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315 estórias

Tuesday, February 12, 2008

Propriedade Privada


                          Camarada Choco

                                                                  Aventura 56

A leitura que fazemos do mundo dos Desaparafusados é muito subjectiva, pois eles dependem sempre dos seus estados de alma. É por isso que o bar é o epicentro de todas as coisas. Representa o domínio absoluto da Dona Espatinha, cuja única obrigação é pagar a Dízima à Senhora do Feudo. Um dia quando se preparava para fatiar o já célebre Bolo de Baba de Monga da Mosca Morta , deu de caras com uma dentadura a rir-se para ela.
- Meu Deus, alguém perdeu peças! Será de um Aparafusado ou de um Desaparafusados, eis a questão?
- Banana, massa, arroz, salada, cebola, - disse o Buda, o monga com a maior cabeça da Instituição, que ficara ao espelho a ver crescer a cabaça, porque na ilha não havia palinhas para desviar o líquido da tola para o estômago. E quando os papéis chegaram para uma reeducação à séria num país distante, já a cabaça tinha solidificado, como a lava de um vulcão. Era o Buda e só falava em comida, mesmo quando cagava.
A ocorrência foi comunicada, por telefone, aos Serviços Administrativos, e a Madrinha quis saber de que material eram feitos.
- Se forem de oiro meta no Saco Azul e deixa de haver descoberta, tal como aconteceu ao cheque do velho da colónia.
- São brancos! – Informou a Dona Espatinha.
- Ponha-os na retrete e diga-me o que é que acontece, - ordenou.
- Flutuam!
- Então não é marfim, entregue-os ao dono, - e desligou.
A Dona Espatinha sentiu-se perdida, desajustada. Como é que iria descobrir o dono ou dona do “corta-palha”? Resolveu pôr em lugar de destaque o achado, com uma tabuleta. Os primeiros a entrarem no estabelecimento foi um casal constituído por dois mongas genuínos, uma pateta deslumbrada e um pateta pretensioso, que quis logo comprar os dentes para oferecer à noiva.
- Mas ela tem os dentes todos, não precisa destes.
- Fica com mais, - justificou-se o chinês, mostrando porque é que na sala era o terceiro calhau a contar do armário.
Mas atrás deles estava outro, com um ar assustador e perverso, mascarado de “Abelha Maia”, a dizer que era um ninja.
- Espatinha, vê se são meus, - e abriu a boca, mostrando ser um descendente em liga directa do crocodilo do Peter Pan.
- Vê se entendes, isto não são bolas de sebo, são dentes.
- Então se calhar são meus, - gritou um monga amaneirado e ignorante entrando de rompante no espaço, na ponta dos pés.
- É mentira, são meus, deu-me a minha tia que trabalha num convento em Espanha que se chama “O Elefante Branco”, - exclamou o Pitrongas, que vinha coladinho ao bailarino, mostrando ser um deficiente versátil, sempre disposto a tentar novidades, neste caso enfiar na boca uns dentes de plástico com musgo. Mas antes cumprimentou a Dona Espatinha com um volumoso “Bom-Dia” em alemão, que foi de imediato chumbado pela Senhora das Sandes que apelou ao rigor e à ética, valores que eram transmitidos a todos pelo Presidente Porres, um exemplo de gestão e dedicação à causa do Camarada Choco, só com duas pequenas manchas, de mijo, no currículo, uma assinatura num cheque para um amigo e num contrato para auto-emprego de supervisor de nada, numa altura em que a sua Escola de Condutores de Mulas estava na falência. Enfim, um Pancho Villa da Brandoa. Junto à porta permanecia o Camarada Choco, belo e misterioso, com a mochila entreaberta. A afectividade do seu olhar era a prova da sua modéstia. O “corta-palha” iria, mais tarde ou mais cedo, pingar para a sua mochila. Apareceu o Castanheira e o Primo do Choco, que demoraram algum tempo a analisar a peça.
- Meus não são, - atirou de rajada o familiar do nosso herói, mostrando ser psicologicamente da profundidade de um bidé.
Quanto ao primeiro, tomou um leitinho transparente, fez uma excursão pela memória e deu uma “grande seca” à Dona Espatinha, contando-lhe a história da bisavó que usava um dente de elefante. O Vira-Bicos, um homem de complexidades poliédricas, só parou junto do objecto estranho ao café, que o fez revelar-se como um senhor de segredos imorais. A presença de todas estas carcaças ressequidas estava a levar a Senhora das Bicas a aproximar-se a passos largos do seu ponto de saturação. Já se via o véu amargurado dos olhos. A Lolita entrou sem aviso com aquele movimento verbal que fazia dela um fenómeno da natureza, cuja língua não tinha medo de nada e debitava palavras rápidas, altas e sonoras, que a faziam delirar e alucinar.
- Organizem-se! – Gritou com a altivez dos mitos e o clamor do trovão.
E como boa telefonista compulsiva, agarrou na mão e fez de imediato uma ligação para o vereador dos seus sonhos, dando-lhe conta, com veemência e voracidade, da descoberta da Dona Espatinha.
- Acudam, acudam, - gritou alguém dos confins da Escola.
No parque da instituição tinha sucedido algo! O Cabo Pilas apresentara-se ao serviço dentro de um bólide e tinha tido alguns problemas na manobra.
- Eu estava aqui sentadinha no contador da electricidade a fumar um cigarré quando vejo um carro a fazer a recta aos soluços, - contou a Tareca ao agente Bóbó.
- E não vinha ninguém ao volante, - interrompeu a Faísca quase à beira de uma convulsão.
- Quando quis fazer a curva acelerou e nem tive tempo de acompanhar a manobra. Ouvi um estrondo, vi uma data de pincéis a voar e o carro continuou, só parando lá em cima no local das “cargas e descargas”.
- Houve vítimas? – Perguntou o repórter da TVI.
- Está ali espalmado no chão, a confundir-se com o alcatrão, um gato, - exclamou a Dona Piulia, que tinha sabido da notícia e suspendera as dores para vir aparecer na televisão.
- É a dona do bichano?
- Não, sou uma vítima!
- O carro-fantasma também lhe acertou?
- Atropelaram-me a alma e fugiram, - queixou-se a Senhora das Baixas Pressões.
No cimo do parque a porta do bólide abriu-se e saiu de lá, com um ar arrogante, o Cabo Pilas, trazendo na mão direita uma mala à Doutor que se abriu com estrondo e espalhou várias “Ginas” pelo alcatrão. Depois de recolher o material didáctico dirigiu-se, em passo de ganso, para a Escola de Desaparafusados. Quando ia a passar pelo gato espalmado foi interceptado pela Pirosa:
- Já viste o lindo serviço que fizeste, - e apontou para o bichano.
- O gato sabia fazer “crochet”? – Perguntou o repórter.
- Gatos há muitos, - respondeu o Cabo Pilas, limpando as solas dos sapatos, com desprezo, no pobre animal. – Serve para tapete de entrada, - e desapareceu lá para os lados do primeiro andar em busca da sua Kalélé, cujo horário de trabalho indicava que deveria estar no seu quartel, a dar lustro aos livros. Mas já tinha concorrência:
- O que é que o Senhor Pintor faz aqui, junto à minha porta? – Perguntou, tentando crescer.
- Esta porta é a sua? – Perguntou o artista da cassete pirata, barrando o acesso do dono ao interior do espaço. – Não pode entrar, está em manutenção.
- Em manutenção?! O senhor pretende dizer que eu trabalho num mijatório?
- Não pode entrar, e pronto, são ordens da Doutora Sem Canudo.
- O quê?! Até para entrar na minha sala tenho de pedir autorização à Madrinha das outras?
- É um assunto que não me diz respeito. Não entra e pronto!
Na outra ponta da Instituição que transformava Aparafusados em Desaparafusados, a Maria contava a odisseia no “Miguel Bombarda”:
- Quiselam dáleme os comprimidos e eu de-lhes uns abufos.
Tinha tido alta, não porque a merecesse, mas sim para não pôr em perigo a vida dos Doutores & Companhia. Tinha sido sempre assim, na Venteira era onde a compreendiam, com mais ou menos dentadas.
- A Gilete esteve aqui? – Perguntou a Menina Tatrícia pegando nos dentes e ficando com eles em frente aos olhos, tal como Shakespeare.
O caso só ficou resolvido quando a mãe do chinês-cagão reclamou pela falta de material.
- Os dentes são nossos, - explicou a mãe-monga. – Quando eu vou para o trabalho, ele vai desdentado para a Escola, quando eu tenho folga, fico a comer papas em casa.
No rés-do-chão, na área da Educativa, a confusão era enorme. O Amendoim tinha ido aos cornos, com o único braço disponível, ao Buda e a Pipoca não conseguira segurá-lo.
- E ainda por cima está com uma convulsão e a cabeça do outro ultrapassou o tamanho dum melão do Entroncamento.
O Amendoim era um Desaparafusado de cor, que desaparafusava em muitas coisas, incluindo o crioulo. Tinha aparecido na Escola acompanhado da mãe e de um tradutor, que explicara à Psicóloga Morena que o objectivo da encarregada de educação era que o seu Amendoim chegasse ao final do Ano Lectivo a falar um crioulo límpido. E como os desejos dos progenitores eram agora lei, até para os Desaparafusados, crioulo foi a língua oficial registada no Plano Educativo. Invertia-se assim a situação, o Amendoim passaria à condição de Aparafusado e os doutores promovidos a analfabetos. Descobriu-se mais tarde que o Desaparafusado, Aparafusado em crioulo, era surdo que nem uma porta, um mouco genuíno. Nova carta para casa, de novo a mãe presente numa reunião, mas desta vez sem tradutor, e na mesma condição que da primeira vez. Informaram-na que o Amendoim nem crioulo, nem português, e tudo causado pela panada que levou ao nascer, quando caiu do coqueiro. Mas como quem tem boca vai a Roma, lá lhe conseguiram explicar que possivelmente o filho teria de gramar com um aparelho auditivo. Fez-se luz! Desta vez percebeu o sentido da questão e explicou que já lhe tinham querido pôr o tal rádio no pavilhão auditivo, mas ela recusara, por uma questão estética. O percing da Casa Sonotone não jogava bem com o seu Amendoim. E como boa guineense de família muçulmana, optara por proteger as partes baixas do seu rebento com um colar feito por um bruxo. A última cena que ocorreu no corredor central foi a Kalélé em fuga para a Sala da Dona Pilca, que estava ausente por motivos de força maior, perseguida por dois mecos rebarbados.

