miguelbmiranda@sapo.pt
315 estórias

Monday, March 11, 2013

Luz XXI

Comandante Guélas
Série Colégio Militar


A decisão já era oficial, o Colégio Militar preparava-se para receber no seu seio as Meninas de Odivelas e os Pilões. As Dulcineias viriam, não através do túnel que várias gerações cavaram em vão com as suas próprias mãos, mas sim de Metro. E isto estava a causar o pânico em alguns Meninos da Luz, com medo que elas viessem atraentes, ameaçadoras, em poses sedutoras, idolatradas. Por isso eram contra, queriam a exclusividade, mesmo reduzidos a uma turma por cada ano:
- Se conhecerem o colégio que eu conheço, deviam saber que esta fusão só terá um efeito, a sua destruição, - gritava um Bétinho que nunca sentira na pele um pincel frio cheio de tinta plástica preta com pasta de dentes, que fazia arder os tomates, e que era acordado todos os dias, não com uma corneta estridente no altifalante, mas pela mamã através do telemóvel.
- Oube lá ó mocinho, tu percebes tanto do colégio como o sapo tem cabelo. Já viste algum? Ora aí tens! – Respondeu-lhe do Além um especialista na matéria.
A tradição dizia respeito ao antigos, àqueles que entravam ao domingo e saiam na tarde de sábado, ficando isolados do mundo, entregues à sua sorte e à dinâmica do lugar, que os tornava rijos. Eram os gloriosos tempos das pinturas genuínas com trinchas e todo o tipo de químicos, das intermináveis firmezas, das apresentações à alvorada, do “prazer” de comer umas bordoadas em frente à Companhia, por ter um vinco no lençol, ou o fato de treino desarrumado, ou ter chegado cinco minutos atrasado aos Estudos, e muitas, muitas outras atividades impensáveis nestes tempos de mudanças. Uma história de sucesso feita de rigor, de sensibilidade, de garra e de fé, enfim, de “engenho e arte”.
- Acho inaceitável que o pessoal da barretina concorde com o ultraje que é a fusão, - tornou a gritar o Bétinho, agora alcunhado de Cuecas de Buda, mesmo sendo proibido nicknames, para não traumatizar os petizes, que nunca tinha tomado banho num balneário com uma só torneira, onde a água gelada alternava com a água a escaldar, e cujo tempo para o serviço era apenas de vinte minutos, nem mais um segundo, a partir do qual tinha pouco tempo para se apresentar nas aulas na outra ponta do colégio, porque caso chegasse atrasado tinha garantidos uma dose de abrunhos na última formatura do dia.
- Ó pá, tu assassinas-me o colégio. Bai lá armar-te em durão para as saias da tua mamã, - exclamou do éter outra voz eterna.
- Este moço merece uma bengala, não pesca nada de nada, - reforçou um dos membros do Conselho dos Sábios.
No Colégio Militar tudo dependia da alma, uma alma maior, que crescera do convívio com os colegas, e com a paixão que este espaço despertava. Mas, apesar de tudo, não era a Luz que iria acabar, os outros é que seriam incorporados. Mudava-se, como muita coisa tinha mudado ao longo dos tempos, agora na formatura olhavam para os pombos, à espera de apanhar com uma poia, antes olhava-se de frente, como tudo na vida. O tradicional calcanhar a bater em uníssono, com raiva, no chão, fora substituído pela carícia plantar no alcatrão ("passo de biela e manivela"), pois agora ter calos nas solas era considerado antipedagógico por um estranho grupo chamado Associação de Pais. Quando os Pilões se apresentarem à porta de armas, todos irão ver a sua decadência, com os penachos murchos, substituídos por barrigas proeminentes, sinal de que continuam com abdominais fraquinhos, aqueles que uns anos antes tinham traumatizado o diretor, quando foi informado do chumbo coletivo nos testes físicos de adesão à Academia Militar. As Meninas de Odivelas apresentar-se-ão rijas, virão preparadas para o embate e decididas a mostrar que não irão deixar os créditos da Luz em mãos alheias, bater-se-ão pela barretina de igual para igual, pois são as pessoas que fazem o espaço e não o contrário.


