégio Militar: pegar de empurrão só para lá dos muros! O 205/1882, futuro pintor e poeta da geração de Fernando Pessoa, que será expulso em 1888 por ter chumbado, revelou mais tarde na sua autobiografia que se tinha tornado "muito onanista" e fumador neste espaço educativo. Por isso quando o Jerónimo, que da Luz não percebia nada, deu de caras com o anúncio escrito no papel que forrava a bandeja do buffet do Continente, “café procura pastel de nata para relação própria”, decidiu-se pela demissão, assim o obrigavam as palavras inconsequentes do Grilo, “carinhos, drogas e roubos, não são admissíveis neste espaço educativo”! O sub andava aos papéis, punha uma tradição, o “gamanço”, no mesmo saco do “montanço”, e isso era um ultraje. Sem aquelas atividades de “desenrascanço” não haveria “firmezas”, “apresentações à alvorada”, e outras brincadeiras exclusivas deste espaço militar, onde tudo começava aos domingos à noite junto à enfermaria, com os graduados a fazerem uma operação stop à bolama e ao tabaco, que rapidamente passava das cuecas dos ratas para os bolsos educativos dos estrelados, sem que estes atos fossem ilícitos e muito menos considerados carícias. Quanto aos “charros”, por lá andaram nos anos quentes da revolução, para aquecerem a malta alucinada pelos ideais revolucionários, que também quiseram transformar em borboletas estes meninos de “tosões de oiro”! Ainda o ano vai a meio, e o “Rei das Fadas”, ao contrário da Cinderela, mal consegue transformar o primeiro “a” da segunda palavra num “o” após o toque do recolher, mesmo já depois de um e uma camaradas terem sido apanhados a serrar na sala de leitura da quarta, e a intoxicação colegial está de volta, mesmo com a Aberta já longe da Luz e perto de Évora, e o onanista primário do Alguidar algures a tentar conservar o tacho que lhe está a escorregar pelos entrefolhos. Nestes tempos tão sensíveis, em que comentar um hipotético olhar de soslaio para uma bilha, tapada ou escancarada, abre mais uma caixa de Pandora, os antigos da “Geração Rosa” deverão ajoelhar-se e agradecer-lhe pelas horas íntimas em que esgalharam freneticamente os frangos, cada qual com o seu, olhando babados para uma “Gina” gamada, onde uma sueca, sem necessidade de charros, ficava com a cara da musa, dava aso à imaginação dos imberbes vestidos de cotim. Arrependam-se aqueles que numa noite tentaram estragar-lhe o bem que, por ser imaterial, pertencia a todos os sonhos, e cujo efeito secundário não passava de umas almofadas rotas ou umas molas frouxas. Orgulhem-se aqueles que “em campos de glória fulge” montaram o Tangerina, o Quadrado, o Alfange, o Eusébio, o Vapor, o Patacho, que vos deixaram com calos perpétuos nas bilhas, ou os outros que, “com ardor guerreiro”, manusearam com brio as Mannlicher, ou que sopraram com “engenho e arte” nas flautas colegiais, servindo hoje, como no passado a deusa Minerva!     

