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315 estórias

Sunday, August 30, 2015

24 horas colegiais

Comandante Guélas

Série Colégio Militar



O Colégio Militar era o dono do nosso tempo, por isso só quem lá viveu é que poderá compreender esta partilha de fragmentos de nós, que nos dão um caráter único que continua vivo nas nossas memórias. E porque há memórias que nos acompanham desde muito novos, criámos uma memória que se confunde com o real. Na mística abundam as palavras “bondade”, “senso”, “equilíbrio”, “determinação”, “coragem”, “brio”, “dignidade“, “honra”, e agora finalmente “beleza”, com a entrada de raparigas. Era um espaço que fervilhava de vida, vinte e quatro horas por dia, sete vezes por semana, com atividades programadas pela instituição e outras dependentes do livre arbítrio dos alunos, desde um Mini a cair na piscina vazia, passando por banhos clandestinos noturnos, como o que ocorreu no dia 24 de maio de 1975, que teve um fim alucinante quando apareceu o vigilante, com uma parte da rapaziada a fugir para dentro do ginásio, onde aproveitou para exercitar números arrojados de circo. O Miranda já tinha andado numa roda viva a tarde toda, com o 191, o 125, o 124, o 151, o 601 escondidos em locais estratégicos da rua de acesso ao picadeiro, atirando para o alcatrão, à medida que passava, latas da Compal, cujo barulho o obrigava a investigar quais os responsáveis pelo delito; passando por “tarzans” das janelas da primeira ou da segunda companhias para cima de molhadas de colchões junto das peças de artilharia, ou “tunnings” com o carro do capitão Caetano, cujos artistas acabaram por ficar detidos para averiguações durante parte das férias grandes; ou atividades de sobrevivência, como por exemplo conseguir chegar à primeira formatura do dia, após o toque da corneta, onde os atrasados optavam sempre por fechar-se nas latrinas e simularem o parto de um valente cagalhão, com os restos do Amarelo do jantar do dia anterior, mas de uma maneira geral não conseguiam enganar os graduados, que davam pela falta dos petizes no pelotão e faziam de imediato revista aos cagadouros, que nestas alturas pareciam estar sempre em hora de ponta, e tal como o algodão a água transparente não enganava, davam ordem aos petizes para irem para a fila do pequeno almoço antecipado, um abrunho entre os olhos para cada um.
As aulas decorriam dentro da normalidade, neste dia onze de janeiro de 1973 quando o Ferrari, professor de Português, apareceu mal disposto e por isso começou a fazer perguntas pela turma, e como não obteve qualquer tipo de respostas aceitáveis, descarregou a raiva no último, o Escalope, ao mesmo tempo que gritava:
- Mas porque é que me esqueci da caderneta?
- Piu, piu, piu, és burro, - exclamava o Falcão, professor de matemática, com a boca colada ao ouvido do Cão.
- O senhor é um xisto com pernas, - classificava, já desesperado, o professor Perdigão com os olhos na cara do Elefante.
- Ó moço, tás ta rir? – Perguntava o Semita no laboratório de Química ao Esperma, que estava divertido com os erros do ajudante, o Morais, também conhecido por Ruca. - Anda aqui à pedra…num sabes nada, bais pra casa com uma bengala.
Numa sala de aula em autogestão, cujo professor tardava em aparecer, e o oficial de dia ainda não tomara uma decisão, jogava-se ao jogo das palavras, mais propriamente uma guerra de dicionários de todos contra todos.
No ano de 1974 o estaleiro das obras que decorriam para os lados do pavilhão de Ciências, transformou-se num espaço de atividades gímnicas não curricularmente previstas, cujo grau de perigosidade estaria hoje a ser comentado pela procuradora Joana, senhora de uma cara que fazia a mulher do Patronilha parecer uma deusa, como um local com um ambiente que “favorece o crime”, mas que naquele tempo servia para tornar a rapaziada rija e apta para enfrentar com determinação o futuro. Por isso quando o 607, o 125, o 653 e o 191 resolveram saltar ao mesmo tempo para a rampa feita de restos de madeiras, cujos trabalhadores usavam para subir com os carrinhos de mão e despejar o entulho num monte, esperando com isso uma reação do material que os colocasse no telhado do pavilhão de Desenho, com queda direta sobre o Pina Lopes, não estavam à espera que as tábuas se partissem com estrondo, atirando os petizes de pantanas, uns para cima de pedras, e outros para junto de madeiras que pareciam pertencer a faquires, semeadas de enormes pregos com as pontas viradas para cima. Durante meses os intervalos eram tomados de assalto por jovens cheios de energia, que agora seriam classificados como “hiperativos”, e em vez de haver somente nos cacifos das camaratas os frascos com o pó amarelo para acalmar as bexigas noturnas dos mijões, estariam cheias de xaropes de “Ritalina”, a droga legal da atualidade, que torna os putos toxicodependentes desde o berço. Nestes tempos idos dos anos setenta para resolver os problemas de comportamento existiam as apresentações à alvorada, as firmezas e outros miminhos reservados para a última formatura do dia. No Colégio Militar um acontecimento fortuito poderia marcar alguém para sempre, que o diga o Alves que em 1936 para lá entrou como soldado durante o serviço militar obrigatório, começando por ser o corneteiro de serviço, nunca tendo conseguido chegar aos calcanhares do magistral cabo Estrela que, segundo a lenda, soprava no instrumento como ninguém, a quem o 15 insistia em tapar a saída de ar de cada vez o maçarico se preparava para soprar na corneta para mandar levantar a rapaziada, ação esta feita com a carícia que caracterizava o espaço educacional, que ameaçava todas as vezes fazer-lhe saltar o corta palha, que já levara um coice de raspão quando tentara limpar a cama dum antepassado do Cabeça de Mula, que lhe tinha posto o nariz à banda. Em 17 de Novembro de 1943 casou-se definitivamente com os Meninos da Luz, e quinze anos depois ganhou a alcunha de “Mirna Loy” devido ao tratamento aos olhos que teve de fazer, cujos pingos davam a sensação de que o soldado passara a pintar os olhos, mania inconcebível para um estabelecimento de ensino que só admitia nas suas fileiras futuros candidatos a cobridores, e não rapaziada que gostasse de pegar de empurrão. Como o destino queria que o soldado ficasse para sempre lado a lado com o marechal, e Ele escreve sempre torto com linhas direitas, uma porta encravada na terceira companhia em 1958 só abriu quando o soldado Alves utilizou, como último recurso, a cabeça em forma de bigorna, ganhando com esse gesto de bravura a alcunha definitiva. E a fama era tanta que em 1994 no Porto, durante um desfile militar com a presença dos Meninos da Luz, o senhor Cândido foi reconhecido pelos antigos alunos, tendo sido obrigado a sair do anonimato onde o tentaram pôr, e acenar para a multidão de camaradas que o saudavam efusivamente:
No refeitório o Horrível acabara de ser intercetado pelo oficial de dia, o tenente Mota, que estava desesperado à procura daqueles que insistiam em imitar o barulho de um peidociclo de cada vez que se afastava, por ter sido visto a rir-se, e como tal ser, por convicção, uma prática diária hoje em dia nos tribunais quando se tenta arranjar um bode expiatório, culpado pelo “ruído de vizinhança”, acusando-o de ostentar um cabelo que se encontrava fora das condições prescritas pelo regulamento, sendo por isso intimidado a apresentar-se ao Ramalho:
- Mas o cabelo não está a tocar nas orelhas, - protestou o aluno pondo-se de pé em sentido, ao mesmo tempo que se apercebia dos risos maliciosos dos colegas.
Mas o estado psicológico do tenente não permitia argumentos desviantes, por isso agarrou, como contra prova, na trunfa que povoava o coco do Horrível, dando-lhe o aspeto de uma cabeça com o formato de um ananás, transitando a pena de imediato em julgado:
- Só sais com um pente zero!
Escovinha? Com o fim de semana à porta e as fêmeas a fazerem fila para serem degustadas pelo maior cobridor da capital? Mas, como um Menino da Luz prevenido valia sempre por dois, neste caso dois cartões de identidade, o que estava na vitrine, exposta nos dias de saída, e de acesso só autorizado pelo comandante da companhia oficial, ou alguém com os poderes delegados, após revista à farda, e o clandestino, que era usado nestas ocasiões, e que isentava da comparência na formatura, com saída imediata após as aulas de manhã de sábado, bastando para isso mostrar a segunda via na portaria, com saída imediata para a…cobrição, antevendo-se já para o Horrível um qualquer prémio colegial futuro pelos vários filhos, netos, clandestinos e afins! Mas nada se assemelhava ao mustache do 144/1888, o Pinto dos Bigodes que, quando foi abatido ao batalhão colegial, levou consigo um bigode tipo piaçaba, cujo uso, por ser moda na sociedade, era autorizado no Colégio Militar, e por isso nenhum Mota o poderia pôr em causa. Enfim, modernices impensáveis nos anos setenta, em que a moda piava mais baixinha, no primeiro ciclo o comprimento do cabelo não podia ser superior aos dois centímetros, limite que passava no segundo ciclo para os quatro centímetros e no ciclo complementar para os seis. Por isso, para sobreviver no sistema usava-se toda a criatividade! 