Friday, March 08, 2013

Camarada Choco 92 - Kólidade

Camarada Choco

Aventura 91


A nossa tarefa consiste em ensinar os Desaparafusados a pensarem, mas eles não querem. Já que não é possível acordar-lhes os neurónios, tenta-se agora dar-lhes com a “Kólidade”. E isto ataca todos, porque se algum Aparafusado não se apresentar condignamente, deverá ser denunciado ao guarda Porres. Irá então acabar o organizado Ninho de Indisciplinados, para ser substituído por uma colectividade desorganizada de colaboradores entusiastas, competentes, enfim, promete-se a cura. O primeiro a ser apanhado nesta rede burocrática foi o Cabo Pilas, porque trazia por debaixo da camisa uma t-shirt de alças:
- Senhor psicadélico pedagogo, não estamos na época balnear, isto aqui agora é uma casa com Kólidade, - gritou a autoridade, desequilibrando-se e pisando com violência o irmão gémeo do arguido, o único motorista da Venteira que guiava em pé, que se dobrou com a dor, pondo à vista de todos umas cuecas fio-dental do Benfica.
- Pai, - atirou o Capivara, apontando para o mano do Cabo Pilas.
- Pai?? Agora já sei porque és Desaparafusado, - gritou a mãe puxando desesperada.
Algures nas entranhas da Escola para Desaparafusados da Venteira:
- Puuuuum, Voooohsss, - libertou-se o Gungunhana Branco, acertando em cheio na cara da Schnauzer.
- Meu Deus, mais um relatório, - gritou a Menina Tatrícia agarrando em duas folhas:
Ocorrência 1 - “São quinze horas e trinta e cinco minutos e dez segundos, do Ano da Graça da Doutora Sem Canudo, e venho por este meio declarar que o mongão soltou uma Cavilha”.
Ocorrência 2 – “São quinze horas e trinta e seis minutos e quarenta segundos, do Ano da Graça da Doutora Sem Canudo, e venho por este meio declarar que a cliente Schnauzer apanhou em cheio com os gases do Gungunhana Branco, na face, ficando por alguns segundos privada de oxigénio, com os cabelos inclinados à retaguarda, tendo-a posto de imediato ligada à bilha de oxigénio”.
- Estes relatórios estão incorrectos, - avisou uma das Sobrinhas da Tarde, batendo violentamente com um carimbo nas folhas, deixando no papel uma marca vermelha com a cara da Madrinha. – Tem de especificar a quantidade da cavilha do Gungunhana, a Kólidade exige sempre uma marca.
- Posso escrever “o cliente deu uma cavilha semelhante a um dinossauro” ?
- Menina Tatrícia, dinossauros há muitos, tem de dar uma marca. E ainda por cima acertou na cara da Schnauzer, pondo-a em risco de vida. Se ela der o berro, sempre poderemos atirar as culpas para cima da fábrica que embalou os feijões, que o Gungunhana comeu.  Percebeu?
- Foi uma bufa com 125 metros cúbicos!
- Está melhor, mas substitua “bufa” por “flato”. Um cliente da Escola para Desaparafusados da Venteira “flateia-se” sempre. No outro tem de especificar a posição da cliente quando foi confrontada com os gases intestinais do colega. Estava em pé? Sentada? De cócoras?
- Mas isso interessa?
- Na “Kólidade” tudo interessa. Levar um “flato” em pé é diferente de estar sentado. O registo “com os cabelos inclinados à retaguarda” indica que ela estava de pé, o que é um risco para a sua saúde, sabendo nós que ela pode dar o berro a qualquer momento.
E assim, após as correções necessárias, os novos relatórios da Menina Patrícia passaram o crivo da Kólidade, e tiveram direito ao carimbo verde com a cara da Madrinha a fazer o “V” com os dedos. Entretanto no refeitório reinava a confusão, parecia o IC 19 em hora de ponta, agravado por um acidente entre duas cadeiras de rodas.
- Estou tramada, o Fangio Espástico entrou a abrir, e foi em sentido contrário, - gritou a velha Pilca atirando para o chão o chapéu e a raquete de autoridade. – E ainda por cima acontece quando sou eu que estou de serviço.
As setas desenhadas no chão na noite anterior não deixavam dúvidas, o sentido de circulação no refeitório era agora único, passara do caos indiano para a ordem alemã.
 - E o colete, onde está o seu colete, Dona Pilca? - Perguntou a Sobrinha da Tarde, soprando com raiva no apito.
- Colete?
- Sim, quando está em funções rodoviárias neste espaço, tem de usar colete, é uma regra da Kólidade.
E a Kólidade estava agora à porta da Sala da Listete a medir a qualidade do ar.
- Não podemos ter valores iguais ao do Trancão, - informou a sempre presente Sobrinha da Tarde.
- Mas eles cagam que nem heróis, - explicou a chefe do espaço dos Quiabos Adultos.
- “Cagam”? Os nossos clientes já não “cagam”, defecam, a Kólidade assim o obriga. E mesmo que a “defecagem” seja de leão, está aqui o Haise para disfarçar.
E eis que passa a correr a Fininha dos Serviços Administrativos, sendo de imediato interceptada pela autoridade:
- Onde pensa que vai com essa pressa?
- Estou com a bexiga cheia.
- Então fica a saber que a bexiga a partir de agora só poderá ser despejada nas casas de banho e não no polidesportivo pelado como é seu costume, percebeu?
Mas havia um espaço em que a Madrinha recusava a entrada da nova moda: o lago!
- Aquilo tem de ser conforme a Kólidade, - explicava com frequência a Afilhada da Tarde.
- Está conforme a minha Kólidade, - gritou a dona do estabelecimento. – O meu caneco…canudo, diz que eu também estudei biologia, por isso não admito que ponham em risco a vida dos bicharocos, já tão ameaçados pelos Desaparafusados que vão para lá nadar.
Não havia tempo para ocorrer a todos os incidentes, no refeitório tinha havido uma nova ocorrência, um coxo entrara em fora de mãos e capotara para cima do pudim duma zarolha, que tivera de imediato uma travadinha, seguido de um abrunho que acertara no meio dos olhos dum chinês, que….enfim, o saudoso Kaos habitual instalara-se no restaurante, para gáudio de todos. 

