Comandante Guélas
Série Colégio Militar
As estórias do
Colégio Militar são para ser mantidas debaixo de olho, o que elas são e o que
elas têm para contar, mas estão todas ancoradas em realidades comprovadas, são
estórias de rapazes que se cumpliciaram para lá dos silêncios. Para muitos
deles a vida colegial não tinha nada de maravilhoso, porque não fora por suas
vontades que estavam ali. É por isso que o Colégio Militar sempre teve um lado
sedutor, porque temos um orgulho da pertença, e um lado sinistro, porque
conseguiu muitas vezes transformar alunos normalíssimos em pessoas intoleráveis
a partir do momento em que lhes deram funções de comando, passando a ficar
assombrados pela emanação de desejos recalcados. Apesar de as
novas “Meninas da Luz” estarem tão orgulhosas da farda que vestem, cujo desejo em
dias de festa é tirar uma fotografia com um antecessor, muitas têm ainda de
superar obstáculos, mas como o “ardor guerreiro” ainda faz parte do
hino, levantam com orgulho a bandeira de todos nós. Uma viu um dia o sonho tornar-se
realidade, o camarada pôs-lhe a mão por cima do ombro, e o telemóvel registou
para a eternidade aqueles sorrisos sinceros e aquele orgulho na casa renovada.
Mas a amiga não teve a mesma sorte:
- Não tiro a
fotografia, o Colégio Militar deve ser só para rapazes, - respondeu a seco o ex-aluno
quando viu que o seu sucessor era uma menina.
Por momentos
todos ficaram em silêncio, incrédulos, trocando olhares indignados, ao mesmo
tempo que olhavam para os olhos brilhantes da camarada. Mas valeu a prontidão
de outro ex-aluno, que se aproximou dela, e disse em voz alta:
- Tiras comigo,
o número é o que menos interessa!
A Menina da Luz aprendera
que ali também havia gente desta, “koninhas”, para quem o Colégio Militar deveria
ser imutável, esquecendo-se que era na sua imperfeição que cabiam todas as
grandezas e todas as decadências. Por isso recuemos para um sábado de manhã dos
anos oitenta, e entremos numa turma à beira de um ataque de nervos, com a saída
de fim de semana no pensamento, desesperada com o tempo que parecia ter
estagnado na aula de física do Semita, agora um velho professor em fim de
carreira. Tinha sido recebido como habitualmente por um contentor do lixo a
barrar-lhe o Volvo azul, a seguir à curva da quarta companhia, por isso não se
apercebeu que os alunos acabavam de encher a calha que estava debaixo da mesa
do 61 cheia de papel e alguém ateara fogo. Depressa o fumo envolveu o camarada,
transformando-o no Desejado mas, antes que virasse frango assado do Ricochete,
envolveram-no com muito papel e, quando já estava em formato de múmia, pegaram
nele e saíram da aula com as sirenes ligadas:
- Ti,nó,ni…ti,nó,ni…
O engenheiro
Grijó nem queria acreditar, os alunos dos anos oitenta eram uns selvagens,
quando comparados com os das décadas anteriores, porque em vez de fugirem ainda
no exterior quando ele se esquecia das horas a jogar xadrez na sala de
professores, esta rapaziada de agora abandonava o barco já em movimento, mesmo
com ameaças de bengalas, bicicletas e afins:
- É gado, é
gado, - gritava o Semita tentando controlar a turbe com o ponteiro, que saia em
debandada do curral,…perdão, da sala de aula.
Para os “koninhas”
cenas destas nunca aconteceram, mas mesmo que sejam uma realidade deveriam ficar
para sempre enterradas no buraco mais fundo das nossas almas e connosco ao pó
voltar. Mas porque no Colégio Militar o tempo nunca foi desperdiçado,
continuemos, dizendo que a alcunha do Galo, professor de Geografia fora ganha
na Escola do Exército por ter um bivaque que parecia uma crista, informação que
serve de interlúdio à próxima cena dos anos setenta.
- Hoje vamos
fazer uma Chamada Escrita, - informou a frio o professor de História e
Geografia, de apelido Azevedo e alcunha “Feio”, que viera substituir o padre
Peixoto, pousando a pasta em cima da mesa.
- Mas isto é à
traição, - ripostou o Horrível, deixando cair o tampo da carteira.
- Os alunos
estudiosos estão sempre prontos, - disse o Feio, começando a distribuir as
folhas.
Quando retornou
ao estrado verificou que os alunos tinham apenas preenchido os cabeçalhos. Por momentos trocaram-se olhares, de gozo os dos
alunos, de raiva o do Feio.
- Olhem que eu
dou um zero a todos! – Gritou, limpando com um lenço o suor da testa.
Nada, os
discentes estavam irredutíveis. Aproximou-se do chefe de turma e perguntou-lhe:
- Então, não
sabes nada?
Logo este, o
191, repetente. Não obteve resposta! A tensão estava no ar, o professor Azevedo ajeitava os
tendões do pescoço que pareciam cordas repuxadas. Por fim cedeu:
- Então, quando
é que querem a chamada escrita?
À noite o
barulho na camarata era ensurdecedor, assim como o cheiro, apesar da corneta já
ter dado o toque para as sombras e para os silêncios. Foram infrutíferas as
várias tentativas para acalmar as hostes, por isso o graduado não teve outra
solução senão abrir as luzes e dar ordem de sentido. Ia haver festa brava, nada
que se assemelhasse aos métodos do 202/1901, de alcunha o Selvagem que, segundo
relato no livro do 291/1934, costumava resolver os problemas disciplinares pendurando
os ratas de cabeça para baixo num galho duma árvore. “Impensável”, dirão os
Koninhas, “não no meu colégio”. Prossigamos!
- 278, vamos
fazer a ronda – chamou o oficial de dia.
- Sim meu capitão.
E como era
habitual no colégio, o graduado acompanhou-o aos quatro cantos do espaço, que
se dizia “educativo”, incluindo às cavalariças lá para os lados da formação. Todos
faziam parte da família da Luz. De regresso às companhias, o oficial convidou o
aluno a acompanhá-lo ao bar, a Soca, e por aí ficaram no meio de cafés e
bebidas espirituosas até altas horas da madrugada. Após o derradeiro whisky ainda
houve tempo para um último comentário:
- Sabes 278,
muitos dizem que o capitão Caetano é isto e aquilo, eu sou duro quando tenho de
ser, mas também sei ser vosso amigo!
Com estas breves
estórias não fingimos ser o que não fomos, recuperamos sim as memórias sagradas
e preciosas que nos abrem as portas do Colégio Militar, relembrando-nos que
somos exilados do nosso passado.
1 comment:
"Com estas breves estórias não fingimos ser o que não fomos, recuperamos sim as memórias sagradas e preciosas que nos abrem as portas do Colégio Militar, relembrando-nos que somos exilados do nosso passado. " - líndissimo. Um forte Zacatraz do 209/08
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