Wednesday, April 06, 2016

O Todo Boneco

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

O cartaz prometia, o filme era de máximo terror, a Idade Média era o cenário e os vampiros bronzeados tinham nos pulsos as marcas dos relógios. O gang ocupava duas fileiras de cadeiras na parte mais fina da plateia, a segunda, cujas cadeiras continuavam a ser de pau, mas um pouco mais luxuosas pois tinham espuma, comprada no António da Lúcia, que atenuavam a “dor-de-cu”, reservada para os utentes das duas primeiras filas, o Ánhuca, o Ratinho Blanco, o Pedro da Avozinha, o João da Quinta, o único preto, o Fernindó e o resto dos habitantes de Paço de Arcos profundo. A festa começou logo na primeira dentada, quando o Zézé Camarinha local deu o ósculo fatal no pescoço duma donzela distraída, que resolvera ir fumar um cigarrito às cinco da manhã para a Cova da Moura lá do sítio. Tocou um despertador. O Pirilampo veio a correr e acendeu a lanterna, não para arrumar um espectador, mas para tentar localizar o prevaricador. Só havia santinhos. A luz desapareceu e ele ficou em alerta máximo no local. Nova dentada seguida agora de um barulho de pato, apetrecho para a caça e propriedade do Conan Vargas. Desta vez o barulho vinha da parte de trás e da ponta oposta. A lanterna tornou a acender-se e varreu a zona. O público adolescente estava todo atento ao desenrolar do filme e não era para menos. Uma das vampiras tinha aparecido agora em todo o écrãn com as mamas de fora e isso num filme no Cine-Teatro de Paço de Arcos correspondia a encontrar uma agulha num palheiro. E a seguir a esta cena veio outra, o caçador de vampiros resolveu dar um beijo apaixonado numa camponesa a cheirar a alho, que o mauzão do castelo queria trinchar. Aconteceu o habitual, o Todo-Boneco, um conquistador de bairro genuíno, que picava em todas as sopeiras da vila e arredores, fez, pela milésima vez, o seu único comentário que estava sempre reservado para estas cenas íntimas:
- Espera aí que já cospes!
Risota geral, cartão amarelo do Pirilampo. De novo o despertador, seguido do pato, de um apito de árbitro, de castanholas, que puseram o atento Pirilampo à beira de um ataque de nervos, sem conseguir dar o vermelho a ninguém, porque mal deu à luz caiu um silêncio sepulcral, a condizer com o momento. Chegou o intervalo que permitiu restabelecer a circulação sanguínea dos cus da plateia e normalizar os níveis de nicotina nas veias. Foi nessa altura que todos reparam que o bombeiro voluntário de serviço era o Álhi. Mal as luzes se apagaram o pato, o despertador, o apito, as castanholas, foram substituídos por ininterruptos “Álhis”, que não deram descanso ao Pirilampo e ao Bombeiro. Também se gritava “Tó Pi Tói”, outra maneira de irritar o Álhi que, segundo os colegas de carteira da primária do dito soldado da paz, queria dizer “senhor professor”. Ainda hoje, já reformado, reage a estes dois chamamentos quando algum pai ou avô o avista. Os comandos têm o “Mamma Summe”, os paço-arcoenses o “Álhi” e o “Tó Pi Tói”.

Monday, April 04, 2016

America Calling

Comandante Guélas
Série Paço de Arcos

O último paço-arcoense a ser avô antes do 25 de Abril tinha como nome de guerra Vaca Prenhe devido ao seu estilo atlético e à juba encarapinhada que lhe chegava aos ombros. Ao contrário do Sansão, e com a ajuda da revolução, quando cortou o cabelo para assumir algumas responsabilidades de pai precoce, lá conseguiu transitar de ano. Mas como a Natureza compensa sempre, o seu cunhado Peidão, um adolescente modelo, ajudou-o a criar o filho. E foi numa das noites frias do pós-25 de Abril, apesar da época estar ao rubro, que o Peidão abdicou dos estudos para ir fazer de baby-sitter ao seu sobrinho com cabelo de caniche. Para estar em contacto permanente com os verdadeiros “pais” do pequeno, os avós maternos, o Peidão foi munido com os Walkie–Talky que o avô lhe trouxera das Lajes dois anos antes. Até lá tinham servido para os adolescentes irem gamar peixes à noite à Quinta do Leackoque, ficando sempre um de vigia para o caso do senhor Manuel, o motorista, dar conta e vir de caçadeira. Por volta das onze horas da noite e já depois de ter desistido de empinar a tabuada dos quatro, recebeu a visita do Graise, que também era tio do pequeno, mas tinham evitado dizer a verdade ao puto, para ele não se traumatizar, pois para isso já bastava o pai, que veio acompanhado do Vasco Americano, um radioamador profissional, que debitava inglês californiano do melhor, e era dono da maior antena da vila, com luzinha e tudo na ponta, para os aviões não tropeçarem. Segundo o papel de instruções que o general dera ao neto Peidão, um adolescente já com muitas preocupações ambientais, estava marcado um novo contacto para as 23H10.

