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315 estórias

Friday, November 23, 2012

As Noites dos Facas Longas



Comandante Guélas

Série Colégio Militar

“Não é necessário acreditar numa origem sobrenatural do Mal, os homens são capazes de toda a maldade” 

 Joseph Conrad 

O Colégio Militar sempre deu muito de bom, e pouco de muito mau! Por terem feito uma “brincadeira” ao professor de inglês, um capitão, todos os graduados de 1932 foram chumbados e, em vez de expulsos, como pretendia a direção, por causa de um deles ser familiar de uma eminência parda do regime, foram graduados no ano seguinte em furriéis. Na disciplina de Inglês dos anos 70 havia o “American Language Course”, dado no futurista Laboratório de Línguas, com boxes individuais para cada aluno, apetrechadas com uma panóplia de instrumentos dirigidos por um docente em cima de um estrado, com uma consola cheia de botões à sua frente que, quando se esquecia de desligar os microfones, arriscava-se a ouvir o grito do Fogaça:

- Ó Tabi, chupa aqui!

Na Sala de Cinema, que fazia concorrência a muitos cinemas, o Pequito projetava filmes em francês, mas a maioria aproveitava para dormir, exceto o 69. E tudo isto para tentar fazer com que os Meninos da Luz ganhassem competências extraordinárias no uso da língua. Mas nada vazia concorrência ao “Swedish Sexual Course”, onde umas suecas atrevidas vaziam de tudo para arrebitar os canários da rapaziada, cujos proprietários não davam descanso à bicharada. O roubo, “descaminhamento” para ser mais correto, pois estes meninos não roubavam, das “Ginas”, não representava um ilícito criminal, mas antes um ato de camaradagem, na difusão da arte de bem cavalgar uma almofada. E por causa das malucas tornou-se famoso nos anos 90 o Pija-Man, um super-herói equipado com um pijama turco preto, que as farejava à distância, fechadas a sete chaves nos armários metálicos verdes, raptava-as, esgalhava, e tornava a pô-las no lugar, sem que o proprietário desse pela violação, exceto às vezes algumas páginas coladas. Mas se o gamanço implicava dinheiro ou outro assunto do "Índex Colegial", abria-se a “Caixa da Luz”, de onde saiam todos os demónios e males do colégio, que davam origem a muitos processos dos Távoras. A memória é uma forma poderosa da experiência involuntária que muitas vezes regressa associada a circunstâncias do presente, como fluxo de instabilidade, o que a torna uma realidade para além do tempo, um fluxo infindável da consciência, com sensações físicas difusas, imagens, odores e sons, com tanta vivacidade e complexidade, que nos fazem regressar ao colégio. Não podemos esconder os nossos pecados, não podemos enterra-los, temos de carrega-los, temos de admiti-los com orgulho. O orgulho não advém da consumação do erro, mas da coragem que é necessária para admitir esse erro. Havia tradições e tabus no Colégio Militar que eram disfuncionais para o espírito de corpo e de camaradagem. Como é que se chegava por vezes àquela loucura e àquele mal em estado puro?