Reforma “Convulsiva”




                          Camarada Choco

                                             Aventura 55


- Vai imediatamente para a reforma, - gritou a Doutora Sem Canudo entrando de rompante, sem bater à porta como já era costume, na Sala dos Têxteis, acordando violentamente a Dona Piulia, que tinha adormecido ao som de um “ponto-cruz”, dado pelo seu Tino. A expressão facial da Madrinha mostrava que estava irresistível, incontornável e incondicional.
As portas das outras salas ficaram cheias de olhares curiosos que passaram a acompanhar do interior a estranha animação.
- Não posso, tenho de acabar a encomenda de duzentos “abafa-o-palhacinho” feita pela Dona Pilca e que espero vir a acabar lá para meados de 2020.
- Tem de ir para a reforma porque a minha caixa está a ficar vazia e qualquer dia não há dinheiro para me pagar o ordenado dum dos cargos que não exerço há vinte anos, na época em que usávamos os pauzinhos dos gelados para endireitar mongas, mas que faço questão de receber. A outra Caixa que lhe pague o ordenado.
Mas a Dona Piulia tinha caído novamente num transe profundo e estava agora a receber o seu príncipe encantado, de nome Tino, desta vez vestido de bombeiro e munido de um camião com os dois depósitos cheios e uma mangueira descomunal.
- Aiiiii, - gritou a Informadora , que ia a passar e fora albarroada pela sonhadora que vinha em marcha-atrás. – A senhora já não sabe o que faz, tem de ir imediatamente para a reforma e deixar o que lhe pagam para pagarem a mim, que preciso do carcanhol, - e piscou o olho à Madrinha, que aplaudiu e a chamou à parte.
- O dinheiro não é todo para si. Eu dou-lhe vinte por cento.
- Só?! E as informações que lhe dou, não valem nada?!
- Ok, mas não pense que fica com o carcanhol todo. Eu quero continuar a receber pelos vinte cargos em que me auto-nomeei.
- Trinta por cento e já não se fala mais no assunto. As informações valem oiro.
- Mas primeiro temos de convencer a Piulia a reformar-se.
- Deixe isso comigo, que eu vou ser implacável.
A Dona Piulia tinha novamente caído num dos sonhos e estava agora defronte de um Tino vestido de Noddy dentro de um táxi amarelo que a convidava para o deboche e a perdição. A Madrinha aproximou-se sorrateiramente da senhora dos Têxteis, pôs-lhe o braço por cima do ombro e sussurrou-lhe ao ouvido:
- É o Tino novamente. Já viu que com a reforma vai tê-lo a tempo inteiro.
A presa sorriu, abriu os olhos, que deixaram de caber nos óculos, respirou fundo e disse:
- Talvez tenha razão, vou pensar no assunto.
A Madrinha piscou o olho à Informadora e marcou mais uma reunião, junto à casa de banho da entrada, o cartão de visita da Escola, paredes meias com os sofás onde se sentam as visitas, que muitas vezes pensam que entraram nos esgotos. Como do costume, a instalação sanitária estava ocupada com os meninos da Dona Gillete, uns cagões da pior espécie.
- Viu, aprenda comigo que eu ainda vou durar muito, - exclamou a Madrinha ao ouvido da candidata a Madrinha. – Ela disse que ia pensar, o carcanhol já está no papo.
- Tem a certeza?! Olhe que eu preciso dos trinta por cento para este ano. A Dona Piulia ameaça com a reforma desde que chegou e ainda nos há-de enterrar a todas.
-Esteja descansada. Eu conheço este tipo de gente. Eu também ando a dizer que vou largar os cargos e cada vez tenho mais.
- É por isso que estou preocupada. As doenças pegam-se.
Mas a alma da Dona Piulia estava cercada de sonhos, expectativas, desgostos, alegrias, sonetos, tragédias, romances. E a causa disso tudo tinha um só nome: Tino!
- Piulia, - continuou a Madrinha, pondo mais uma vez o braço ao redor do pescoço da funcionária de meia-idade, não para o apertar, como era o seu desejo mais íntimo, mas sim para tentar dar-lhe a volta ao ordenado. – Ofereça ao seu príncipe-da-praça um “abafa-o-palhacinho”, sou eu que lho dou.
- Alto e pára o baile, - gritou a Dona Pilca. – Isso tem um preço.
- O preço de tudo o que se fabrica nesta Escola de Reabilitação é decretado por mim. Eu deixo, a título excepcional, que a Dona Piulia leve um destes agasalhos para palhacinhos, de borla. É por uma causa justa!, - E deu um toque à Informadora, que estava coladinha . – Aprenda que eu não duro para sempre.
- Infelizmente parece que também ainda nos vai enterrar a todas, - sussurrou a candidata a nada.
- Mas o que é isto?! – Indignou-se alguém que pretendia fazer um telefonema para casa, e assentar no livro como “de trabalho”, e verificou que o aparelho já não estava ao “Deus dará”, mas guardado por uma nova funcionária tipo cão de guarda, que fazia questão de discar o número.
Entretanto e enquanto a pessoa reclamava da mudança, o Porres aproveitou a distracção da funcionária e discou para a esposa, como era habitual, para saber o que era o jantar. Aproveitou para lhe dizer que à tarde, quando iniciasse a volta, passaria lá por casa com a carrinha e os mongas, para a levar ao Feira Nova. Enquanto se discutia a problemática da gratuidade do “abafa-o-palhacinho” made in Dona Pilca, cuja produção tinha sido contratada aos chineses da Sala dos Têxteis, da responsabilidade da Dona Piulia, cujo estado a que tinha habituado os colegas do “mais para lá do que para cá” se tinha alterado radicalmente devido a um simples Tino, passou o Camarada Choco com um dossier debaixo do braço e os dois olhos “à Belenenses”, uma vez que insistia em estar acordado e a falar durante toda a noite, à medida que passava as folhas transportadas com tanto orgulho.
- Agora o poder da Madrinha multi-funções também já chegou aos meus “abafa-o-palhacinho”? – Insurgiu-se a Dona Pilca, mostrando a todos porque é que ao longo de toda a sua carreira escolhera sempre ser a voz discordante.
Desde que se tinha mudado para o topo da instituição, a Faculdade de Tampinhas Professor Doutor Nélinho, o Camarada Choco estava num estado de exercício contínuo de aprendizagem, que associava ao sentido de liberdade e de independência individual a excelência da responsabilidade profissional. Ele era bom em tudo o que fazia, incluindo o cagar. Cagava com estilo para os outros, revelando ser individualista, moralista e empreendedor que levava as injustiças da vida muito a sério. Mas esta sua ingénua relação com o que de mais terno podia existir, confrontava-o muitas vezes com o que de mais brutal podia existir: o “olho à Belenenses”. Mas mesmo nestas ocasiões dramáticas ele conseguía fazer amor consigo próprio. De repente a Dona Piúlia levantou-se com brusquidão, pondo de rasto todas as doenças que andava há anos a propagandear, agarrou na mota eléctrica dada à Escola, mas registada pela Doutora Sem Canudo em nome próprio, para fazer um figurão como presente de um futuro aniversário para alguma sobrinha, e acelerou em direcção ao Refeitório, com um cigarro fumegante ao canto da boca e o cabelo ao vento estilo punck.
- Perdeu o tino de vez, - comentou a Dona Gilete habituada a estes jogos de humor, cruzados com dramas escondidos.
- O Tino é outro e tem “T” maiúsculo, - atirou a Tareca.
Mas a via rápida estava interrompida. O Professor Doutor Sem Canudo Nélinho esquecera-se de tomar o “Tenilvet” e sem o drunfo começara a deitar fumo pelas orelhas e a procurar uma vítima. A “sorte” coube ao Vira-Bicos.
- Alto e pára o baile, - gritou, pondo-se em frente ao Animador-de-Mongas.
- Mas o que é que vem a ser isto?! – Indignou-se o hippie ao ver-se envolvido numa pega de caras.
- Mostre-me a sua autorização de residência, - ordenou o agora bófia Nélinho.
- Mas quem é o senhor para me dar este apertão? – Perguntou indignado o Vira-Bicos, já com os glóbulos oculares fora das órbitas e dos óculos.
O problema da dupla personalidade só foi resolvido depois da Terapeuta Zézé ter conseguído convencer o Nélinho a comer uma maçã vermelha com um “Tenilvet” no interior, perto do caroço, que lhe arrumou momentaneamente os carretos deixando de implicar com a vítima, que correu para o seu espaço artístico no primeiro andar e recusando, mais uma vez, a entrada da tia Kalélé para uma faxina.
A recusa do direito à reforma foi afixada no placar. Todos sabiam que sem os estímulos e provocações da Doutora Sem Canudo, a Dona Piulia perderia grande parte do seu poder e da sua originalidade. E em relação ao facto das puristas não gostarem do seu modo de trabalho, a Senhora dos Têxteis encolheu os ombros e presenteou-as com uma baixa, tendo ainda tempo para dizer:
- Têm inveja do meu Tino!