- Allô, allô, P1 chama P2, escuto, - disse o Peidão.
- Rrrrrrrrrrrrrrr
- Allô, allô, P1 chama P2, escuto!
- Rrr…P2….P1…iga….tendeu?
- Estou a ouvir mal, avô!
- “Avô” não, P2, - gritou a voz vinda do cimo da colina.
O tempo era de cautela, o COPCON andava na rua à procura de fascistas. E todos os meninos de boas famílias estavam na corda bamba, apesar de “política” para eles significar “festa permanente”. O Vasco Californiano meteu-se na conversa e no seu magnífico inglês iniciou o diálogo entre dois profissionais, um general a válvulas e um adolescente com a boca cheia de transístores. Identificou-se correctamente e o da colina disse que estava na China.
- China?! But I have the antennas look to Europe?!
Os tempos eram de insegurança, o Otelo e o seu gang dominavam a capital e arredores, e podiam estar à escuta. A comunicação com a América foi bruscamente interrompida, mas o Peidão e o Vasco Americano passaram à cena número dois, simulando outro contacto, agora entre dois portugueses, um madeirense e um paço-arcoense. O militar estava agora a assistir, sem poder intervir.
- P1 aqui Fox do Funchal, escuto.
- Fox aqui P1 de Paço de Arcos, escuto.
O general nem queria acreditar, ele sabia que o neto era uma nódoa a química, pois já ia na centésima explicação na garagem e ele ainda nem tinha conseguido decorar a fórmula da água, mas agora estava a ultrapassar todos os limites razoáveis, dando de bandeja ao inimigo a sua localização.
- Desliga, não diga onde está, o COPCON anda por aí e pode estar à escuta, - gritou desesperado o P2.
Mas o P1 estava imparável, pois disse a morada, o seu nome, o da família toda, quanto calçava, o nome dos cães, Boby e Bugio, o número do B.I. O general a válvulas desligou o aparelho, tirou-lhe as pilhas e carregou a metralhadora chinesa. Se o gang do Otelo aparecesse eram recebidos à bala.

No dia seguinte os pais do Bajoulo foram visitar os avós do Peidão e o tema principal da conversa foi o “contacto milagroso com a América”. Devido a condições meteorológicas excepcionais, que iam de encontro a todos os manuais de Electrónica & Comunicações, a vila de Paço de Arcos ficara para a História, no Ano da Graça de Nosso Senhor de Mil Novecentos e Setenta e Cinco, ligada com a América, através de um Walkie – Talky a pilhas!

