O Comandante Guélas
Série Colégio Militar
Os Meninos da Luz
sempre estiveram prisioneiros de um mundo subjectivo, cada aluno, muito mais do
que um indivíduo distinto, dizia-se ser uma parcela do grupo, sobre quem
pesavam todos os prejuízos, interesses e sentimentos, o ato de um
responsabilizava todos. Mas nem sempre era assim! Os ex Meninos da Luz têm uma
desenvolvida cultura da memória, cada qual é possuidor de um museu colegial,
com várias secções, em que cada aventura tem o seu lugar bem definido. O
Colégio Militar tem uma bizarra noção do tempo, por isso representa todas as
posições, das mais extremadas, até às mais moderadas, as suas estórias são
sempre fantásticas porque foram possíveis, o Menino da Luz caracteriza-se pela
mobilidade, é capaz de percorrer grandes espaços em tempo curto, é original,
irracional, fantástico, quem está perto sente as vibrações da sua alma, tem
fome de liberdade, é rebelde, possui um sentimento de unidade, tem uma boa
capacidade de orientação, a consciência do espaço e a possibilidade de o
representar de uma forma íntima, uma espécie de GPS existencial: nos anos
setenta era o bar da Dallas Cowboy, o Olímpia e Odivelas, enfim, tudo coordenadas
com interesses hormonais. Por isso, ao contrário do 136 que diz agora que a
ética e a seriedade não são coisas que se ponham por escrito, as estórias do
colégio têm de ser escritas para memória futura.
Na Páscoa de 1978 uma ilha do Atlântico nunca mais foi a mesma após a breve passagem destes
extraordinários meninos com “tosões de oiro”. O panfleto que lhes deram à
entrada do avião militar tinha como título “Visita de estudos dos alunos
finalistas à ilha da Madeira”, com as informações básicas sobre a zona. O primo
Orelhas (649), que captava as fêmeas por instinto, ficou finalmente a saber,
depois de sete anos de estudos, e de várias reprimendas do professor Lufinha,
especialista em torcer orelhas em câmara lenta, que não aceitava que um
descendente dum ilustre catedrático da faculdade de letras da universidade de
Coimbra tivesse comportamentos semelhantes aos de um asno, que tinha sido o
João Gonçalves Zarco e o Tristão Vaz Teixeira, os descobridores da ilha de
Porto Santo, no ano de 1418:
- Deviam ir com uma
fomeca dos diabos, - exclamou, folheando uma “Gina”.
- E no ano
seguinte foi a Madeira, que também era deserta. Já deviam ter calos nas mãos! –
Retorquiu o Dani (661).
- E para se
vingarem dos tempos de carestia encheram a ilha de minhotas e algarvias, e não
de alentejanas peludas, - gritou o Cebola (360), dando um carolo ao 299.
- Tomara tu teres
no teu colo a Albertina das Mamas Grandes, ou a Dallas
Cowboy, - atirou o 649, fazendo referência às senhoras que mais tinham
contribuído para a formação humanista de alguns destes rapazes durante o
período dos “cinco estudos” de 1976, que os obrigaram a fugas permanentes em
direção ao Bairro Alto, onde muitos mudaram o óleo pela primeira vez, ou
tentaram mudar, mas a piroca não contribuiu, como aconteceu ao Broche.
Ainda o avião não
aterrara e já o 649 estava de cabeça perdida, via-se com o primo 278 a correr
pela ilha atrás das suecas da revista, tal como um pastor com as suas ovelhas,
num estado de “rebarbamento”, o equivalente a uma overdose de luxúria. Por isso
quando desceu as escadas e tocou a pista, em vez de beijar o solo como
costumava fazer o papa João Paulo II, inspirou com sofreguidão o ar da ilha, e
sentiu o “riberalves” das autótones. Em cada curso havia sempre um filósofo de
serviço, e neste caso o pensador chamava-se Ginho, e os neurónios eram tantos
que lhe permitiram corrigir vezes sem conta os erros de matemática do professor
Fufu que, se não fosse o 61, seria o responsável pelo insucesso escolar de muitos.
O Ginho dizia que em todos os cursos havia um gangue, o que provava o quão avançados
estavam os Meninos da Luz para a época. O 240 (Rita), o 360 (Cebola) e o 661 (Dáni)
encaixavam que nem luvas no perfil comportamental definido pelo camarada, que
também atribuíra a alcunha ao 191, não por ele ser “metanocompetente”, mas por
ameaçar, na sua posição de chefe de turma no início do curso, “pontapés na
peida” a quem o comprometesse na missão impossível de manter trinta crianças
fardadas de cotim devidamente formadas e bem comportadas, porque caso não o fizesse
seria ele a sofrer as consequências do oficial de dia, cujas probabilidades de
ser um psicopata eram grandes. Junto ao aeroporto aguardava-os umas Berliets
com lonas, e foi neste tipo de transporte que os levaram para o Regimento de
Infantaria do Funchal. Os alunos ficaram em camaratas e os cães e professores
na messe de oficiais. E o extenso rol de visitas de estudo, em que eram
obrigados a ir fardados, deu início ao conflito.
- Se aparecermos
assim num hotel, as miúdas confundem-nos com os paquetes, e só nos convidam a
ir até à porta dos quartos levar-lhes as malas, - protestou o 27, atirando o
barrete ao chão.
- Se me tivessem
dito que isto iria ser uma continuação das aulas, e não uma semana de cama com
as suecas, tinha ficado em casa a gozar as férias da Páscoa na metrópole, -
insistiu o 207.
Mas havia algo que
intrigava um dos cães da região.
