Comandante Guélas
Série Colégio Militar
O Colégio Militar deu-nos tudo em demasia, até o amanhã. No trajeto entre a Parada Marechal
Teixeira Rebelo e a Parada Marechal Serpa Pinto, passando pela Enfermaria, muita
coisa podia acontecer. No pavilhão de Química a aula do Semita estava ao rubro, o engenheiro distribuía bordoada com o ponteiro ao mesmo tempo que gritava:
- É gado, é
gado!
Dava notas:
- Levas uma “bengala”
para casa e o teu colega uma “bicicleta"!
Oferecia conselhos pedagógicos:
- Esta disciplina
não é uma cadeira, é uma chaise long onde o aluno se estende à vontade!
Fazia diagnósticos:
- Moçooo, sabes o que é um Jericoacéfalo? É o que tu és….um burro sem cérebro!
Dissertava:
- Nesta turma uns dormem de olhos
fechados, outros de olhos abertos!
Distribuia miminhos:
- Psché moço, num monte de
esterco, fazes nódoa!
Um dia o Minhoca explodiu e o engenheiro Grijó sofreu um atentado:
- Espero que
morras, assim não tenho de ir estudar Física - gritou, atirando-lhe um limão e
escondendo-se atrás da sebe da Enferma.
E havia mais docentes a lecionar:
- Piu, piu, piu, és burro, - gritou o Falcão,
professor de matemática, com a boca colada ao ouvido do Cão.
- O senhor é um xisto com pernas, - classificou,
já desesperado, o professor Perdigão com os olhos na cara do Elefante.
O pequeno chalé foi morada da musa do batalhão
de rebarbados dos anos cinquenta do século passado, que nunca nenhum menino a
viu mas sentia-lhe o cheiro, e com ele imaginava-a num corpo feminino com uma
boa tranca, pandeireta de sonho, uma prateleira que os punha sem freios à noite
nas camaratas, com as camas a ranger e as almofadas a gemer, por isso gritavam
sempre pelo seu nome de cada vez que regressavam em formatura: “Oh Elsa!”, e
sentiam um gostinho. Nos anos setenta a musa tinha o nome de Rosa e era de
carne e osso, e deu origem a uma estranha
e intensa relação, ela era uma rapariga sem raízes e sempre em fuga, num
paraíso onde não pertencia a nenhum, mas estava nos sonhos de todos. A Rosa e
os Meninos da Luz tinham sido destinados a olharem-se e a divergirem de todas
as tentações, que os levavam muitas vezes a cruzarem-se como dois ponteiros de
um mostrador de um relógio ao meio-dia. Foi uma relação extraordinária, num tempo e numa parte do mundo complicada. Por isso o local onde
viviam era contraditório de luz, paixão, confusão e caos, estava ligado a uma
marginalidade que, apesar de tudo, tinha os seus princípios. Havia também a
Lisete, senhora de uma testa imprópria para devaneios, também conhecida por
Listete, ou a mulher do Patronilha, que não tinham direito a participar nos
sonhos destes adolescentes que estavam fardados de cotim de domingo à noite até
sábado à tarde. Antes destas musas os pensamentos iam para as meninas do
reformatório vizinho, que os obrigavam a inscrever-se em ações de caridade, e
tudo isto à conta da Conferência de São Vicente de Paulo, de quem o colégio era
membro, para assim lhes poderem sentir o cheiro a maresia quando tinham autorização para
sair fardados de terylene. O levantamento das necessidades era feito pelos capelães civil e militar,
que mandavam entregar o dinheiro e os géneros às pessoas referenciadas de
Carnide. E um dos alcoólicos, perdão, acólitos, tinha o número 95 e um dia, desesperado para ir
fazer uma boa ação, antecipou-se e abdicou da aula do Carioca, um padre com uma
personalidade pouco espaçosa, cujas aulas de música decorriam sempre sob
tremenda pressão, onde se desintegrava com facilidade. Mas como no Colégio
Militar as penas eram instantâneas, sem direito a recurso, o Comandante do
Corpo de Alunos oficial, o Maneta, condenou o aluno o Coiote a uma chapada, uma carecada e uma privação de ida ao cinema. O 120, o 125 e o 191 como não cantavam, tiveram ainda
tempo, depois de distribuído o produto, de irem fazer uma visita de cortesia
ao minimercado, para se abastecerem de Bolama, metade comprada e a outra metade
escondida na boina, que estava presa ao blusão. Mas voltemos à nossa rosa, que era vista com regularidade num gabinete junto aos claustros,