Thursday, March 31, 2016

O Carro de Aluguer

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


O primeiro elemento do Gang a ter a carta de condução de veículos automóveis foi o Pilas, tirada na Escola de Condução do Cruz, lá para os lados do Campo Pequeno. E não foi preciso ir a nenhuma aula teórica, e as práticas foram poucas. O padrinho Cruz confirmava as presenças antes de se marcarem os exames na DGV. Eram estas as condições por se ter morada na região mais importante da Península Ibérica, a encantada vila de Paço de Arcos, onde praticamente todos conduziam desde os 10 anos. O analfabruto do pai do João da Quinta nunca teve a carta mas isso não o impedia de fazer coleções de motas e carros. Até ao dia em que o filho lhe tirou um dos bólides da garagem, com a ajuda dos amigos, todos a empurrarem, pegando engatado lá para os lados da vacaria. A viagem foi sempre a abrir até Caxias, acabando abruptamente de encontro a um carro estacionado, depois do João da Quinta se ter distraído com uma moça de bigode, que passeava atrevidamente os pelos das pernas. O facto dele guiar em pé, para assim poder ver a estrada, também não ajudou muito. O Cocciolo, que ia no lugar do morto, bateu com os cornos no vidro, mas não teve lesões aparentes. Segundo o Graise, um expert na matéria, que estava sentadinho atrás do motorista e se apoiou na cabeça dele, para não ser projectado contra um cabelo oleoso e cheio de penas de galinha, “as consequências para a saúde mental do Cocciolo só se tornaram visíveis anos mais tarde, quando demonstrou enormes dificuldades em ultrapassar a adolescência”. Carro imobilizado, fuga imediata! Foram todos? Todos, não, restou o filho do proprietário do veículo, momentaneamente impossibilitado de se mover, porque o seu único neurónio estava atordoado devido ao impacto do Graise, sendo por isso incapaz de enviar uma ordem de jeito às pernas.
- Quando chocámos ainda o ouvi gritar, “mãe dá-me uma carcaça que eu estou cheio de traça”, – disse o Peidão para o Pontas durante a fuga em direção à casa do Jorginho, que dava nessa noite uma festa, com a presença do irmão adotivo, o Alice, que tinha vindo com a Descolonização e trouxera com ele os primeiros de muitos charros que iriam colonizar a vila e acelerar a ida para a cova a muitos.
Quando a populaça deitou a mão ao João da Quinta, ele ainda não tinha recuperado a consciência de si próprio e da coça que iria levar do pai. Dito e feito, foi obrigado a ir ao “pão por Deus”, cujos fundos iriam reverter para o arranjo do “Ford Taunus Carrinha Verde Alface”.
A carta de condução do Pilas dava direito a tudo, até para alugar um carro marado numa agência clandestina, enchê-lo de amigos e de malas, e rumar ao Algarve prego a fundo, com o Botelho a mandar vir por causa da posição da mala: estava virada a Sul e ele queria que ela apontasse para o Norte Magnético. Enfim, cada maluco com a sua mania! Mas na véspera da viagem para sul, parte do gang deu de caras com o chaço do Mayer, que estava estacionado lá no alto, “meio-abandonado meio-com-dono”. Foi-lhe aplicada a lei de “barcos vazios no alto-mar” e a porta aberta contribuiu para a entrada, mas o volante trancado impossibilitava o passeio. O estudante Focas estava na máxima força, representava o produto final de uma mistura desportiva explosiva: Boxe e Karaté. O barulho de algo a torcer foi quebrado com o desmaio do volante e da direção no colo do “Cassios Clay de Paço de Arcos”, acompanhado por um espetáculo de fogo pirotécnico que saia dos fios em curto-circuito. A corrida começou de imediato mal o travão-de-mão deixou de cumprir a sua função. Estavam no alto, não precisavam de motor para nada. O bólide atingiu a velocidade do som logo na reta e quando fez a primeira curva, todos se aperceberam de que o Focas não fazia questão de usar os travões. Iria até à desintegração total. O Chico Sá abandonou de imediato o “Ferrari”, o Graise também, o Pontas “idem aspas aspas” e quanto ao Peidão, que ia no meio, não conseguiu sair, porque o estudante Focas já tinha encostado o carro a um muro e impossibilitou-lhe a fuga. Só se viam fagulhas a sair do foguetão. E eis que, contra todas as expectativas, o motorista guinou o volante, obrigando o Renault a fazer um ângulo de 90º, ficando de frente para o muro do jardim dos senhores doutores vermelhos. O Focas saiu como se tivesse carregado num botão de ejeção automática e o Peidão escapuliu-se no limite, conseguindo ainda ver, do ar, o embate do carro no muro. Um levantou as quatro rodas e o outro abanou como uma bailarina. Durante uma fração de segundos reinou o silêncio. A maioria estava borrada, apesar de estarem quase todos na fronteira para a idade adulta, e como tal responsáveis pelos seus atos. Mas como o período ainda era de revolução, poder-se-ia sempre dizer que tudo isto consistia num protesto contra aqueles que apoiavam a ocupação selvagens dos “chalés burgueses”, menos os deles, e este muro em questão pertencia a pessoal íntimo e amigo da “classe operária”. O mini-gang dispersou misteriosamente deixando o carrito onde estava, mas no dia seguinte o Renault dormia profundamente dentro de um buraco de uma obra, lá para os lados das escadinhas da estação, com o rabinho para o ar e cercado de rudes trabalhadores, impossibilitados de cavar. Teria feito os últimos cem metros da vertiginosa descida por conta própria ou alguns meninos-ricos tinham-se reorganizado e acabado a tarefa a que se propuseram? Uma pergunta sem resposta, pois todos juravam que a sua participação nesta brincadeirinha de jovens recentemente libertados pelos Capitães de Abril, que os safaram de irem jogar às escondidas com os turras, tinha acabado no momento em que o chaço marrara contra o muro. No dia da partida rumo ao Sul os turistas levantaram-se cedo, atestaram