Quando o 401 entrou na sala de leitura da quarta companhia no sábado à noite de um janeiro gélido, porque tinham ficado todos retidos, conforme fora ordenado com a conivência de alguns oficiais, ia com um sorriso confiante, que depois deu lugar a um sorriso apreensivo, um esgar de sofrimento, um vazio nos olhos, um tremer de medo, exausto, com sede, um tímpano furado à chapada, o sangue a sair em esguicho, uma marca no rosto de uma agressão com uma garrafa de whisky Highland Clan, gamada na Soca, ou oferta de algum miliciano acalorado, com dores intensas no cotovelo esquerdo, operado duas semanas antes para retirarem os parafusos, de uma lesão ganha a representar com orgulho o Colégio Militar na Classe Especial de Ginástica um ano antes, atingido agora barbaramente pelas pernas arrancadas às cadeiras, que estavam nas mãos dos psicopatas de ocasião, cegos por um ódio profundo durante toda aquela longa noite, em sentido. O espaço dedicado à “leitura” transformara-se num tribunal inquisitorial, a orgia de violência era a quem mais ordenava, estavam presentes quase todos os graduados da quarta companhia e de outras, e do Comando, com graduação igual ou acima do Comandante de Companhia. E tudo isto porque tinham desaparecido 350 escudos dum armário, 150 escudos do saco preto de outro e uma minicalculadora científica, que apareceu dois dias depois debaixo duma cama, após a ameaça de uma firmeza! Mais tarde o autor deste último roubo foi apanhado com 100 dólares de um colega durante a viagem de curso, depois de terem sido obrigados a formar numa parede da Legião Estrangeira em Nice, onde foram revistados, e confessou também o desvio da calculadora. Para manter a tradição, escolheram aquele que nunca fora subserviente, que não era adepto da graxa, cujo pai nunca presenteara os graduados com lagostas, como aconteceu duas décadas antes, em que um general enchia semanalmente os graduados e os oficiais da companhia com caixas de marisco, cujo filho um dia acusou, durante um desses encontros íntimos com o comando, alguns colegas, de atos indignos, o que fez com que fossem acordados brutalmente às duas da manhã, torturados, uns queimados com cigarros, entregues depois aos oficiais, que continuaram a festa, mas que nunca conseguiram que eles dissessem aquilo que eles queriam ouvir, porque a verdade era só uma. Valeu existir um Comandante do Corpo de Alunos Oficial muito competente, que investigou, e castigou o denunciante e os cobardes com estrelas nos ombros. Assim, como o 402 lhes estava atravessado na garganta, transformaram-no, a ele e ao vizinho de cama, e, portanto, suspeito de ter informações, em sacos de pancada, onde despejaram todas as frustrações da breve vida. Os carrascos só queriam ouvir o “sim”, mas o 401 e o 402 não deviam nada, apesar de teme-los, mantiveram-se firmes, e em sentido, como obrigavam os “regulamentos”, durante toda a noite. E como os ratos são sempre os primeiros a abandonar o navio, um colega também suspeito entregou em desespero uma lista de todos os roubos que fizera desde a entrada no espaço educativo, onde não constavam estes, ganhando assim um bilhete para a primeira fila reservada à assistência na Sala de “Leitura”, sinal de que nestes tempos desconstruídos bastava uma folha de Excell para comprar graduados. Um dos inquisidores por vezes entrava em histeria e soltava gritos efeminados, mostrando que tinha as hormonas trocadas, e por isso tentava ser o mais macho. O 402, o alvo, aguentou-se firme durante vinte sessões. Nunca mais quis saber do colégio, talvez esta verdade traga a reconciliação!

 

 “Zacatraz” aos bravos 401 e 402, que se portaram com “Ardor Guerreiro que se apura”.