Monday, July 13, 2015

"Operação Infante"



O Comandante Guélas
Série ISEF

 No dia doze de julho do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e quinze decorreu mais um encontro cultural/gastronómico da turma dois que albergou nos anos oitenta do século passado, durante cinco longos anos, junto à movimentada ribeira do Jamor, os rebentos da elite do Instituto Superior de Educação Física de Lisboa, colegas do ovelha negra o Mourinho do Chelsea. Assim, o Casa Blanca Beach abriu as portas para receber os betinhos da Cruz Quebrada, tendo o encontro revelado novidades, que seriam probabilidades improváveis na Estatística do século passado, ministrada pela desaparafusada Luísa Barreiros: o Jacks Cabeludo concluiu o curso e o Quim do Pénis…perdão, Ténis, reformou-se, indo fazer companhia ao veterano Pedreta, que quando questionado acerca do número de anos que trabalhara, já não se lembrava, tendo ambos agora atividades caraterísticas do estatuto, caminhadas matinais em Palmela, alimentação dos gatos vadios em Setúbal e distribuição de milho aos pombos da Arrábida. E os restantes que continuem a descontar para as suas pensões! Descobriu-se que por detrás da condição destes dois ex-(in)do(e)centes estava um facilitador, com ramificações à política, também morador na zona, de nome Anselmo, talvez com conta na Suíça como o 44, que confessou em voz alta, com a arrogância típica dos poderosos:
- “A vida inteira tive asma, e quando mudei de leite passei a respirar como um tubarão”.
Era a prova final de que naquela mesa encontrava-se sentado um elemento do gangue televisivo 'Shark Tank', e a diferença estava no prato, todos com Tainhas de Esgoto, ele com um Robalo das Ilhas do Seixal! Daí a colega Fátima, uma stora remediada, tal como a sua colega Amélia, que só têm dinheiro para passar férias na ilha de Santorini, ter necessitado de óculos para conseguir distinguir o lombo da Mugil cephalu, e não engolir uma espinha mais atrevida, que a poderia colocar no gangue do Pedreta, o “Primeiro”! À medida que a conversa desenvolvia, foram detetados dois contrabandistas, um de Beja, traficante de “Lúcio Perca”, com sandálias de reformado, sinal inequívoco da iminente mudança de estatuto, e outro das Caldas, com a exclusividade na “Amêijoa Vietnamita”, com indícios de ter um testa de ferro, o já mencionado “Facilitador”, que deixou escapar ter por hábito nadar diariamente 1,5 Km em crawl, sabendo todos que sempre tivera alergia ao cloro e o estilo dominante ser o “prego”, como se provara quando mergulhou no oceano da praia do Infante. Tinha sim uma piscina, mas para guardar o produto do Parrilha, que confessou continuar com uma “memória de elefante”, onde guardava a sete chaves a cor das cuecas da Glórinha do refeitório do ISEF dos anos oitenta, e da D. Blondina. Mas o polvo, não o da refeição, que não havia, continuou a revelar-se, quando o arrogante “Facilitador” confessou que estivera perto de acumular mais um tacho, desta vez na Federação de Triatlo, uma cortesia do seu colega Manuel. Todos se aperceberam então que as probabilidades do próximo almoço ser em Évora tinham aumentado exponencialmente! A Beta e o Beto despediram-se dos presentes, viviam agora longe da civilização, no Portugal profundo, e do Jacks, o mais cabeludo do curso, não permitiu, no final do convívio, que os colegas fizessem um “despedimento” à maneira, tendo preferido ir fazer a digestão para as águas frias da praia do Infante. Apareceu também a professora doutora Cucharra, acompanhada da tribo, recebida com carinho pela Helena, a única que parecia ainda ter os carretos no lugar. O Parrilha ainda conseguiu impressionar as fêmeas, mostrando uma fotografia do seu trator, um bicho com muitos cavalos, “capaz de lavrar todo o tipo de terrenos”, que fizera as delícias da Guida da dança, quando ele a ameaçou levar no seu Mercedes para Monsanto, após o chumbo que ousara dar-lhe na Dança, local onde iria pagar toda a gasolina. Presentes também, o Chico, novamente de mota, sinal de que perdera as memórias das quedas anteriores, o Manecas, o Bezerra, ambos com um discurso já um pouco duvidoso.

