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315 estórias

Monday, May 02, 2016

Os Botões do 69


O  Comandante Guélas

Série Colégio Militar



Os Meninos da Luz sempre estiveram prisioneiros de um mundo subjectivo, cada aluno, muito mais do que um indivíduo distinto, dizia-se ser uma parcela do grupo, sobre quem pesavam todos os prejuízos, interesses e sentimentos, o ato de um responsabilizava todos. Mas nem sempre era assim! Os ex Meninos da Luz têm uma desenvolvida cultura da memória, cada qual é possuidor de um museu colegial, com várias secções, em que cada aventura tem o seu lugar bem definido. O Colégio Militar tem uma bizarra noção do tempo, por isso representa todas as posições, das mais extremadas, até às mais moderadas, as suas estórias são sempre fantásticas porque foram possíveis, o Menino da Luz caracteriza-se pela mobilidade, é capaz de percorrer grandes espaços em tempo curto, é original, irracional, fantástico, quem está perto sente as vibrações da sua alma, tem fome de liberdade, é rebelde, possui um sentimento de unidade, tem uma boa capacidade de orientação, a consciência do espaço e a possibilidade de o representar de uma forma íntima, uma espécie de GPS existencial: nos anos setenta era o bar da Dallas Cowboy, o Olímpia e Odivelas, enfim, tudo coordenadas com interesses hormonais. Por isso, ao contrário do 136 que diz agora que a ética e a seriedade não são coisas que se ponham por escrito, as estórias do colégio têm de ser escritas para memória futura.
Na Páscoa de 1978 uma ilha do Atlântico nunca mais foi a mesma após a breve passagem destes extraordinários meninos com “tosões de oiro”. O panfleto que lhes deram à entrada do avião militar tinha como título “Visita de estudos dos alunos finalistas à ilha da Madeira”, com as informações básicas sobre a zona. O primo Orelhas (649), que captava as fêmeas por instinto, ficou finalmente a saber, depois de sete anos de estudos, e de várias reprimendas do professor Lufinha, especialista em torcer orelhas em câmara lenta, que não aceitava que um descendente dum ilustre catedrático da faculdade de letras da universidade de Coimbra tivesse comportamentos semelhantes aos de um asno, que tinha sido o João Gonçalves Zarco e o Tristão Vaz Teixeira, os descobridores da ilha de Porto Santo, no ano de 1418:
- Deviam ir com uma fomeca dos diabos, - exclamou, folheando uma “Gina”.
- E no ano seguinte foi a Madeira, que também era deserta. Já deviam ter calos nas mãos! – Retorquiu o Dani (661).
- E para se vingarem dos tempos de carestia encheram a ilha de minhotas e algarvias, e não de alentejanas peludas, - gritou o Cebola (360), dando um carolo ao 299.
- Tomara tu teres no teu colo a Albertina das Mamas Grandes, ou a Dallas Cowboy, - atirou o 649, fazendo referência às senhoras que mais tinham contribuído para a formação humanista de alguns destes rapazes durante o período dos “cinco estudos” de 1976, que os obrigaram a fugas permanentes em direção ao Bairro Alto, onde muitos mudaram o óleo pela primeira vez, ou tentaram mudar, mas a piroca não contribuiu, como aconteceu ao Broche.
Ainda o avião não aterrara e já o 649 estava de cabeça perdida, via-se com o primo 278 a correr pela ilha atrás das suecas da revista, tal como um pastor com as suas ovelhas, num estado de “rebarbamento”, o equivalente a uma overdose de luxúria. Por isso quando desceu as escadas e tocou a pista, em vez de beijar o solo como costumava fazer o papa João Paulo II, inspirou com sofreguidão o ar da ilha, e sentiu o “riberalves” das autótones. Em cada curso havia sempre um filósofo de serviço, e neste caso o pensador chamava-se Ginho, e os neurónios eram tantos que lhe permitiram corrigir vezes sem conta os erros de matemática do professor Fufu que, se não fosse o 61, seria o responsável pelo insucesso escolar de muitos. O Ginho dizia que em todos os cursos havia um gangue, o que provava o quão avançados estavam os Meninos da Luz para a época. O 240 (Rita), o 360 (Cebola) e o 661 (Dáni) encaixavam que nem luvas no perfil comportamental definido pelo camarada, que também atribuíra a alcunha ao 191, não por ele ser “metanocompetente”, mas por ameaçar, na sua posição de chefe de turma no início do curso, “pontapés na peida” a quem o comprometesse na missão impossível de manter trinta crianças fardadas de cotim devidamente formadas e bem comportadas, porque caso não o fizesse seria ele a sofrer as consequências do oficial de dia, cujas probabilidades de ser um psicopata eram grandes. Junto ao aeroporto aguardava-os umas Berliets com lonas, e foi neste tipo de transporte que os levaram para o Regimento de Infantaria do Funchal. Os alunos ficaram em camaratas e os cães e professores na messe de oficiais. E o extenso rol de visitas de estudo, em que eram obrigados a ir fardados, deu início ao conflito.
- Se aparecermos assim num hotel, as miúdas confundem-nos com os paquetes, e só nos convidam a ir até à porta dos quartos levar-lhes as malas, - protestou o 27, atirando o barrete ao chão.
- Se me tivessem dito que isto iria ser uma continuação das aulas, e não uma semana de cama com as suecas, tinha ficado em casa a gozar as férias da Páscoa na metrópole, - insistiu o 207.
Mas havia algo que intrigava um dos cães da região.