Thursday, November 15, 2012

Um dia na vida do Menau


Comandante Guélas

Série Colégio Militar 

No Colégio Militar a maior parte dos alunos estava constantemente a tropeçar em si mesmo, por isso as cabeças borbulhavam diariamente. O Menau iniciou a aula com um discurso que iria fazer na Assembleia. Cada aluno lia uma parte, até ele o interromper e pedir:
- "Pequena obação", - para os medíocres
ou
- "Grande obação", - para os alunos de excelência, raros nesta turma, porque a maioria ovacionava com as palmas e os pés.
Por isso mudou rapidamente de assunto antes que o caos piorasse.
- “Para alguém sou um lírio entre os abrolhos”, - ditou o Menau  ao 4º E, com uma  intensidade emocional que o transformava numa pessoa diferente sem o sotaque do Porto, andando de um lado para o outro no estrado.
- Stor, - chamou o Gordini, pondo o braço no ar, e continuou. – Entre os quê?
- Abrolhos!
- Agrolhos?
- Não é “agrolhos”, é “abrolhos”! – Gritou o Menau, carregando ainda mais no sotaque nortenho, ao mesmo tempo que dava um banho ao Six com uma chuva de perdigotos.
E continuou:
- “E tenho as formas ideais de Cristo”!
- E tem as formas ideais de Cristo? – Interrompeu o Vinasse.
- “E tenho”, TENHO, - respondeu exaltado, engasgando-se com o tabaco que estava a mascar, que guardara religiosamente na bochecha esquerda, sendo obrigado a abrir a gaveta da secretária à pressa, para onde enviou uma soberba cuspidela.
E continuou a ditar o poema “Alguém” do Cândido, mas já com as emoções à flor da pele, que o obrigaram a acelerar o ritmo:
- “Para alguém sou a vida e a luz dos olhos / E, se na terra existe, é porque existo”
- Xisto? – Perguntou o Leitão.
- “XISTO”??????? – Indignou-se o Menau, batendo com o livro de ponto na mesa. – “EXISTO”, “EXISTO”, ó burrico!!!!!
O ditado tinha-se transformado numa brincadeira, havia dúvidas a rodos, o Menau fora envolvido por súbitos clarões, fragmentos curtos de relâmpagos, a voz desaparecera, lágrimas escorriam-lhe pela cara, o docente estava reduzido a um  espetro psicótico, a roçar o niilismo, mergulhado na escuridão angustiante do 4º E, que se transformara numa turma a preto e branco, com muito grão. Prosseguiu! Deu seis de seguida sem interrupções, até que, quando a alma já tinha atingido a homeostasia:
- “Esse alguém abre as asas no meu leito”!
- “…do meu leite??? – Perguntou o Escalope, pondo-se de pé, com o braço tão esticado que parecia querer riscar o teto.
- “NO MEU LEITO”, “NO MEU LEITO”, óh carágo, menino! - Gritou desesperado o professor de Português, em maiúsculas e a bolt, e continuou. – Vós sois uns insensíveis, vós não mereceis as mães que tendes.
Estava na red line, exausto, a voz fora engolida pela emoção, dizia frases imperceptíveis, parecia estar próximo do fim, apoiara-se na secretária, tinha as pernas presas, os olhos ardiam com o sal do suor. Permaneceu mudo durante uns minutos que pareciam uma eternidade, até que disse com uma voz calma:
- Eu cá não sou bingativo, mas quem mas faz paga-mas. Chefe de turma, bai-me buscar um capote, está um frio do carago!
Deu inicio às tradicionais chamadas orais, mas desta vez não aceitou os voluntários, o Horrível, o  Peida-Gorda e o Pitosga que tinham sido escalonados para fazer o TPE, uma forma que a turma arranjara para dar a volta à questão e não ter que estudar muito, e assim ganhar uns valores extra pelo ato de coragem. O Menau abriu então à sorte a caderneta, gesto que há muito não acontecia, e a fava saiu ao Peidão! 

Thursday, November 08, 2012

A última Mocada







Comandante Guélas


Série Colégio Militar 



A mocada não é apenas a nossa identidade passada, é muito mais do que isso, é também um conjunto de valores que nos importa prosseguir para o nosso futuro coletivo. A mocada representava a força da juventude e da ousadia daqueles que lutavam por um ideal, que não sabiam qual era.
O toque da alvorada ecoou pelas quatro companhias, e o 8 (Preto) apercebeu-se que estava com a moca anormalmente rija. Mas não era só a dele! A do 260 (Pesera) igualara a dureza dum pau, o 4 (À Nora) nunca imaginara que a sua alguma vez se transformasse num ferro, o 274 (Balde) tentou passar despercebido, mas não havia sítio onde esconde-la. A epidemia de mocas rijas atingira todos os graduados e sucessores, parecia que a mítica Rosa dos anos 70, filha do senhor Nunes do trator, o responsável pelo curral e o aviário, tinha feito uma visita de cortesia aos sonhos de todos estes adolescentes desaçaimados, e bafejado as suas toalhas. Na noite anterior tinham estado atarefados a molha-las, torce-las, alguns a enseba-las, e por fim a dobra-las e a atá-las, ficando depois penduradas nos armários a secarem. Como verdadeiros patriotas, preparavam-se para as comemorações do Dia da Independência, era o tempo da tradicional Mocada, onde os Portugueses e os Espanhóis se iriam defrontar em duas arenas, primeiro nos claustros, em que os alunos do 11º ano de 1995 estariam no papel dos inimigos, os graduados do 12º ano no papel dos valentes lusitanos, e a arraia miúda a assistir no primeiro andar. Os castelhanos atiçaram a raiva do adversário com um discurso provocador, parecido com o do 73 de 1983:
“Vocês não valem nada (grito)
Está à nossa frente gente ”acubardada”
Vão levar na tromba logo à 4a badalada
Não vão sair daqui vivos depois desta Mocada”