Assinado, Miguel, treinador dos “Tubarões do Seixo”, a mítica equipa da Venteira cujo “i” cai à entrada do clube!

Sunday, June 14, 2015

O Crime do Padre Viana


Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Estas estórias pretendem ser uma marca da eternidade do passado, uma emoção privada e intransmissível. Era dever dos Meninos da Luz viver a vida intensamente, e por isso estarem mais expostos ao complexo sistema da Teoria do Caos. Mal sabia o 147 que uma simples aventura de adolescente rebarbado iria fazê-lo seguir o trilho da cultura e ser contemplado, umas décadas depois, com o “Prémio Barretina”, por ter vencido na vida a soprar com eloquência na sua gaita. Foi num mês de maio da década de sessenta que resolveu alinhar com uns colegas numa visita de cortesia às Meninas de Odivelas, deixando para trás o colégio de prevenção, com o oficial de dia à sua espera, e a Deolinda, a diretora que proibira os espargos às refeições porque dizia que despertavam a líbido das alunas, a rasgar o protocolo de colaboração com os Meninos da Luz, degelo só conseguido quando o Comandante de Batalhão, o nº 8, foi obrigado a ir pedir desculpa pelo comportamento indecoroso dos seus camaradas:
- Prometo que nunca mais a intimidade deste local, tão sagrado para nós, será violado pelos meus subordinados.
Foram oito anos de tréguas até que na véspera dum “Dia da Raça” o 89, o 165 e o 376 entraram triunfalmente na alcofa das meninas, assinaram as presenças nas paredes da piscina, no espaço onde os antepassados também tinham deixado as suas marcas, apagadas com o acordo,  e espalharam papéis com reivindicações íntimas. Ninguém conseguia apagar o “ardor guerreiro” destes adolescentes com os espargos incandescentes, até nos estudos havia um professor que se gabava dos seus males de Vénus, depois de muito pressionado pelos discentes curiosos:
- Um esquenta e dos antigos, tive de levar umas belas marteladas!
As estórias do Colégio Militar são para ser mantidas debaixo de olho, o que elas são e o que elas têm para contar, mas estão todas ancoradas em realidades provadas. Havia camaradas normalíssimos que se transformavam em pessoas intoleráveis a partir do momento em que lhes davam funções de comando, passando a ficar assombrados pela emanação de desejos recalcados. E foi numa destas situações de possessão que o comandante do primeiro pelotão, da primeira companhia, deu ordem de sentido a meio da noite, porque descobrira, vá-se lá saber como, que o 45 se deitara com cuecas, um crime de lesa-pátria. E aproveitou a insónia para invocar o princípio sagrado do “um por todos, todos por um”, estreando assim a camarata cheia de ratas no enfardamento coletivo, atividade que iria tornar-se rotina durante todo o percurso escolar. A única explicação possível, tirando o sadismo, seria levar os noviços a descobrirem outra modalidade, o linchamento subsequente do Cuecas de Buda! O Colégio Militar tinha um ambiente complicado, com as suas restrições e uma autoridade que era exercida de uma forma muito rígida. Por isso o Morena antecipava-se sempre aos colegas na aula de equitação, corria como um doido para o picadeiro, para assim conseguir escolher o equino que lhe daria mais chances de sobrevivência:
- Senhor soldado, qual é o cavalo mais manso?
- É este, - respondeu, depois de ter dado um valente murro no focinho do animal, que se manteve impávido e sereno.
A excursão a Elvas tinha sido alucinante, cada Menino da Luz recebera uma nota de 20 escudos para decidir onde almoçaria, mas a certeza de chegar vivo ao destino fora sempre uma incógnita, pois os alunos teimavam em jogar um jogo perigoso, correrem ao mesmo tempo para um lado da camioneta, e fazerem o mesmo para o outro lado, o que obrigou o motorista a comportar-se como um autêntico homem do leme no meio de uma tempestade no Cabo Bojador. Só a fadiga conseguiu acalmar a rapaziada, pois os gritos dos adultos eram música para os petizes, que já tinham mudado para outra atividade  mais pedagógica, encher os sacos das sandes com os conteúdos das bexigas, e tentar acertar nos motoqueiros que iam sendo ultrapassados, ganhando com isto parte do dinheiro que o colégio lhes dera para o almoço. Uns iriam comer pastéis de bacalhau rançosos, enquanto os com mais pontaria encheriam as barrigas com bitoques no Ricochete lá do sítio.
Um dia antes o 61 fizera queixa do Semita ao Comandante do Corpo de alunos, por ele lhe ter partido na cabeça o ponteiro, que deveria servir para apontar para a ardósia, mas cujo engenheiro Grijó, e muitos outros, teimavam em usá-lo para disciplinar as ovelhas. Por isso o docente fora chamado ao gabinete do major que o aconselhou a usar “a parte mais grossa, que não se parte”! Quando se fala da formação ministrada no Colégio Militar ouvem-se as conversas mais elitistas. Na aula debitava-se Francês, mas a atividade principal era a esgalhação, com a maioria da turma de poulet na mão, a tentar chegar em primeiro lugar à meta, ao mesmo tempo que o urubu do Pequito desesperava com o “Avoir” do Elefante, o único com as duas mãos em cima da mesa. Mas como a estória já vai longa, um último apontamento. Duas horas depois de ter terminado uma sessão de cinema de uma quinta-feira, destinada aos alunos mais velhos, “A Quadrilha Selvagem”, uma escolha do padre Viana, que morreria mais tarde de ataque cardíaco dentro do seu carro, um Citroen Dyane, mas que o 191 da 1ª companhia tinha conseguido ver graças a um graduado amigo da 4ª companhia, o 592, candidato a namorado da sua irmã mais velha, a 152 do Instituto de Odivelas, que o levara escondido, o rata continuava a revolver-se na cama, sem conseguir dormir. A imagem da mulher em topless dentro de uma pipa de vinho colara-se às cuecas, as mamas a girarem silenciosamente e sem fim queimavam-lhe a cabecinha e expandiam-lhe o pescoço, que parecia ir rebentar a qualquer momento. A transição das “Ginas” estáticas para uma bronzeada sem freio nos dentes chegara abruptamente, sem aviso prévio. Sentou-se na cama, com o rosto vermelho e suado, olhou em redor, ele sabia que enquanto aquelas donzelas não o largassem, a insónia permaneceria. Quando finalmente cerrou os olhos, e julgava-se longe do pecado, deu de caras com a Rosa e sentiu a sua mão maliciosa.




