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315 estórias

Tuesday, August 03, 2004

Linha de (Des)montagem

                          Camarada Choco

                                          

- Conseguimos – gritavam com orgulho as educadoras para quem as quisessem ouvir – conseguimos a “Linha de Montagem”, os nossos alunos vão começar a produzir !
Era o delírio colectivo, a nossa querida Escola acabava de entrar no pelotão da frente do Mundo Ocidental. Pus-me a imaginar ! Um centro industrial pujante no meio da cidade da Amadora, o orgulho de toda uma população, um exemplo para o Universo, o país dos Descobrimentos tornava a renascer das cinzas e mostrava-se agora babado aos bárbaros. E tudo isto devido à já famosa “Linha de Montagem” !
De repente o meu sonho foi invadido pela imagem arrogante do Choco, o melhor operário fabril, a apertar com convicção uma porca a um parafuso monstruoso, pertencente a um petroleiro liberiano que entrara recentemente nos estaleiros da Lisnave. O seu empenho reflectia-se na enorme língua que descansava suavemente no chão de madeira, tendo os olhos colados à cara barroca da sua querida namorada, que recebia o trabalho acabado pelo seu macho e dava início ao seu: desaparafusar ! Não, não era possível, estes pensamentos eram anti-operários, não iria ser com certeza esta a realidade da nossa futura fábrica.
A “Linha de Montagem” iria fazer jus ao seu nome, as porcas sairiam da fábrica devidamente enroscadas, quer quisessem, quer não. Aqui trabalhar-se-ia, o tempo das mordomias chegava ao fim ... avante camaradas ... ó, perdão ... avante mongalhadas !
- Então, onde estão as máquinas ? – perguntou o professor.
- São estas – respondeu a educadora, mostrando-lhe três recipientes de plástico da “Loja dos Trezentos” e vários sacos com porcas e parafusos.
- What !?? Perdão, caras senhoras, eu com toda a certeza que não me fiz entender ! Vou repetir o pedido. Minhas caras colegas, V. Exas. terão a gentileza de me mostrar o material.
- Aqui está !
De novo os recipientes de plástico, os sacos com os parafusos, as indomáveis roscas e .... e ..... ( claro que faltava alguma coisa, a sua indignação era genuína ! ) as irresistíveis anilhas finas e anilhas grossas, escolhidas em função do tamanho dos parafusos dos operários.
Fui outra vez puxado para o mundo alucinante da cadeia de produção e dei de caras, para mal dos meus pecados, até já parecia uma perseguição, com o rei dos trabalhadores, o irresistível sindicalista Choco, que apresentava agora um cartão de identificação colado à testa, que o denunciava como membro do clube dos portadores de Síndrome de Treacher – Collins. A mania das grandezas deste macho da Brandoa já me começava a irritar ! Estava agora a tentar pôr no seu parafuso uma anilha fina, não se coibindo de usar como martelo a cabeça oleosa da sua colega operária, a Dona Lolita. Ao seu lado estava a Telma Estrábica a tentar pôr uma rosca num parafuso fantasma, produto da sua visão dupla. À sua frente a Florbela debicava alegremente nas porcas, sendo a sua barriga de grávida testemunha da sua gulodice extraterrestre, não se coibindo de lançar uma mão ao parafuso do seu amado. Na ponta final da linha de produção estava a majestosa Zobaida tentando, há já muito tempo, colocar a sua anilha grossa, sendo prova desse esforço o bigode que entretanto crescera, cobrindo-lhe agora o lábio superior, dando um toque nobre à sua silhueta barroca.
De repente a confusão instalou-se na secção S.L.M.E.A.A. quando a operária Papoila resolveu suspender , unilateralmente, o trabalho, para presentear o seu camarada de posto com um jacto de vómito, deixando-lhe um odor muito in, digno dos melhores perfumes Brandoenses, como, por exemplo, a célebre “Essência de Anão”. Isto obrigou o operário a soltar do parafuso a sua mão direita, para assim poder retirar dos óculos os restos da maçã, bife e massa e outros produtos alimentícios calóricos, que lhe perturbavam a visão de 140 dioptrias, esquecendo-se, no entanto, que a mão esquerda já há muito tinha virado a 180º, sendo por isto inútil nesta faraónica “Linha de Montagem”. Como se previa, a Lei da Gravidade era para todos sem excepção e assim o parafuso despencou em direcção ao solo, acabando por aterrar na cabeça do JóJó Báfo-de Bode, que estava a sorver, com enorme prazer, um resto de bife expulso das entranhas da sua amiga Papoila. O que se ouviu na secção S.L.M.E.A.A. ( Sub-Linha de Montagem para Espásticos, Atetósicos e Afins ) não foi um “ai”, porque o operário Báfo-de-Bode não era dotado para a oralidade, mas também não correspondia a um “ui”, porque o som vinha das entranhas, tal como um vulcão, deixando no ar um pressentimento de estado convulsivo, seguido de hecatombe de merda. Perdoem-me, mas só pode ser este o termo certo ! Na nossa alegre Casinha os utentes há muito tempo deixaram de fazer coco, fazem merda, muita merda, em qualquer altura, em qualquer lugar, sem avisos, tudo à traição, e muitas vezes com cumplicidades familiares, que os atulham de purgantes, dados nas alturas certas, para eles assim despejarem o conteúdo intestinal longe de casa. E foi numa das ocasiões mais impróprias que a operária Mercedes Esgoto resolveu expulsar os quilitos que tinha a mais. O resultado ficou expresso no número alucinante de moscas por metro quadrado.
Os episódios laborais foram-se multiplicando, tendo atingido o seu auge na manifestação de operárias junto à porta da Administração. Queriam ter os mesmos direitos dos seus colegas machos, ou seja, o uso de bigode e pêlos nas pernas. A Patroa não cedia ! Mulher que fosse encontrada na “Linha de Montagem” com pedículos capilosos nos beiços ou nos membros inferiores era de imediato obrigada a deslocar-se à zona da tosquia, mesmo que isso significasse divórcio, fim-de-namoro, fim-de-amante, etc., etc. A “Igualdade” ainda era uma palavra vã nesta fábrica de Roscas, Anilhas Finas, Anilhas Grossas, Mongas e Parafusos.
Mas, e há sempre um “mas” em todas as histórias, a hora da libertação aproximava-se, como o nevoeiro pela costa. O sinal veio através de um jornal clandestino, que já circulava nas hostes operárias, o “Almondegas”, assinado pelo punho da operária Catarina Eumacho ( pseudónimo da Zobaida ). O título do pasquim não deixava dúvidas:

“O Buço é do Povo, Abaixo a Rapação”.
A resposta do poder foi brutal, mandando retirar as drogas que paralisavam os poucos neurónios disponíveis, apagando de vez estas veleidades revolucionárias, deixando o povo trabalhador à mercê da tirania das suas almas.
A partir desse momento não havia nada para ninguém, acabaram-se os Largastil, Mellail, Brunil, Nalium, Unisedil, Tegretol, Diplexil, Sabril, Bialzepan, Luminal, Noostan, Artane, Haldol,.........
As palavras revolucionárias inundaram de imediato as paredes brancas:

“Espásticos Unidos jamais serão vencidos”
“ Abaixo as Roscas Fascistas “
“ Operário Amigo Junta a Nós a Tua Atetose “
“ Marreco Trabalhador, o Povo está Contigo”

A Revolução estava em marcha, ninguém a parava. Do alto do palanque, tal qual um Lenine de saias, a camarada Lolita enchia os ouvidos dos seus colegas com a sua verborreia revolucionária, estando agora mais vermelha do que o normal, talvez devido à falta das doses maciças de Diplexil. No meio da multidão de fêmeas que clamavam pelos seus bigodes, um agente fascista disfarçado com uma saia e uma camisola do Benfica com o número 69 e um cheiro popular, tirava partido do calor revolucionário e abusava das ingénuas camponesas.
- Há, Ó, Ó, Há, Á, Á – gritava, excitado, o técnico de porcas.
Até o Zé Balbas gritava de emoção e furor proletário, prontificando-se a ajudar o Fangio Espástico a pegar o bólide e a desaparecer no meio de um chiar de pneus, pelos vastos corredores da fábrica de roscas e anilhas, tendo-se esquecido de parar no sinal vermelho, apanhando assim distraída a Carolina Caracol que, com o impacto, ficou sentada ao colo do piloto, indo ambos precipitar-se pela Secretaria adentro, só parando em cima da Dona Sãozinha, que viu, para seu desespero, as folhas de pagamento ficarem coladas ao tecto, devido ao excesso de baba revolucionária, tendo ainda tido tempo para recriminar os invasores:
- Saibam V. Exas. que se esqueceram de pedir licença para entrar !
O estrondo trouxe-me de novo à realidade. E lá estavam eles, aqueles charmosos homens e mulheres, a trabalhar arduamente a um ritmo de caracol, no eterno ciclo

PARAFUSO, ANILHA FINA, ANILHA GROSSA E PORCA.
Ao longe a cera já borbulhava, pronta a atacar o buço mais entranhado e o pêlo mais teimoso !





2 comments:

MMM said...

Olá... Vim conhecer-te... e vou ter de voltar com mais tempo para ler as tuas aventuras com mais calma e rigor!

Escrever é para quem sente e sabe! Se não publicam agora... quem sabe se um dia não vão andar atrás de ti para o fazer?!?
Nunca desistas...
*MMM

Anonymous said...

Obrigado por intiresnuyu iformatsiyu