Monday, January 21, 2008

Cosas Nostras





                         Camarada Choco
                                          Aventura 54


Quando o Choco entrou na Escola para Reabilitação de Desaparafusados ninguém queria acreditar no que estava a ver. O herói do cinema mudo barulhento trazia um “olho à Belenenses”, digno dos melhores filmes do John Wayne (João Vinho). Teria sido um atentado dos Aparafusados? Não! Fora o presente matinal do papá por ele ter urinado na cama e encharcado o “colchão de quedas” comprado a um vendedor de material desportivo, depois de ter explicado ao cabeça-de-casal que a oportunidade era única e dava ainda direito a levar, completamente grátis, uma toga pata teses de doutoramento.
-Podes mijar para onde quiseres, menos para o colchão de ginástica onde eu e a tua mãe damos cambalhotas.
Mas o dia do pai do Camarada Choco, candidato à sucessão do Cavaco, tinha começado torto. Quando se preparava para misturar no leite os “croquetes para perros”, comprados no Bazar Chinês, secção de desporto, ouviu um grito da patroa tão alto e estridente, que o obrigou a dar um novo abrunho no filho, que era para não deixar dúvidas quando ao seu papel de chefe daquela típica família da Brandoa.
- Ele não fez nada, - disse a mãe, entrando toda desgrenhada na cozinha e dando um encontrão no cágado, que entrou de cabeça dentro da panela do caldo-verde.
- Fica já dada para a próxima. Mas afinal o que é que tens, ó mulher?
- Ó, ó, gamado, - engasgou-se a dama, apontando para a janela.
Novo sopapo no Choco.
- Ele não fez nada.
- Para a próxima safa-se. Fala decentemente, pareces uma deficiente.
- A “caminheca” não está no sítio. “Abafaram-ta”.
- Não te percebo, é melhor ires limpar o “colchão de quedas”, enquanto eu tomo os flocos para ver se me passam os bicos-de-papagaio.
O choque foi tão violento que o pai do Choco ficou estático durante alguns momentos. Tinham-lhe gamado a “caminheca” carregadinha de ferramentas chinesas. Por sorte o Choco já se tinha ausentado para a Faculdade e estava agora no sótão, o último patamar para a Licenciatura em Tampinhas, nas mãos do Professor Doutor Nélinho que andava com uma crise de Sem-Canudo, dando ordens, umas atrás das outras, à sua Piulia, que estava fresca que nem uma alface, contrariando o estado normal de “mais para lá do que para cá”, e tudo isto devido ao Tino, que a tinha convidado para uma noite de arromba.
O edifício sofrera uma invasão de tampinhas de plástico, que ameaçavam pôr os Clientes na rua por falta de espaço. E para agravar ainda mais o reino da Madrinha, o Fecais, uma espécie de “canudado” mentecapto, assessorado pelo maior monga Aparafusado da Brandoa, o Vóscar, queriam a todo o custo tomar o poder, que uma vez já tinha sido deles, para assim puderem passar mais um cheque avultado a um amigo, como o tinham feito no passado, e todos juntos passarem novamente umas belas férias nas Ilhas do Seixal, e do dinheiro nem rasto, nem responsabilidade, só prescrição. Mas desta vez tinham pela frente o Camarada Choco, o maior, o melhor. Mas o mal não era só na Venteira. Por esse país fora ter um Desaparafusado tinha sido sinal de emprego garantido e propriedade vitalícia. Há muitos anos, muitos longos anos, lá para os lados da Portela, havia um “proprietário” que não largava o tacho, desde que montara a Quinta para Desaparafusados. As leis da República Democrática ficavam à porta do seu castelo, preparou-se muito bem para ficar até morrer, as eleições seguiam os cânones africanos, os mandatos eram ilimitados, e o mito dizia sempre aos votantes que “após ele seria o dilúvio”. O crime era mais que perfeito. Mas havia mais! Como o filho partia tudo em casa, recambiou-o para o “seu” castelo, com direito a todas as mordomias, escondidinho lá no cantinho duma das vivendas, longe dos olhares indiscretos. Enquanto que os filhos dos camponeses só tinham direito a quinze dias de férias, assim diziam as regras, a permanência do seu monga era vitalícia. E ninguém ousava desafiar o rei, porque sua majestade tinha bons contactos no Poder da República, e a República incentivava estes tiranetes, porque eles ofereciam-lhe anualmente a “Festa das Vaidades”, com governantes, televisões e mongas amestrados. Mas voltemos ao desafio Fecais&Vóscar versus Camarada Choco.
- Eu quero um emprego para a minha esposa iletrada, mas ela só aceita ser Doutora Coordenadora Sem Canudo., - gritou o Fecais, que se intitulava “Gestor”, que só podia ser da “mula russa”, mas que um dia assinara um cheque de dez mil contos, para a entrada de uma cave miserável na Brandoa, que estava a ser vendida por um amigo de confiança, perseguído injustamente pela polícia.
- Apoiado e assinado, - concordou o Vóscar que, ao levantar-se para dar mais força ao cúmplice, desequilibrou-se com o peso do tintól, e caiu ao colo do monga Aparafusado que estava ao lado, que oficialmente era pai duma desaparafusada, e que estava mais para lá do que para cá devido ao excesso de carrascão que emborcara ao almoço, mas que mesmo naquele estado que nem a um monga se aceita, ele conservava o direito ao voto, que podia pôr novamente mo poder a dupla de “assinadores de cheques para mim e para os amigos”.
- E vou dizer mais, - insistiu o gestor da mula-russa. – Como homem-do-carcanhol que já deu provas de incompetência, quero partilhar com V. Exas., - e piscava o olho só aos “Mongas não Mongas”, que infelizmente pareciam ser a maioria, - tenho mais um esquema para tirar dinheiro aos ricos para dar aos meus amigos, os “pobres de espírito”.
E como não tinha argumentos que justificassem o golpe, atacou novamente no alvo mais fácil, as Afilhadas da Tarde.
- As duas senhoras tiveram um aumento de lei desmesurado. Proponho tirar-lhes metade do ordenado, pago pelo Ministério segundo as tabelas oficiais, e guardar a massa no cofre onde tenho o dinheiro que ganhei com a “entrada”. Com estas duas metades fica garantido o tacho para a minha mulher.
- Apoiado, - interveio de novo o Vóscar pondo-se de pé e tombando para o outro lado, onde dormia profundamente outro “Monga não Monga”, cuja mulher tinha como incumbência levantar-lhe o braço na altura de votar.
A reunião foi interrompida pelos gritos raivosos da mãe da Zulmira Destravada, uma cliente muito antiga, que se tinha sentido ultrajada quando a Doutora Sem Canudo lhe lembrara que tinha em atraso vários meses de estadia no lar “O Saco da Madrinha”.
- O ministério não específica no subsídio para qual de nós é que vai o carcanhol, - dizia indignada a queixosa. E eu compro o tabaco com que dinheiro? A senhora desenrasque-se, corte no ordenado das suas Afilhadas Da Tarde como diz, e muito bem, o Fecais. Eu vou votar nele porque se ganhar vai distribuir cheques pelo pessoal.
- Apoiado, - gritou o Vóscar, caindo para a frente e arremessando violentamente o papá da Violeta de encontro à fila seguinte, criando um efeito dominó sobre os bebedolas, que só pararam quando já não havia mais votantes naquele sentido.
- Ela em casa diz “mãe dá-me uma carcaça que eu estou cheia de traça”, - jurava a mãe à Dona Gilete.
- Aqui é muda, - contrariava a menina de meia-idade responsável pela tentativa de reabilitação da deficiente.
Eram os chamados “Milagres Caseiros” que faziam com que os Clientes fossem Desaparafusados na Escola e Aparafusados em casa. Estaríamos perante uma fuga ao fisco? Cidadãos que passavam por aquilo que não eram, para que os progenitores tivessem benefícios fiscais, principalmente na compra de automóveis, onde eles não punham os pés, para não sujarem? Ou então a Desaparafusada era a Dona Gilete que não sabia línguas e por isso a moça mantinha-se em greve oral vitalícia?
- Em casa a minha menina pede, em francês, para ir arriar o cagalhão, - informava com certeza absoluta, e intrometendo-se, como era seu hábito, o senhor Baldinho, um Pai Sem Canudo com a mania que estava inscrito na Ordem, revirando os olhos mais rapidamente que o rebento. – Portanto, exijo falar imediatamente com uma Coordenadora ou parto isto tudo…faço queixa à ASAE…telefono para os CTT…faço qualquer coisa ruim. A mim ninguém me diz que a minha destravada mija pelas pernas abaixo e precisa de fraldas, porque mesmo que eu nunca lhe tenha feito controle dos esfíncteres, porque dava muito trabalho e teria de abdicar das cervejolas, ela despeja para onde está virada. Ouviram? É uma ordem.
Num canto de Lisboa, bem longe daquela confusão da Venteira, o Rematador era avaliado na “performance vocal” por uma Doutora cujo canudo era desconhecido, de um Centro que todos diziam ser um “Modelo” e que para isso necessitava de pôr a andar dali para fora, e para bem longe, os mongas que “davam muito trabalho”, ficando somente os candidatos de “sucesso garantido”. Tinham a mesma política que os colégios privados, ou seja, “fora com os destravados xungosos, só queremos os intelectuais”.
- Vou aplicar-lhe um teste para medir a quantidade de palavras que tem na garganta, - explicava aos técnicos que tinham tido o azar de ir à consulta com o Rematador, e cuja especialidade não era a da voz.
Assim não haveria testemunhas do embuste. A aplicação do Protocolo foi tão rápida, que nem a avaliadora percebia as perguntas que fazia, apesar de ser obrigatório que o Desaparafusado desse a resposta correcta, para assim poder pontuar e subir na vida.
- Imagina que este porco cor-de-rosa é branco. Onde é que ele está? – Foi a apoteose final.
O Rematador olhava para o tecto, com o “imagina” dava sinais de convulsão iminente, acerca das cores a cara revelada ser analfabeto, e quanto à posição limitava-se a olhar para o tecto. Quanto à avaliadora, apresentava um cabelo mais sebento que o do avaliado, e nem se dignava a olhar para o monga, tal era o frete com que estava ali. A única satisfação é que este ficava já aviado e só voltaria daqui a um ano, caso não morresse. Quanto a ela escreveria na agenda “missão cumprida”. O teste acabou tão rápido como tinha começado e as conclusões revelaram-se delirantes:
- Um breve olhar pelos gatafunhos que eu fiz nesta folha revelam-me que o monga deverá ter um Q.I. de 4 e está a desenvolver uma gaguez!
Assunto encerrado, regresso à nossa querida casinha. A terapeuta Bélinha, a verdadeira técnica, foi informada do incidente com a sebosa e limitou-se a responder com desprezo:
- Gaguez?! Mais o miúdo ainda nem começou a falar!
Estávamos a anos luz daquele “Centro Modelo” que se antecipava aos acontecimentos. Em frente destas cabeças “iluminadas” qualquer pai que baixasse os calções e mostrasse os tomates arriscava-se a que lhe dissessem que iria ter um filho coxo.