Saturday, March 14, 2015

Fogo Posto


Comandante Guélas

Série Colégio Militar


As aventuras no Colégio Militar devem ser mantidas debaixo de olho, o que elas são e o que elas têm para contar, mas estão todas ancoradas em realidades comprovadas, são estórias de rapazes que se cumpliciaram para lá dos silêncios. Para muitos deles a vida colegial não tinha nada de maravilhoso, porque não fora por suas vontades que estavam ali. É por isso que o Colégio Militar sempre teve um lado sedutor, porque temos um orgulho da pertença, e um lado sinistro, porque conseguiu muitas vezes transformar alunos normalíssimos em pessoas intoleráveis a partir do momento em que lhes deram funções de comando, passando a ficar assombrados pela emanação de desejos recalcados. Apesar de as novas “Meninas da Luz” estarem tão orgulhosas da farda que vestem, cujo desejo em dias de festa é tirar uma fotografia com um antecessor, muitas têm ainda de superar obstáculos, mas como o “ardor guerreiro” ainda faz parte do hino, levantam com orgulho a bandeira de todos nós. Uma viu um dia o sonho tornar-se realidade, o camarada pôs-lhe a mão por cima do ombro, e o telemóvel registou para a eternidade aqueles sorrisos sinceros e aquele orgulho na casa renovada. Mas a amiga não teve a mesma sorte:
- Não tiro a fotografia, o Colégio Militar deve ser só para rapazes, - respondeu a seco o ex-aluno quando viu que o seu sucessor era uma menina.
Por momentos todos ficaram em silêncio, incrédulos, trocando olhares indignados, ao mesmo tempo que olhavam para os olhos brilhantes da camarada. Mas valeu a prontidão de outro ex-aluno, que se aproximou dela, e disse em voz alta:
- Tiras comigo, o número é o que menos interessa!
A Menina da Luz aprendera que ali também havia gente desta, “koninhas”, para quem o Colégio Militar deveria ser imutável, esquecendo-se que era na sua imperfeição que cabiam todas as grandezas e todas as decadências. Recuemos para um sábado de manhã dos anos oitenta, e entremos numa turma à beira de um ataque de nervos, com a saída de fim de semana no pensamento, desesperada com o tempo que parecia ter estagnado na aula de física do Semita, agora um velho professor em fim de carreira. Tinha sido recebido como habitualmente por um contentor do lixo a barrar-lhe o Volvo azul, a seguir à curva da quarta companhia, por isso não se apercebeu que os alunos acabavam de encher a calha que estava debaixo da mesa do 61 cheia de papel e alguém  ateara fogo. Depressa o fumo envolveu o camarada, transformando-o no Desejado mas, antes que virasse frango assado do Ricochete, envolveram-no com muito papel e, quando já estava em formato de múmia, pegaram nele e saíram da aula com as sirenes ligadas:
- Ti,nó,ni…ti,nó,ni…
O engenheiro Grijó nem queria acreditar, os alunos dos anos oitenta eram uns selvagens, quando comparados com os das décadas anteriores, porque em vez de fugirem ainda no exterior quando ele se esquecia das horas a jogar xadrez na sala de professores, esta rapaziada de agora abandonava o barco já em movimento, mesmo com ameaças de bengalas, bicicletas e afins:
- É gado, é gado, - gritava o Semita tentando controlar a turbe com o ponteiro, que saia em debandada do curral,…perdão, da sala de aula.
Para os “koninhas” cenas destas nunca aconteceram, mas mesmo que sejam uma realidade deveriam ficar para sempre enterradas no buraco mais fundo das nossas almas e connosco ao pó voltar. Mas porque no Colégio Militar o tempo nunca foi desperdiçado, continuemos, dizendo que a alcunha do Galo, professor de Geografia fora ganha na Escola do Exército por ter um bivaque que parecia uma crista, informação que serve de interlúdio à próxima cena, agora nos anos setenta.
- Hoje vamos fazer uma Chamada Escrita, - informou a frio o professor de História e Geografia, de apelido Azevedo e alcunha “Feio”, que viera substituir o padre Peixoto, pousando a pasta em cima da mesa.
- Mas isto é à traição, - ripostou o Horrível, deixando cair o tampo da carteira.
- Os alunos estudiosos estão sempre prontos, - disse o Feio, começando a distribuir as folhas.
Quando retornou ao estrado verificou que os alunos tinham apenas preenchido os cabeçalhos. Por momentos trocaram-se olhares, de gozo os dos alunos, de raiva o do Feio.
- Olhem que eu dou um zero a todos! – Gritou, limpando com um lenço o suor da testa.
Nada, os discentes estavam irredutíveis. Aproximou-se do chefe de turma e perguntou-lhe:
- Então, não sabes nada?
Logo este, o 191, repetente. Não obteve resposta! A tensão estava no ar, o professor Azevedo ajeitava os tendões do pescoço que pareciam cordas repuxadas. Por fim cedeu:
- Então, quando é que querem a chamada escrita?
À noite o barulho na camarata era ensurdecedor, assim como o cheiro, apesar da corneta já ter dado o toque para as sombras e para os silêncios. Foram infrutíferas as várias tentativas para acalmar as hostes, por isso o graduado não teve outra solução senão abrir as luzes e dar ordem de sentido. Ia haver festa brava, nada que se assemelhasse aos métodos do 202/1901, de alcunha o Selvagem que, segundo relato no livro do 291/1934,   costumava resolver os problemas disciplinares pendurando os ratas de cabeça para baixo num galho duma árvore. “Impensável”, dirão os Koninhas, “não no meu colégio”. Prossigamos!
- 278, vamos fazer a ronda – chamou o oficial de dia.
- Sim meu capitão.
E como era habitual no colégio, o graduado acompanhou-o aos quatro cantos do espaço, que se dizia “educativo”, incluindo às cavalariças lá para os lados da formação. Todos faziam parte da família da Luz. De regresso às companhias, o oficial convidou o aluno a acompanhá-lo ao bar, a Soca, e por aí ficaram no meio de cafés e bebidas espirituosas até altas horas da madrugada. Após o derradeiro whisky ainda houve tempo para um último comentário:
- Sabes 278, muitos dizem que o capitão Caetano é isto e aquilo, eu sou duro quando tenho de ser, mas também sei ser vosso amigo!
Com estas breves estórias não fingimos ser o que não fomos, recuperamos sim as memórias sagradas e preciosas que nos abrem as portas do Colégio Militar, relembrando-nos que somos exilados do nosso passado.  
   