o carro com a gasolina encontrada nos depósitos dos bólides que estavam aparentemente abandonados nos passeios na noite anterior, e foram todos buscar o Botelho a Nova-Oeiras, que tinha feito um pedido especial de entrada com descrição na rua onde morava, pois o pai andava muito traumatizado, porque o filho insistia em marrar com o Mini de cada vez que saia de casa para ir passear com os amigos, lá para os lados de Cascais. Uma semana antes tinha conseguido chegar ao destino sem qualquer percalço e quando se preparava para estacionar o carro num parque junto ao “Senhor Balão”, assustou-se com a salva de palmas e, em vez de desengatar, tirou o pé da embraiagem e marrou contra o muro. Por momentos ficou um silêncio sepulcral, mas depois as palmas continuaram, mas desta vez para aplaudir a tradição e não a exceção. A entrada do Pilas foi à leão, o carro guinchava e fumegava por tudo o que era buraco, Nova-Oeiras veio toda às janelas.
- Obrigado Pilas, – agradeceu o Botelho colocando a mala na bagageira, virada para Meca.
A viagem até ao Algarve correu sem incidentes, o carro foi sempre a ganir e os passageiros em farra permanente. O destino não contemplava nenhum acidente para estas datas, apesar de o estarem permanentemente a provocar. A primeira paragem foi na praia da Oura onde pernoitaram. O auto gang agarrou nos sacos-camas e montou acampamento junto a uma falésia. Após as duas da manhã os meninos ricos de Paço de Arcos foram recolhendo aos aposentos à medida que iam chegando. O Pilas foi o último e, para manter a tradição, fez nova entrada à leão. Vislumbrou uma fileira de sacos-camas, desatou numa correria e quando já estava perto, fez uma chamada a pés juntos e “aí vai alho” para cima dos turistas. As bejecas tinham-lhe toldado o sentido de orientação e enganou-se. Os amigos estavam na curva ao lado. Teve de acelerar e desaparecer na escuridão da praia, porque ia uma multidão atrás, pronta para lhe “fazerem a folha”. No dia seguinte a excursão rumou para a Torralta porque o Pilas, o único encartado, estava obcecado na procura da sua Olívia, uma dama da Linha, que tinha vindo para o Algarve com a família e deixara o namorado na capital. Mas o Graise não se conteve e gritou do banco de trás:
- Primeiros para a olívia!
Caiu tão mal na alma do Pilas que, largou o volante, e foi pedir explicações ao violador. Valeu a pronta intervenção do Mac Macléu Ferreira que deitou as mãos ao leme, mesmo sem óculos, conseguindo manter o carro fora-de-mão, mas na estrada. O ofendido voltou à posição inicial quando lhe explicaram que o Graise tinha este nome de guerra por causa da travadinha que lhe dera durante um jogo de basquetebol de 5x5 com os irmãos, e que a partir daí tinha sido sempre a descer, principalmente no que se referia aos comportamentos. Ele tinha dito realmente “Olívia”, mas pensara no cágado com que namorara uns anos antes, na célebre festa onde proclamara aos amigos solteiros que aquela festa “era só para orientados”. A chegada às torres manteve o mesmo estilo, com o bólide a berrar e a deitar fumo dos sapatos, com acompanhamento das vozes de seis “meninos de coro” das boas famílias “Paçoarquianas”, que iam pendurados nas janelas. Respirava-se liberdade, e a “liberdade” significava “balda total”. O carro ficou onde parou e o sentido era só um, praia. Ainda o bons meninos não tinham arranjado espaço para montar o acampamento e já o Pilas descobrira uma sereia em cima duma plataforma, que estava ao largo.
- Será a Olívia? – Pensou.
Tinha prometido a si próprio que só pararia quando encontrasse a sua musa e isso implicava todos os sacrifícios, até fazer os 50 metros que o separavam da jangada.
- Vamos nadar até ali, - gritou, correndo para água.
Todos acompanharam? Todos, não! O intrépido Botelho sentara-se na areia e recusou-se a acompanhar os amigos.
- Vou ficar aqui a ver as vistas, – exclamou com um olhar maroto, puxando a franja ensebada para o lado.
O Pilas nem queria acreditar quando, após aquele esforço hercúleo, deu de caras com um autóctone cheio de bexigas e cabelo oleoso a tocar nos ombros. Quando estavam prestes a regressar, chegou o garanhão.
- Então, afinal também vieste?
Como não tinha pescado nenhuma rola, resolvera vir tentar a sua sorte com o “Camarão da Torralta”. Mas não teve tempo para lhe ver o sexo, pois a ex-Olívia mergulhou na altura em que o Botelho trepou. E agora não tinha forças para persegui-la. No entretanto apareceram, vindos das profundezas, o senhor Pilas e o estudante Graise, que deram aviso de retirada aos amigos, exceto ao garanhão do cabelo ensebado. A chegada à praia foi um pouco mais lenta porque a maré estava a vazar. Quando se sentaram na areia foram informados pelos dois mergulhadores de que três dos cabos que prendiam a plataforma tinham sido soltos. Era por isso que o Botelho não passava de um ponto no horizonte. Só conseguiram reunir-se com o Sol já posto, pois foi nessa altura que o último dos “paço-arcoenses" chegou a terra firme.
A próxima paragem ficou marcada para os lados de Lagos, mais propriamente na quinta familiar de uma amiga. Quando apareceram na cidade deram de caras com outros artistas, gerando-se uma confraternização espontânea num restaurante com uma sereia à porta, que debitava água para um lago que estava aos seus formosos pés. A festa durou pouco, muito pouco, pois o Bernardo Sá resolveu tirar um dos mamilos da ninfa com o alicate que o Bajoulo usava para gamar motas. O dono nem queria acreditar quando viu que a estátua de mármore, de quem sempre se lembrava quando brincava aos índios com a sua Maria de bigode, não passava agora de uma pobre deficiente que nem para fonte servia, muito menos de inspiração. A debandada foi geral, Burgau foi o nome escolhido para próxima capelinha e guardada para uma próxima aventura.