Sunday, January 13, 2008

O Fugitivo

                          Camarada Choco


                                            Aventura 53


O dia do Juízo Final chegava solarengo, toda a Cooperativa estava em efervescência. O “Dia do Faz-de-Conta”, comemorado de Norte a Sul do país, mais conhecido como a “Festa do Natal”, estava programado para arrancar às 14H00 e representava o culminar de mais um ano civil de Reeducação, uma espécie de “Balanço Pedagógico”, para o qual todos tinham sido obrigados a participar. Davam-se os últimos retoques nos mongas, o Vira-Bicos, mais uma vez, olhava para os “números” dos outros como uma perda de tempo, querendo manter-se no top daqueles que conseguiam pôr uma plateia em sono profundo trinta segundos depois de chegar ao palco, e os “voluntariamente obrigados” rezavam para que o dia passasse depressa e que os seus entes queridos não aparecessem para os verem a fazer figuras tristes. O estranho “Espírito de Natal” era o responsável pela paz, podre, que se vivia desde manhã e pelo aparecimento, por geração espontânea, dos representantes do poder local e por outros “artistas” que, afinal, também se preocupavam muito com os Desaparafusados, principalmente no dia de cada mês em que pingavam nas suas contas os eurozitos para os “incluir” na casa dos outros.
Duas horas antes as carrinhas dirigiram-se, carregadinhas de “artistas”, sinal de que cada vez eram mais, tudo graças à tecnologia e aos remédios milagrosos que ousavam contrariar a Natureza, e torná-los, mais ano menos ano, numa classe maioritária e esclavagista, para o Cine-Teatro da Amadora. Os Aparafusados tinham de dar os últimos retoques e não os podiam largar, por isso ia tudo ao molho, e já sem Fé em Deus, para o último ensaio, dos que iam para o palco e dos que ficavam na assistência. Com um pouco de sorte metade adormeceria e acabariam por não chatearem. Afinal de contas, a festa não era para eles, tudo não passava de Aparafusados a fazerem figuras tristes para outros Aparafusados, tendo à mistura um ou outro Desaparafusado domesticado, para fazer género.
- Onde está o Fadista? – Perguntou de repente a Pirosa acordando com violência as colegas, que tinham adormecido com a seca que a Stora lhes dera.
- Eu vi-o hoje de manhã, - respondeu a Dona Piúlia, revelando a eficácia dos Tegretóis que andava a tomar, ao mesmo tempo que punha uma mão sofredora na barriga. – Eu juro que em 2008 vou pôr um ponto final nas “baixas”.
- Cruzei-me com ele ontem a caminho do “Bar Saco Azul”, - informou o Castanheira ao mesmo tempo que tentava ligar ao Primo do Choco, que tinha ido com o Porres aos Psicotécnicos obrigatórios para motoristas destravados.
O Fadista não constava na plateia, não estava a ocupar nenhum dos cagadoros da casa de espectáculos e no balcão só estavam os técnicos camarários com ares de mongas. O mais antigo e resistente Cliente (o nome agora politicamente correcto para mencionar “monga”, que pelo andar da carruagem futuramente talvez fosse substituído por “engenheiro”) , que ameaçava chegar aos 100 anos, a derreter-nos o dinheiro que tão esforçadamente descontávamos para os impostos, e enterrar-nos a todos pelo caminho, não constava na sala e deveria constar porque se esperavam os pais a qualquer momento e não era lá muito correcto informá-los de que se tinha ausentado para parte incerta. A comunidade de Aparafusados entrou toda em Alerta Vermelho, toda (?!), toda não, o irredutível Vira-Bicos estava mais preocupado com o seu fato de Undertaken do que com o fugitivo. Iniciou-se uma busca. Onde é que se teria metido o monga pitosga, que nunca largava o rebanho? Porque é que tinha dado o “grito do Ipiranga” antes da chegada dos papás? Revistou-se a Escola de alto a baixo, não fosse ter sido engolido pela praga de tampinhas de plástico que iam lentamente engolindo o espaço reeducativo. Pelo caminho contaram-se histórias de outros desaparecimentos semelhantes, como daquele que também se ausentara duma festa na margem sul e reaparecera dois dias depois na festa familiar de comemoração do seu desaparecimento e da vinda da respectiva indemnização.
- O show must go on, o Mocho não faz cá falta nenhuma. Vai-se à loja chinesa aqui da rua e há lá muitos iguais a ele, - disse o undertaken ensaiando um Ranjamba.
A Carris já estava parada, a Menina Tatrícia e a Dona Pilca tinham sequestrado um autocarro e só o deixavam continuar a viagem se os funcionários telefonassem para os colegas e inspeccionassem os restantes veículos.
- A esta hora já está nas Docas a tomar um copo, - disse a Tareca, a mais empenhada nas buscas.
- Raio do Mocho, tinha o dia todo de amanhã para desaparecer, - resmungou a Menina Tatrícia, enfiando no bucho uma bolinha de Berlim com creme, mantendo assim os níveis de Glicose necessários para a busca.
- Calma, calma, não quero que isto se transforme na anarquia habitual, - gritou o Nélinho, armado numa de “Sem Canudo”.
- Já largaram o Porres, ele tem um faro apurado, que é para compensar o lapso da perna.
- O quê, chumbaste? – Perguntou o Castanheira quando atendeu a chamada do Primo do Choco.
- Disseram-me que não bato bem da bola, acusaram-me de ter a junta da cabeça queimada, só porque lhes disse que andava a transportar cavalos. Eu tenho lá culpa que o Rodrigues me mije a carrinha todos os dias e que a Papoila me trinque os assentos, mesmo sem dentes. Mas o mais incrível é que o nosso colega Porres passou sem uma nódoa. Até apanhou a nota de “muito sensual” na prova do andar.
- Isso foi por causa de ter tido uma “Escola de Condução de Carroças”. Fez muitas amizades, tratou do exame por telefone.
- Bitó, Bitó, - dizia o fugitivo para o senhor Armando do quiosque.
- “Bitó”?!! Não conheço essa revista. Ó Virgínia, vem aqui para ver se percebes o que é que este chinoca quer. Já está aqui à meia-hora colado às revistas “Gina” e encheu-as de perdigotos.
- Bitó, Bitó, - insistia o Mocho.
- Tem cara de tarado, já lhe viste as lentes, parecem fundos de garrafa.
- Achas que é um pedófilo? – Perguntou a esposa do dono do quiosque, aproximando-se do estranho. – Tenta despistá-lo.
- Bitó, Bitó, - gritou alguém de longe, acenando com a mão.
- Outro?! Vem aí outro chinoca, mas parece ser pior, vê como ele tem um andar esquisito. Fecha a loja, senão eles ainda nos comem.
O encontro do Porres e do Mocho significou o retorno à calma de uma instituição à beira de um ataque de caspa. Fechados no quiosque, o senhor Armando e a dona Virgínia ouviam agora um estranho diálogo, que só podia significar uma coisa, o início da Guerra dos Mundos.
- Bitó, Bitó.
- Bitó, Bitó.
- E haviam logo de estar enterrados aqui, com tantas lixeiras…
- Parques, Armando, parques…
- …com tantos parques que tem a Porcalhota.