- Ó Bolacha, mas os putos que se sentam nas pontas regressam sempre com as calças molhadas à frente, - protestou o camarada do capitão Santola, quando viu a Berliet  regressar ao quartel apinhada de adolescentes vestidos de pinhão, vindos diretamente da Quinta das Cruzes, a morada do Zarco, o Descobridor, que o primo Orelhas , o Cobridor, para impressionar as meninas do Maria Amália que também estavam a visitar a ilha, acompanhadas por outro primo, insistia em dizer ser seu familiar.
- O que é que queres, a rapaziada entra ao domingo à noite e só sai ao sábado à tarde, e só têm a Rosa, a mulher do Patronilha não conta, e ainda por cima vocês têm a Madeira cheia de miúdas iguais às das revistas mais estudadas do Colégio Militar, as “Ginas”, que batem aos pontos o “American Language Course” do Tabi!
Mal sabia o cão do Funchal que tudo se devia ao facto de se deslocarem em Berliet de caixa aberta, tapadas com lonas da guerra colonial, cujos buracos nas extremidades eram a prova da existência de minas em África, que era por onde entrava a água que caia em torrente sobre os veículos à entrada e à saída dos túneis. Por isso já se sentia no ar um clima de “golpe de estado”, porque farda significava veículo militar, e calças molhadinhas, e à civil dava direito a transporte civilizado, com direito a perfume sedutor. Que o digam o 649, o Gordini, o Dáni, o Maneli, e o Teta que numa noite arrancaram para os lados do aeroporto ao encontro das finalistas do Maria Amália. O 601 tinha motorista privado na ilha, um amigo do pai, e tudo porque fizera a instrução primária na região, que o ia buscar diariamente ao quartel, enchendo o carro com rapaziada que era largada nas noites quentes do Funchal. Quando o Primo Orelhas deu de caras com a menina do Maria Amália, sentiu o seu “tosão de oiro” mordiscar-lhe as pernas, desejoso de passar da mão do dono para um lugar mais ao seu gosto, o pote do tesouro, assim lhe pedia o seu pescoço tratado ultimamente com uma violência extrema pelo amo, que o esganava como a um ganso. O estado de exaltação tornou-o imprudente, arrogante, crédulo, cintilante, as orelhas mexiam como as asas de um beija-flor, apalpando a rapariga com o olhar, tirando-lhe o rosto e transformando-a num par de mamas, uma espécie de Albertina, mas com cheiro a Lavanda, e não a Pó de Talco e coiratos. Mas um dia a pacata viagem de finalistas do ano letivo de 1977/78 atingiu o seu zénite em mais uma viagem oficial com farda obrigatória. Ao regressarem do Funchal, e uma vez na camarata, as fardas foram despidas com raiva e atiradas com desprezo para trás de um armário, ao mesmo tempo que alguns atacavam um dólmen com raiva. E o dia seguinte foi o “D”! O aluno que tinha o “número mais vergonhoso do Colégio Militar”, palavras sábias do saudoso 125, o Horrível, o maior engatatão de todos os tempos que dava “oito de seguida sem ver a luz do sol” (sic), atrasou-se para o encontro na parada, comportamento inabitual neste detentor de todos os lacinhos disponíveis no mercado, que esporadicamente mudavam de farda nas ações de caridade da Conferência de São Vicente de Paulo, que incluíam gamanços de bolama no mini mercado junto às cavalariças. Onde estaria o 69? Perdido com alguma sueca mais atrevida que pernoitara no Regimento do Funchal? Com uma ressaca de Sumol de laranja?
- Já estamos atrasados, onde raio é que se meteu o comandante de batalhão? – Protestou o cão Estorninho, o Comandante do Corpo de Alunos que, após a revolução, teve como missão libertar o Colégio Militar do espírito de externato que se instalara, e faze-lo regressar aos tempos áureos da Inquisição.
O ten-Coronel, conhecido pelas “secas pedagógicas”, que numa mocada teve como homenagem a presença do esqueleto de Biologia com uma tabuleta a dizer “uma hora com o secas”, secas estas muito mais violentas do que a clássica estalada em sentido, pressentia de novo um clima de pré-revolução e isso não o agradava, ainda por cima fora das paredes da instituição que tradicionalmente resolvia tudo dentro de portas. O que é que iriam pensar os camaradas da Madeira?
- As visitas de estudo estão a dar cabo deles, - disse baixinho o professor de português, o Nasca, para o colega de Físico Químicas.
O 69 apareceu em camisa, os botões dourados do dólmen tinham desaparecido! O Regimento de Infantaria do Funchal deu ordem de prisão aos “turistas”, até que os responsáveis pela blasfémia se acusassem. E foi aqui que a rapaziada se apercebeu que o mítico “Um por Todos, Todos por Um” tinha ficado no continente, porque houve bufos que entregaram de imediato dois dos autores da blasfémia, que foram separados dos colegas, recambiados para casa e expulsos às escondidas, sem direito ao contraditório e a saber qual a opinião da maioria dos camaradas, para quem tudo não passara de uma inofensiva brincadeira. A medida mexeu com todos os que permaneceram na ilha, e quando alguns ilhéus ousaram meter-se com os Meninos da Luz que arrefeciam o desânimo numa piscina da Matur, um deles teve um ataque de caspa monumental, estilo o do Kebab do Cais do Sodré, que os levou à debandada quando se aperceberam que ia decidido a fazer-lhes a folha de ponta e mola na mão. Só pararam no ponto mais longínquo da ilha, onde se organizaram num grupo maior e partiram em direção ao quartel, numa excursão de vingança. Tiveram sorte, quando chegaram ao aeroporto já o avião militar ia no ar, de regresso à capital!

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