- Ó Bolacha, mas
os putos que se sentam nas pontas regressam sempre com as calças molhadas à
frente, - protestou o camarada do capitão Santola, quando viu a Berliet regressar ao quartel apinhada de adolescentes
vestidos de pinhão, vindos diretamente da Quinta das Cruzes, a morada do Zarco,
o Descobridor, que o primo Orelhas , o Cobridor, para impressionar as meninas
do Maria Amália que também estavam a visitar a ilha, acompanhadas por outro
primo, insistia em dizer ser seu familiar.
- O que é que
queres, a rapaziada entra ao domingo à noite e só sai ao sábado à tarde, e só
têm a Rosa, a mulher do Patronilha não conta, e ainda por cima vocês têm a
Madeira cheia de miúdas iguais às das revistas mais estudadas do Colégio
Militar, as “Ginas”, que batem aos pontos o “American Language Course” do Tabi!
Mal sabia o cão do
Funchal que tudo se devia ao facto de se deslocarem em Berliet de caixa aberta,
tapadas com lonas da guerra colonial, cujos buracos nas extremidades eram a
prova da existência de minas em África, que era por onde entrava a água que
caia em torrente sobre os veículos à entrada e à saída dos túneis. Por isso já
se sentia no ar um clima de “golpe de estado”, porque farda significava veículo
militar, e calças molhadinhas, e à civil dava direito a transporte civilizado,
com direito a perfume sedutor. Que o digam o 649, o Gordini, o Dáni, o Maneli,
e o Teta que numa noite arrancaram para os lados do aeroporto ao encontro das
finalistas do Maria Amália. O 601 tinha motorista privado na ilha, um amigo do
pai, e tudo porque fizera a instrução primária na região, que o ia buscar
diariamente ao quartel, enchendo o carro com rapaziada que era largada nas
noites quentes do Funchal. Quando o Primo Orelhas deu de caras com a menina do
Maria Amália, sentiu o seu “tosão de oiro” mordiscar-lhe as pernas, desejoso de
passar da mão do dono para um lugar mais ao seu gosto, o pote do tesouro, assim
lhe pedia o seu pescoço tratado ultimamente com uma violência extrema pelo amo,
que o esganava como a um ganso. O estado de exaltação tornou-o imprudente,
arrogante, crédulo, cintilante, as orelhas mexiam como as asas de um
beija-flor, apalpando a rapariga com o olhar, tirando-lhe o rosto e
transformando-a num par de mamas, uma espécie de Albertina, mas com cheiro a Lavanda,
e não a Pó de Talco e coiratos. Mas um dia a pacata viagem de finalistas do ano
letivo de 1977/78 atingiu o seu zénite em mais uma viagem oficial com farda
obrigatória. Ao regressarem do Funchal, e uma vez na camarata, as fardas foram
despidas com raiva e atiradas com desprezo para trás de um armário, ao mesmo
tempo que alguns atacavam um dólmen com raiva. E o dia seguinte foi o “D”! O
aluno que tinha o “número mais vergonhoso do Colégio Militar”, palavras sábias
do saudoso 125, o Horrível, o maior engatatão de todos os tempos que dava “oito
de seguida sem ver a luz do sol” (sic), atrasou-se para o encontro na parada,
comportamento inabitual neste detentor de todos os lacinhos disponíveis no
mercado, que esporadicamente mudavam de farda nas ações de caridade da Conferência de São Vicente de Paulo, que incluíam gamanços de bolama
no mini mercado junto às cavalariças. Onde estaria o 69?
Perdido com alguma sueca mais atrevida que pernoitara no Regimento do Funchal?
Com uma ressaca de Sumol de laranja?
- Já estamos
atrasados, onde raio é que se meteu o comandante de batalhão? – Protestou o cão
Estorninho, o Comandante do Corpo de Alunos que, após a revolução, teve como
missão libertar o Colégio Militar do espírito de externato que se instalara, e
faze-lo regressar aos tempos áureos da Inquisição.
O ten-Coronel,
conhecido pelas “secas pedagógicas”, que numa mocada teve como homenagem a
presença do esqueleto de Biologia com uma tabuleta a dizer “uma hora com o
secas”, secas estas muito mais violentas do que a clássica estalada em sentido,
pressentia de novo um clima de pré-revolução e isso não o agradava, ainda por cima
fora das paredes da instituição que tradicionalmente resolvia tudo dentro de
portas. O que é que iriam pensar os camaradas da Madeira?
- As visitas de
estudo estão a dar cabo deles, - disse baixinho o professor de português, o
Nasca, para o colega de Físico Químicas.
O 69 apareceu em
camisa, os botões dourados do dólmen tinham desaparecido! O Regimento de
Infantaria do Funchal deu ordem de prisão aos “turistas”, até que os
responsáveis pela blasfémia se acusassem. E foi aqui que a rapaziada se
apercebeu que o mítico “Um por Todos, Todos por Um” tinha ficado no continente,
porque houve bufos que entregaram de imediato dois dos autores da blasfémia,
que foram separados dos colegas, recambiados para casa e expulsos às
escondidas, sem direito ao contraditório e a saber qual a opinião da maioria
dos camaradas, para quem tudo não passara de uma inofensiva brincadeira. A
medida mexeu com todos os que permaneceram na ilha, e quando alguns ilhéus
ousaram meter-se com os Meninos da Luz que arrefeciam o desânimo numa piscina
da Matur, um deles teve um ataque de caspa monumental, estilo o do Kebab do
Cais do Sodré, que os levou à debandada quando se aperceberam que ia decidido a
fazer-lhes a folha de ponta e mola na mão. Só pararam no ponto mais longínquo
da ilha, onde se organizaram num grupo maior e partiram em direção ao quartel,
numa excursão de vingança. Tiveram sorte, quando chegaram ao aeroporto já o
avião militar ia no ar, de regresso à capital!
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