Tuesday, January 08, 2008

Dentadas à Desgarrada

                         Camarada Choco

                                                                   Aventura 52

Quando entrei na Escola parecia que estava no Líbano. O caos não era o normal, porque os feridos eram diferentes: ao Senhor Pintor faltava-lhe um pedaço da mão, apesar de ele coxear para “pintar a manta”; a Menina Tatrícia andava à procura duma parte da bochecha, não sendo capaz de pronunciar os “r”, e à Doutora Sem Canudo ainda não tinham feito o levantamento dos danos, mas era o suficiente para accionar o seguro e assim ser contemplada com um décimo quinto mês, mordomia esta vedada ao pessoal menor. O teste-surpresa de Filosofia de uma das Trabalhadoras-Estudantes das “Novas Oportunidades”, tinha desaparecido no meio da confusão e ela agora receava aparecer na próxima aula, porque assim tinha de fazê-lo lá e só sabia preencher o cabeçalho. Fora por isso que o Professor lhes dera o enunciado duas semanas antes, para que o sucesso fosse garantido, e a estatística governamental melhorasse. A causadora desta cena apocalíptica, que ferira três e causara insucesso escolar a outro, tinha sido a Maria, uma utente com nome de tia mas descendente da Marreca de Monsanto, colega de profissão da mãe que, pela milésima vez se tinha passado e levara tudo à frente, mesmo o Senhor Pintor, que era dotado de um corpinho que lhe tinha valido um convite, em 1968, para o “Concurso RTP da Canção”, como costumava contar. A Doutora Sem Canudo já estava com a situação controlada e encontrava-se na Sala dos Presentes de Casamentos, Baptizados e Funerais a interrogar a fera.
- Se tu continuas a Desaparafusar expulso-te da minha propriedade…da Escola e vais directamente para a Quinta dos Super-Desaparafusados, - ameaçou, protegendo-se duma das mãos da Maria, que lhe tentava agarrar o lençol…o vestido.
- Não, eu juro que não dou mais dentadas, - suplicava a arguida.
- Ai não dás não, porque se o fizeres vais directamente para a Universidade.
- Dá-me um comprimido dos brancos, - pediu a Fera Amansada.
- Qual comprimido, qual carapuça, - tu tens de te controlar.
- Eu preciso, eu preciso de um comprimido, - avisava a Desaparafusada.
- Não há comprimidos, acabaram, - explicou a Madrinha.
- Há, há, eu hoje fui com a outra à Farmácia, durante a minha aula de Treino Social, que inclui uma passagem da Técnica pelo Cabeleireiro ou pela Loja Chinesa, e vi-a a comprar desses comprimidos, - dizia, já um pouco alterada a Maria, acusando sub-repticiamente a Doutora Sem Canudo de estar a mentir, comportamento este vedado aos Desaparafusados, mas de uso diário pelos Aparafusados.
Era por estas e por outras que a candidatura do Camarada Choco aos destinos da Nação representava uma ruptura com a velha e gasta “Inclusão”. Os Desaparafusados eram a maioria, e por isso o Poder pertencia-lhes por direito próprio. E que não viessem com a esfarrapada desculpa de “Desaparafusado Não Vota porque é Desaparafusado”, porque então teriam de se explicar qual o conteúdo encefálico daquelas santas alminhas que os partidos dos Aparafusados iam muitas vezes buscar ao norte do país em grandes camionetas, com a promessa de uma ida a Fátima e só paravam em Lisboa para aplaudirem um candidato vencedor ou apoiarem uma causa ambiental, revelando-se todas as vezes uns autênticos “vegetais” quando questionados pela Comunicação Social. E se não queriam misturas, então que o país se regionalizasse de vez para haver um exclusivo para Desaparafusados, uma espécie de Cooperativa Gigante. Seria mais barata e muito mais eficaz do que a Desaparafusada Lei da “Rampinha obrigatória em tudo o que é Prédio”, para que de cem em cem anos lá fosse um cágado visitar a prima do décimo andar. Mas há conta disto tudo parasitavam muitos Aparafusados que a única coisa que sabiam fazer era chular. E era um “Grande Basta” que o Camarada Choco vinha prometer.
A Maria sabia que as palavras da Doutora Sem Canudo eram musica para os seus ouvidos e espectáculo para os outros, pois o vigésimo subsídio dependia da sua presença vitalícia ali, com e sem dentadas, e disso a Madrinha não abdicava porque precisava dele como de pão para a boca. Por isso, quando ela voltou as costas presenteou-a com um manguito dos mais elegantes símbolos pictográficos para a comunicação (S.P.C.), pretendendo com isto dizer-lhe, “a mim ninguém me muda”!
Cada uma à sua maneira anda à procura de um rumo para a vida. Aqui estiveram duas criaturas frente a frente, sendo cada uma o espelho da outra, uma Desaparafusada a tentar aparafusar-se e uma Aparafusada completamente desaparafusada. De cada vez que se cruzam têm de encontrar um ponto de estabilidade, que lhes confira o mínimo de convivência pacífica. Sem este olhar mútuo sobre o que cada um produz, o sistema funciona de modo incompleto, tornando-se demasiado redutor. As crises da Maria são sempre um estímulo à melhoria do desempenho profissional da Doutora Sem Canudo, porque uma Desaparafusada que se preze não cede a nenhuma ideia feita, a nenhuma retórica, que leve a dentadura a ficar saciada. Obedece sim a uma tensão, com princípio, meio e fim. E todos têm de esperar pelo fim, tudo o resto é conversa!
P.S.: Já fazem parte desta Campanha as aventuras anteriores:
Nº - 48 - Buffo-Terapia
Programa de Governo – Parágrafo 1 – Fim da Exploração dos Desaparafusados
Nº - 49 - Um Jantar no Farwest
Programa de Governo – Parágrafo 2 – Pôr ordem nos Aparafusados

Saturday, December 22, 2007

Um Jantar no Farwest

                          Camarada Choco