Esta última frase era  premonitória! A assistir à Mocada esteve um dia o Ossos, o esqueleto de Biologia, com uma tabuleta que dizia “1 hora com o Secas”, uma sentida homenagem ao ten-coronel Estorninho, Comandante do Corpo de Alunos nos finais dos anos setenta, altura em que teve nas mãos a missão da sua vida: libertar o Colégio Militar da balda instalada pelo 25 de Abril de 1974, e fazê-lo regressar aos tempos áureos do antigamente. Com ele uma repreensão clássica de 2 minutos tornava-se numa dissertação revolucionária de 20 minutos, ou seja, tinha trocado o tradicional  “pacote de estaladas em sentido”, pela abrilesca “seca pedagógica”! A assistir à última Mocada digna de registo, numa homenagem sentida a todos os antepassados colegiais, sentia-se a presença duma espécie de Classe Especial do Corpo Docente, não os saudosos “Gafanhotos” do Professor Dario, mas sim os “Joaninhas” da pedagogia, liderados por aquele de quem todos ainda falam: Semita (professor Grijó)! Na ala oposta estavam os “Bichos-de-Conta”, os funcionários, liderados pelo lendário Moca.
- Ó moçoooos, ou batem bem ó levam todos uma bengala para casa (7 valores), - gritou o Semita, ao mesmo tempo que avançava uma peça no jogo de xadrez que estava a disputar com o oficial de dia.
Um barulho dum copo a partir-se ecoou pelo espaço mais nobre do Colégio Militar, seguido dum grito de guerra colegial, “Pê Jê” (“Paga Já”), que obrigou o Zé Pereira a sair a correr dos “Bichos-de-Conta” com o bloco de notas com que iria autuar o prevaricador, sendo aplaudido pelos colegas, onde se podia ver o Sabino, o Xavier, o Mota, os irmãos Badalo, o Celestino, o Patronilha, o Ramos, a abanar o molho de chaves que trazia na mão, o Miranda, o Nunes, o senhor João (Meia-Lua). Por isso nesta festa de muitas gerações, só possível naquele espaço místico, foi batido o recorde do “Um por Todos, Todos por Um”:  1/15000 avos de um copo” foi a fatura entregue a cada camarada!
Na ala dos “Joaninhas” podia-se ver, com a ajuda da memória coletiva, o Oliveira (Baco), o Gunga, o Brito (Judas), o Pina Lopes, os irmãos Farinha Tavares, o Alcatrão,  o Tás-a-Ver, o Dias Antunes, o Loureiro (Clarence), o Mellow Yellow, o Xaxa, o Mamas, o Vicú, o Tabi, o Pop, o Menau, o Ferrari, o Tadeu, o Falcão, o Pintelheira, o Raposo, o Bozo, o Pato Marreco, o Galo, o Don-Don, o Brazão, o Chouriço, o Fá, o Sá Dantas, o capitão Dias Antunes, o Camões, o Lufinhas, o Mexicano, o Teacher, o Cortesãoo Cuequinha, o Nogueira, o Óscar, o Silveira, o Santola, o Dores, o capitão Oscaralhinho, que continuava com a mania de pentear, a partir da orelha, a resma de cabelo que lhe sobrava, e tantos outros arrumados na roda do tempo.
Após o lançamento do traidor Miguel de Vasconcelos da varanda, deu-se início ao confronto, cujos papéis mudaram algum tempo depois, passando todos os de baixo a ser portugueses, enquanto os de cima se transformaram em ranhosos castelhanos, que tiveram de passar pelo meio de duas fileiras de jovens adolescentes com as mocas nas mãos, decididos a chicotear-lhes impiedosamente os rabos impolutos. Mas desta vez os portugueses eram tantos, que os inimigos foram perseguidos impiedosamente até às companhias. As marcas com que ficaram pareciam, numa primeira impressão, que os petizes tinham sido atacados por uma praga de pulgas, mas a cor negra depressa enfureceu as progenitoras, que tomaram de assalto o gabinete do director, ameaçando fazer com ele e com o Pencas (354), o mesmo que os carrascos dos filhos tinham feito ao boneco do Miguel de Vasconcelos. A lendária Mocada caiu assim às mãos das mães, não de Bragança, mas sim dos castelhanos.
Atualmente os espanhóis continuam ainda a passar por entre os portugueses, mas estes agora só podem bater palmas e cantar “Minha Amora Madurinha”. Enfim, modernices!