Saturday, February 21, 2015

Antonieta









Comandante Guélas

Série Colégio Militar

As pernas da Rosa acolheram muitos gemidos apaixonados, ela engatava-os com tudo o que mexia, era uma flor aberta exclusivamente aos Meninos da Luz, porque amava o cheiro daquela rapaziada. Mas não dava vasão ao batalhão (até rima!). Por isso muitos aproveitavam a primeira sexta-feira de cada mês, após o jantar, para irem confessar-se ao seminário na ponta do Largo da Luz. Saíam a marchar, e pelo meio fugiam para as capelinhas…perdão, para as tascas de Carnide, enquanto os mais necessitados aventuravam-se com uma sessão contínua no Olímpia e Odéon, e os veteranos iam diretamente falar com a “Albertina das Mamas Grandes” e a “Dallas Cowboy”, lá para os lados do Bairro Alto. Mas um dia aconteceu o que parecia ser impossível: a Antonieta! Uma fêmea mais roliça, com o dobro da prateleira, logo o dobro da ereção e, para agravar a situação, também tinha uma pandeireta de sonho. A nova rapariga destabilizou o Gordini e grande parte do batalhão, habituados à filha do hortelão e à Maria Macaca e, nos dias de festa nos claustros, às pernas das mamãs dos ratas que os observavam do primeiro andar. E nas horas de desespero servia a mulher do Patronilha, cujo nome se mantém um mistério, sabendo-se unicamente o da sua irmã, a Júlia.
- Patronilha, a tua mulher nem com uma almofada na cabeça, - costumava dizer o Horrível.
Mas o vigilante dava sempre o troco:
- É feia mas f… bem!
Até o Chico Porteiro julgou estar a alucinar quando numa noite deu de caras com o Sub de cuecas e botas altas, no gabinete, atrás de uma senhora, tudo visível da rua porque as luzes do gabinete estavam acesas.
- Dentinho, - gritou alguém da quarta, quebrando o silêncio obrigatório do recolher.
O “homem” acordou assarapantado, e saiu a correr em direção ao corredor da companhia, disposto a apanhar os atrevidos e a aviar-lhes os vários abrunhos da praxe. Chocou violentamente contra a porta do geral, trancada com um piaçaba.
Quem não estava em bons lençóis era o 404, na aula de equitação a Nono pedira-lhe colinho e sentara-se em cima do seu joelho. Valera-lhe alguém “c’um saber só de experiências feito”:
- Toma estas duas aspirinas, e espera pelo Dr. Salgueiro Rego, que chega daqui a duas horas, - disse o Valentim tirando o braço do frasco castanho cheio do produto made in Laboratório Militar.
Acabou internado na Falca (enfermaria) a apanhar injeções nos pés, porque o enfermeiro não conseguira descobrir as veias dos braços por estarem “escondidas pela gordura”. Mas a conversa do dia era a queda do padre Baldomijo, perdão, Valdomiro, que tinha feito uma curva mais apertada com a sua Lambreta, talvez devido à tensão alta causada pela cena da dama com as mamas a abanar do filme de quinta feira, “A Quadrilha Selvagem”, contando agora a todos que vira uma “luz” antes de bater com os costados no chão.
- Deve ter visto as cuecas da Antonieta, - arriscou o Peidocueca.
No primeiro andar o Moreira gritava desesperado com os alunos que tinham acabado de lhe atacar o armário, mal abrira a porta, recheado de Bolama:
- Bós sois piores que os ciganos!
Na semana anterior tinham-lhe tirado os fundos do armário e por isso quando se preparava para iniciar o complemento do ordenado, já com uma fila de clientes devidamente ordenados, e com distância de segurança, das bolas de Berlim e dos mil folhas só restava algum açúcar e umas poucas páginas. No campo de futebol de 5 a festa ia animada no jogo de professores contra alunos, o Carioca levara uma cueca dum discente mais habilidoso, que fizera passar o esférico entre as suas pernas, e causara um burburinho na assistência, que o pôs irado não tendo descansando até lhe ter dado uma porrada cristã. A estória acaba no pátio dos fâmulos com o Barnabé, motorista do Diretor, a tentar impressionar a Antonieta, ajeitando a peruca laranja e mostrando o seu stand de carros usados, cujo contacto da empresa era o número da central do Colégio Militar, que tinha um aviso para o chamar caso fosse algum cliente.