                                           Aventura 51

A festa já ia longa, o Vira-Bicos, o Cabo Pilas e a Psicóloga Loira ocupavam alegremente o piano e davam uma seca monumental aos clientes, cantando “Menina que estás à janela a ver o vizinho a mijar”. De repente entrou pela “Casa de Pasto” um branco em fuga, perseguido por dois pretos em fúria, precipitando os acontecimentos. Recuemos no tempo e deixemos estas típicas cenas de Massamá. Se não fossem estas almas caridosas, o “Gang do Trio Odemira” nunca largaria o piano e teria entrado pela madrugada a dentro a tocar à desgarrada o “Apita o Comboio”, com o Cabo Pilas a fazer de maquinista, da Linha da Caparica. Momentos antes o Virgulino, depois de ter mamado dois “Sumóis de Chouriço”, despejava “Phónixes” e perdigotos sobre os colegas, mostrando que este é que era o seu estado sóbrio. O pior foi quando quis exibir o seu papagaio e não encontrou a entrada da toca.
- Escondam-se debaixo da mesa, - ordenou a Afilhada da Tarde, a mais graduada do grupo, quando um dos pretos resolveu baptizar com uma garrafa de tintól a mona do branco.
- Chamem a Polícia, hou, hou, hou, - disse a Dona Pilca saltando para cima da mesa e começando a dançar uma Polka, com uma banana a fazer de microfone e um cabelo estilo sueca, depois de ter entornado por cima de si, com a emoção, o jarro de sumo de limão.
- Cala-te ò mulher, - gritou a Menina Tatrícia. – Mas isto são lá horas para cantares. Protege-te porque começou uma guerra e eu não quero perder-te. Preciso de ti para mais uma encomenda de 1000 pintos.
A lotação debaixo da mesa era de dez almas, mas devido à luta pela sobrevivência estavam lá trinta, muitas delas avantajadas. No tampo da mesa o Senhor Pintor gritava “agarrem-me senão eu vou-me aos africanos”, mas estava entalado entre várias frangas e não queria perder pitada da criação. A Pirolito aproveitou a ocasião e aplicou o que tinha aprendido na Bufoterapia, ficando o esforço documentado no cantinho de uma fotografia. Assim como entraram, os intrusos saíram, deixando no chão o cliente do INEM, que estava a ser sujeito a um intenso interrogatório do Cabo Pilas:
- Porque é que o senhor escolheu o “Porco Ibérico” como local de actuação? O piano está por conta dos “3 Estarolas Desaparafusados” e eu não pretendo largar-lhes as teclas tão cedo.
Lá fora a confusão no trânsito era caótica. A Fisio Raposinha tinha arrancado a alta velocidade em sentido proibido e por pouco não passara a ferro um agente da autoridade que estava de folga e com os copos. Para agravar a situação a Terapeuta Zézé ameaçava-o com um guarda-chuva chinês, caso ele insistisse em incomodar a colega. O Coronel Tapioca andava desesperado a reunir o rebanho tresmalhado, que tinha arrancado em várias direcções e arriscava-se a passar a noite num dos inúmeros bairros de sonho, que fazem da nossa capital uma típica região africana. As coisas amainaram com a chegada dos Robocops. O Cabo Pilas estava agora no exterior a tentar dar as coordenadas dos fugitivos, usando a longa experiência adquirida no bar do quartel de Queluz a servir penaltys aos oficiais, mas a polícia nem o via, nem o ouvia, porque estava muito escuro ao nível do passeio e as cabeças deles tocavam no topo dos candeeiros. Lá dentro os “3 Estarolas Desaparafusados” estavam agora reduzidos a dois, que insistiam em cantar “Eu vi um Sapo”, dedicado a um colega, mas agora dirigido ao moribundo.
- É para animar, - dizia o Vira-Bicos, dando uma entrada grátis para uma sessão de “Bufoterapia”, que incluía uma refeição de feijoada na véspera, no estabelecimento da Dona Espatinha.
- Agarrem-me que eu vou-me aos negritos, - gritava o Senhor Pintor a tentar impressionar as frangas, que agora se tinham aninhado no seu colo e lhe desestabilizavam o frango.
Lá fora a polícia já tinha um suspeito, um indivíduo fininho com um bigode de três pêlos, e semelhante ao “Topo Giggio”, que insistia em gritar “Phoonix”.
- Deve estar a avisar os blacks, - explicou o chefe. – Levem o lingrinhas para a esquadra.
Quem salvou a situação foi, mais uma vez, a Coronel Tapioca, que explicou ao graduado que o homem só tinha um neurónio e que a culpa era do anúncio da PT, que andava a desestabilizar os Desaparafusados. Debaixo da mesa a Chefe Bélinha desabafava com a Dona Sãozinha, explicando-lhe que, com a sua saída, os Serviços Administrativos estavam à beira do caos.
- Então e a minha sucessora?
- Está sempre estranhamente com a cara colada ao telemóvel.
- Se calhar a miúda está a precisar de óculos?!
- Óculos?!
- Pelo que me conta necessita, no mínimo, de 3 dioptrias e 1 Tegretol.
A pouco e pouco o ambiente foi regressando à normalidade, e as meninas retornaram às cadeiras ao som da “Garagem da Vizinha”, que o duo insistia em cantar, mesmo com os clientes a tapar os ouvidos.
- Preferia que os manos voltassem, a ter que ouvir estes Aparafusados com vozes Desaparafusadas, - queixava-se o Nélinho.
- Kodac, o que é que fazes aqui? – Perguntou a Psicóloga Morena aparecendo por detrás do Cabo pilas, que recuperava da emoção sentado na borda do passeio.
- Se a Doutora Sem Canudo estivesse aqui, eu tinha-a atirado cima dos manos e agora estávamos a comemorar o nosso 25 de Abril, - desabafava o Senhor Pintor.
- Ou então amanhã havia mais dois estagiários na nossa escolinha, - atirou a Pirolito, levantando uma das pernas.
Para a Dona Sãozinha e a Chefe Bélinha a noite já ia alta, pois quando a Coronel Tapioca fez a chamada ao pelotão dos Aparafusados, deu por falta das duas, acabando por descobri-las a ressonarem encostadas uma à outra debaixo da mesa.

