Comandante Guélas
Série Colégio Militar
Recuperar as memórias sagradas e preciosas, que nos abrem as portas do
Colégio Militar, relembra-nos que somos exilados do nosso passado, e por isso
precisamos de o recapturar. O Cine-Luz era um micro-cosmo, um mundo onírico em
que imperava um cheiro intenso a cavalo, coisa inimaginável nos estranhos dias
que correm em que tudo traumatiza. As quartas e quintas-feiras à
noite eram sempre destinadas às sessões de cinema, que decorriam a seguir ao
jantar num espaço existente junto das cavalariças do Colégio Militar, a Formação. Para a 1ª
e 2ª Companhias estavam reservados filmes softs, mas para a 3ª e 4ª já eram atrevidos, principalmente quando o decisor passou a ser o padre Viana. A "Quadrilha Selvagem” teve um
efeito brutal na libido de muitos, pois a cena dentro duma pipa atestada de
vinho tinto fez entrar pelos olhos, a seco e sem preliminares, um par de mamas
vivas, que os colocou a todos, por breves milésimos de segundos, na pele do herói,
com a Marilyn Monroe da Luz, a fabulosa Rosa. Os espetadores não resistiram à
tentação e encheram o recinto, que se pretendia cultural, de opiniões
impróprias para um estabelecimento de ensino com tão grandes pergaminhos. E
ainda por cima na plateia alguém que estava na última fila deu um chuto na
cadeira da frente, não se sabe se com as cuecas ao rubro, fazendo com que todas
as outras até ao palco caíssem como peças dum dominó, obrigando o oficial
responsável, aspirante Felício, a mandar interromper a sessão, para pôr em
ordem o saloon…perdão, o espaço cultural, dando ordens para que as luzes se
acendessem, vendo nisto uma forma de impressionar a sua convidada especial. A
Rosa ficou assim exposta à parte do batalhão colegial mais sensível, dir-se-ia
que a moça que uns minutos antes nadava dentro de uma pipa de vinho tinto com
os seios a sorrir, tinha-se materializado naquele espaço com cheiro a cavalo, a
convidar todo o cineteatro para o pecado:
-
Porque é que
aquele dentolas, que caiu aqui de pára-quedas, tem direito à Rosa, e nós não? - Resmungou alguém da plateia. - Temos de fazer-lhe uma visita de cortesia um dia
destes.
A “Quadrilha Selvagem” tinha dado assim início ao desencadear de acontecimentos,
que iriam dar lugar, meses mais tarde, a um dos mais famosos enredos do Colégio
Militar, local único de grande intensidade, cheio de sentimentos e sensações
pessoais, que nos dias que correm teria direito a uma longa-metragem do Manoel
de Oliveira, com estreia exclusiva no teatro D. Luís Filipe. A sessão dos mais novos
também não se ficou atrás, trazendo à cena um herói da fita chamado Alfredo, um
mentiroso compulsivo. A partir desta data todo aquele que exagerasse numa
história ficaria conotado com esta personagem, e o azar calhou ao único docente
responsável por todo o batalhão, o padre Miguel. Exagerou num relato e a turma respondeu com um arregaçar das calças, sinal de
que estava a meter água, ao mesmo tempo que todos remavam com os braços. No exterior alguém foi o responsável pelo acender do rastilho:
- Carioca chupa-me a pichota, - seguido de um biqueiro na porta.
Optou por distribuir umas bordoadas valentes nos da primeira fila, em vez de perseguir o bandido em alta velocidade como era costume. “O Homem que matou
Liberty Valance” enterrou-se em profundidade nas memórias dum Menino da Luz, sucessor da única vítima de atropelamento na parada, pelo colega 384, com
carta e carro, na cena em que os intervenientes comeram uns bifes
maiores que o prato, quando comparados aos bifes da testa fornecidos pelo
Pintado aos alunos. Daqui para a frente sempre que dava de caras com um bife,
lembrava-se do “Liberty Valance” e do seu Colégio Militar. As sessões de cinema
eram um dos momentos mais aguardados da semana, e não se reduziam ao filme
propriamente dito, mas a todo um ritual, desde a marcha, com passagem
obrigatória pelo espaço público, até ao inebriante cheiro a equino, às
tradicionais operações stop dos graduados aos mais novos que ousavam ir comprar
Bolama ao bar durante o intervalo, ao Six a vomitar do balcão diretamente para a plateia, e outras atividades pedagógicas exclusivas deste colégio que tivera no seu seio o Agapito, herdeiro duma coroa que já não existia. E um dia no regresso um grupo de adolescentes
civis, sentados num banco do jardim, resolveu “gozar com a tropa”, e um comandante de pelotão, o Grilo, ordenou “alto”,
“esquerda volver”, e ameaçou-os com um
“destroçar”. Valeu a intervenção do Felício, que afoguentou o inimigo,
impressionando ainda mais a sua acompanhante, a Marilyn de Carnide, musa
exclusiva dos Meninos da Luz, filha do dono das galinhas responsáveis pelos ovos que davam fama à iguaria da Luz: o Amarelo!
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