para gáudio da rapaziada, que aproveitava para arregalar o olho de dia e esgalhar o
frango à noite. O pai chamava-se Nunes e era o hortelão do colégio,
deslocava-se sempre num trator, que costumava levar várias camadas de alunos
pendurados, que o obrigavam a parar várias vezes para os enxotar com palavrões
e à pedrada. O “Amor” também era muitas vezes o tema da última formatura, que
se seguia ao jantar, juntamente com outras atividades lúdicas, como por
exemplo as “Firmezas”. Na altura da distribuição do correio, carta
mais amaricada era de imediato aberta, e lida em voz alta para toda a
Companhia, que o diga o camarada Coiote quando a namorada, uma
Menina de Odivelas descoberta num Chá Dançante, lhe enviou a declaração de amor
num envelope às florzinhas e perfumada. A relação foi assim posta em risco
porque o pai da donzela, administrador da Shell, fazia um controle apertado à
filha, principalmente se lhe cheirasse que atrás das suas saias andava um
Menino da Luz, com as hormonas aos saltos e uma semana inteirinha fechada no
colégio. Felizmente o “Todos por Um, Um por Todos” também dizia respeito aos
funcionários, que neste caso tinha o apelido de Domingos, e fazia umas horinhas
extras na empresa do papá da menina. A pedido do Coiote passou a trazer as
cartas entregues pela menina, e a levar as escritas pelo 95, sem haver
necessidade de passar pelo Geral da Companhia. Mas um dia os limites foram
forçados e alguns foram longe de mais e resolveram fazer uma surpresa à Rosa a caminho do ginásio, durante o tempo de exames, mascarados de
múmias, depois de terem desviado ligaduras da enfermaria, e de intensos treinos
durante meses. Uma das versões conta que o namorado, fã dos filmes do Bruce
Lee, tentou proteger a sua Rosa da Luz, mas não se saiu lá muito bem; a outra
refere o irmão, que ficou instantaneamente chéché com a paulada que levou,
tendo os gritos da diva chamado a atenção dum vigilante, que veio de imediato a
correr em seu auxílio, provocando a debandada das múmias e o despertar do mano,
que o atacou com um biqueiro nos queixos, pondo-os à banda. Foi decretado o
“Alerta Vermelho” e o galanteador alferes Felício conduziu os interrogatórios,
tendo entregue ao Sub Oliveira, para impressionar a Rosa, por quem arrastava a
asa, uma lista com os nomes dos arguidos, incluindo um que estava de baixa na
enfermaria com um traumatismo no coco. O colégio estava à beira de um ataque de
nervos, o Galo via atrevidos em todas as esquinas, ameaçando de imediato com
cargas de cavalaria, e a Rosa gritava de cada vez que um Menino da Luz se
aproximava um pouco mais, violando a distância de segurança. Com a imediata “prisão domiciliária” dos mais velhos,
os índios fizeram jus aos seus pergaminhos e deram um passo em frente. Só um
não o fez porque tinha ido à missa, talvez confessar-se, e quando tomou a
decisão já era tarde de mais, tinha-se atingido a data definida pela chefia,
que ditou de imediato a pena: uma expulsão e várias desgraduações! Quanto à
Rosa, depressa foi ultrapassada pela Maria João da biblioteca, também com boa
tranca, pandeireta de sonho, e uma prateleira com o dobro do tamanho que fez
com que a rapaziada passasse a dedicar-se mais ao estudo. Com o tempo o encanto
desvaneceu-se, o Colégio Militar, antes exclusivo para machos, foi inundado de
saias e com isso desapareceu o fruto proibido.
3 comments:
Lamento o "desaparecimento do fruto proibido"...Afinal, uma rosa bem cuidada,plantada e regada, poderia ter permanecido por muitos anos como uma rosa,apesar dos espinhos, dolorosos e fatais...Parabéns pelo texto !!! ex-110(68).
Obrigado Carlos. Devia ser atribuído à Rosa um número honorário e um ano de entrada!
Espetacular e genial texto, parabéns. Só mesmo quem viveu o CM de 74-76 percebe o que foram aqueles tempos. Lembro-me da Rosa e dos sonhos com ela. Digamos que foi o meu 1º amor.Não se esquece facilmente o 1º amor! Que será feito dela? Rui Rebelo(422/74)
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