Thursday, November 15, 2007

Bufoterapia

                          Camarada Choco
                                          Aventura 50

Os Desaparafusados são “pau para toda a obra”, à conta deles vão aparecendo, por geração espontânea, técnicos para todo o serviço. São os responsáveis por uma nova modalidade de “corrida ao ouro”, que tem o pomposo nome de “Acção de Formação”, onde os responsáveis se apresentam com currículos vertiginosos cheios de “Licenciaturas no Togo”, “Mestrados na Guiné” e muitos diplomas ganhos na farinha “Pensal”. O antigo “Chá Tupperweare” foi agora substítuido pela “acçãozinha de formação”, que vai directa para o papelinho da “experiência profissional”. E tudo isto a pensar na recuperação dos Desaparafusados e na carteira dos Aparafusados. Seguindo a linha desta intelectualidade a funil, a minha pobre escolinha foi assim contemplada como uma novidade, a “Buffo-Terapia”, que permitia aparafusar o pessoal através de sons. Mais felizardos estavam os Aparafusados, pois a acção destinava-se exclusivamente à elite. Mas que sons poderiam sair das pandeiretas, se de muitas das bocas raramente se viam os dentes e os encéfalos estavam forrados de gases? Mas quanto a isto nós, os ilustres Desaparafusados, sabemos muito bem distinguir os Aparafusados que “vestem a camisola” e os que não têm “outro remédio”. E podem tirar todos os cursos que quiserem, que de nós só levarão “buffas”. Mas, voltemos à questão dos sons que fazem milagres. Pus-me a imaginar:
- Bom-dia senhores doutores Aparafusados, eu sou o Mestre Roque Gamanço e estou aqui para vos fazer um desafio, que é aproveitarem o vosso próprio meteorito intestinal para a reabilitação dos Desaparafusados….
- AROOOOOONC – arrotou um formando, abanando as orelhas.
- Santinho, - disse o formador e continuou. – Como já viram, os gases encefálicos também servem.
- Desculpe, mas saiu-me.
- Pum, Pum, - saudou outro, levantando a perna.
- Já estou a ver que compreenderam qual é o lema desta acção de formação: liberta o gás que há em ti!
O ambiente estava pesado, um dos formandos já estava com cara de cu.
- Mas que javardice é esta? – Gritou a Doutora Sem Canudo, interrompendo-me a meditação.
Tinha dado de caras com um vaso xungoso, cheio de lixo e com um pau carunchoso armado em rosa.
- É o Cantinho da Pilca, - explicou a Menina Tatrícia, não se escapando de levar um empurrão da colega de meia idade, que com o desequilíbrio caiu ela aos pés do touro.
- Dona Pilca, que porcaria é esta? Já não me chegavam os candidatos a “Buffo-Terapeutas” do primeiro andar, e agora é isto? Ainda vem aí uma inspecção e passo a ter três queixosos na fila da porta: a Pirolito, o Cabo Pilas e a Inspectora. Eu vou recolher os donativos do café, atender os queixinhas e quando voltar quero aqui um jardim suspenso.
Cinco minutos depois ninguém conseguía passar para o refeitório, pois a Dona Pilca tinha juntado todos os vasos da Venteira e erguera, com raiva, a Floresta Mágica Mongólica. Pelo caminho tinha dado um chuto na velha que insistia em pôr os caniches a cagar na floreira da entrada.
- Agarrem a Lolita, - gritou a Kalélé.
Mas foi tarde de mais. A Lolita embrenhou-se no matagal e não saiu pelo lado do refeitório.
- Não me digas que trouxeste uma planta carnívora, - disse a Pirosa.
- Mais uma dessas e deito fogo a isto tudo, - berrou a florista, ficando de imediato com um bigodão, sinal de que a tampa ia saltar a qualquer momento.
Mas havia ainda mais um problema grave: uma “Manifestação de Tísicos”, liderada pela padeira Tareca, que ameaçava partir a loiça toda se não lhe dessem a conhecer a já famosa “Lista dos Bichados”, gamada pelo poder intermédio, mas que conseguira deixar a culpa no colo do Trio Odemira dos Serviços Administrativos, a Sãozinha Júnior, o Pato Donald e a Madame Patológica. Só acalmou quando começaram a distribuir as fotos íntimas do pessoal, que iriam levantar a ponta do véu da “verdade da mentira”.
- Aiiiiiiiii, - gritou a Terapeuta Zézé ao confirmar que o pulmão direito estava meio-cheio de tinto branco da Luz.
- Alto e param os pincéis, - ordenou o senhor Pintor, - eu quero que me digam se morro com o pincel rijo, como sempre desejei, ou que a brocha vai cair de caruncho por causa deste bicho que anda aí à solta?
O caos desta típica aldeia gaulesa da Venteira chegara cedo. Seria um sinal do fim do mundo?

Friday, October 26, 2007

O Construtor de Sonho

                          Camarada Choco
                                           Aventura 49

Há um velho ditado no Oeste da Brandoa que diz: “ Se te dizem que esta obra foi feita por um Monga, desconfia. Eles geralmente pouco fazem!”
E é a pura verdade! Todos sabem disto, mas negam-no se lhes perguntarem, apesar de andarem sempre a dizer aos miúdos e graúdos que é feio mentir. Assim, se olharmos para um quadro numa exposição camarária de “pessoal diferente”, noventa por cento da obra foi feita pelo técnico responsável, tendo-se limitado o autor oficial a uma simples pincelada, que estragou tudo o que já estava feito, obrigando o Aparafusado a fazer umas horas extraordinárias, de borla, para repor a legalidade da obra. Se recebermos um postal de Natal assinado por um desaparafusado desconfie-se, porque noventa e cinco por cento do presépio foi feito pela auxiliar, pois geralmente a responsável pela sala estar sempre algures a fazer as eternas, e já famosas, avaliações, que lhe modificam sempre o formato do penteado. O desaparafusado, como diz a tradição, é sempre o responsável pelo único olho com que o Menino geralmente aparece na inspecção final, obrigando a Comissão da Perfeição a colocar-lhe o berlinde em falta, pois naquele espaço são proibidos objectos imperfeitos, porque ninguém compra. Passa-se o mesmo com os Pirilampos: as velhas analisam primeiro o bicho antes de largarem a moedinha! Muitas das vezes regressam no dia seguinte para o trocarem por outro mais “perfeitinho”. E tudo isto em nome dos Desaparafusados, que tanto amam. E sabonetes “made in monga” com imagens de santinhos? Eles nem entram na sala de produção, não vá deixarem escapar pedaços de baba, que transformariam o cheiro a “Rosinha Manhosa” em “Sebo de Mongólia”. Mas não é de “acessórios” que esta história irá tratar, mas sim de “tijolos”. E como sempre em tudo o que está relacionado com este Clube das Mil e Uma Noites, tem o dedo da Madrinha. Decidiu um dia que os técnicos tinham direito à sua própria vocação atirando, mal entrou na propriedade, com o Nélinho para o sótão, de encontro ao “cimento e ao chumbo”.
- Quero vinte mil carcaças de betão para amanhã, – ordenou.
- E ajudantes?
- Podes ir ao rés-do-chão requisitar colegas e traz também uns desaparafusados para fazerem número. Aliás, o projecto foi a pensar neles, como todos os que me sustentam.
O Nélinho fez uma entrada de Açor nos gabinetes das colegas, trazendo de arrasto a Terapeuta Zézé e a Fisio Raposinha, pondo-as no ninho e obrigando-as a meter as mãos na massa.
- Só vos devolvo os “Cartões de Ponto” quando fizerem o servicinho, – gritou, tirando a camisa.
- Mas eu tenho Clientes à minha espera, – disse timidamente, levantando um dedo, a Raposinha.
- Caluda, quem manda neste sótão sou eu, o Doutor Nélinho, Sobrinho-Neto da Doutora Sem Canudo. Vou até ao bar tomar o pequeno-almoço e aproveito para ficar para o almoço. Quando regressar lá para o fim da tarde, quero cinco paletes empacotadas. Lembrem-se que quem vos paga os ordenados e os subsídios da outra, – e apontou para cima, mudando rapidamente o indicador para baixo, quando se apercebeu que estava no sótão, – são estes tijolos de betão com prazo de acabamento. Dos Mongas não esperem receber nada, pois eles só são úteis para a isenção do IA e do IVA, e nem conduzir podem.
- Estou com falta de ar, - queixou-se a Terapeuta Zézé, tentando meter baixa médica.
- Eu já lhe curo a emoção. Eu só tirei a camisa para vestir a bata. Estava a pensar em paródia? Comigo “conhaque é conhaque, trabalho é trabalho”, mesmo que aqui só beba conhaque, ouviu? Vá, siga já para os tijolos!
A “Dança das Cadeiras” é uma constante neste estabelecimento de reeducação, e quem hoje está sentado amanhã poderá não ter assento. Enfim, modernísses!

Friday, October 05, 2007

O pêssego da Brândoa

                          Camarada Choco
                                           Aventura 48
 
O produto secreto contra a sarna usado uns anos antes pela Protecção Civil, e que tinha deixado marcas na parede, estava agora a provocar os efeitos secundários, escondidos deliberadamente por quem pretendia tomar o poder: uma praga de estagiárias! E a situação era tão grave que elas ameaçavam ultrapassar o número de Clientes (nome pomposo atribuído agora aos Mongas). A cada dia havia uma novidade, elas apareciam por Geração Espontânea, eram de todas as formas e feitios, altas, baixas, gordas, magras, velhas, brancas, pretas, coxas, grávidas e……mongas! E tudo acontecera desde o momento em que a Doutora Sem-Canudo se auto-nomeara “Directora Geral”, com o correspondente auto-acréscimo de ordenado. E tudo dentro da Lei! As finanças estavam difíceis, metade do orçamento ia para a Folha de Pagamentos da Madrinha, que fazia colecção de cargos, como o major de Gondomar, e a outra parte esgotava-se nos almoços obrigatórios nos dias das reuniões às 10H00, na rua ao lado, diários, e que incluíam também o consumo de gasolina e gasóleo, caso se utilizasse o autocarro com a plataforma. Se a reunião fosse com as doutoras sem canudo do costume, a concorrência obrigava ao uso do “Machibombo com Elevador”, para que a Auto-Directora Sem Canudo da Venteira humilhasse as adversárias no momento em que lhes aparecia vinda do céu, tal qual um anjo. Mas um reinado destes tinha custos, muitos custos, e como a ambição era grande, e o mealheiro estava vazio, muito vazio, tinha-se de cortar nos bolsos dos outros. Daí esta invasão de estagiárias, de borla, escravizadas e que não tinham direito a reivindicações. A verdadeira história começa aqui!
A Beta do Samecas estava à beira do suicídio, o pau com que ele passara em direcção à casa de banho não tinha tido a influência das suas carícias. Havia monga no terreno e ela jurava fazer justiça com as próprias mãos, com a que funcionava e com a que estava gripada desde o nascimento. O Samecas estava em “estado de unicórnio” permanente, com o chifre a meio do corpo, e a cara dava a impressão de estar perigosamente perto da sensação de não ser aquele que acreditara ser. E tudo isto causado pela nova estagiária que resolvera sentar-se ao seu colo, contra todos os princípios que faziam dela uma aparafusada, dando-lhe de enfiada um ósculo violento no pescoço, arriscando-se a engolir um dos seus maiores quisto, o conhecido “Pêssego da Brandoa”. Estaria ela a usar novos métodos pedagógicos de reabilitação de desaparafusados ou seria ela própria uma estagiária monga, descoberta exclusiva da Doutora Sem Canudo, única directora com queda para este tipo de fenómenos do Entroncamento? Quando tentaram contactar com a responsável estava com um problema agudo entre as mãos: a Afilhada, agora com o nome próprio de Fidélia, recusava-se a trazer uma das carrinhas da colónia, alegando não ser a sua e ameaçando vir de burro. E nesse preciso momento a Bélinha, a irmã do Choco, estava congelada, em estado de Santinha, sinal de que a tradição epiléptica da família se mantinha. O brasão do Conde Chocalheiro, ilustre monga do século XVII, continuava a dirigir os destinos daquela ilustre família. À tarde a mães do Samecas reclamou as dentadas que o filho levava no lombo. Foi informada de que a responsável era a Belucha, a sua eterna noiva, agora possessa de ciúmes, pois o “Pêssego da Brandoa” estava-lhe destinado há muito, prometido para a Noite de Núpcias, e não seria agora uma estrangeira, e ainda por cima Aparafusada, que lhe iria roubar o seu “fillet mignon”. Por isso tinha decidido marcá-lo, da mesma maneira que ao gado, para acabar de vez com a concorrência.