Tuesday, March 05, 2013

O Pirilampo da Luz


Comandante Guélas
Série Colégio Militar




Esta é uma estória que sussurra que todos os gestos têm preços. O enfermeiro Valentim viu um aluno a entrar de rompante, e pensou tratar-se de um primo do Sissé, mas quando se apercebeu que era um caucasiano que trazia a boca em forma de ovo, gritou em voz alta:

- A Enfermaria não serve para tomar banho!

Mal ele sabia que o Chaminhas (475/77) trazia na cara a energia que tinha saído das entranhas do Sherman que estava exposto na parada do Geral das Companhias. Tivera um encontro imediato com um céu laranja flamejante, seguido de um azul em remoinho, ou seja, este Chaminhas, a que se seguiu outro Chaminhas (475/86), um capricho do destino só possível no Colégio Militar, tivera a visão do Inferno. Mas não foi um Sherman qualquer que despejou os seus gases inflamados sobre a metade esquerda da cabeça do Chaminhas, o tanque fazia parte de um lote raro (188) dos M4A1, conhecidos por “Grizzly”. Recuemos um pouco. O graduado Nhó Nhó (128/71) nem queria acreditar no que via, a 1ª Companhia estava formada no geral, e o 475 noutra onda, sentado a tentar acender um fósforo, raspando nos mosaicos do chão. Até o castigo foi original, o Chaminhas nº 1 não teve direito à clássica bordoada em sentido em frente aos colegas, mas sim a ser pendurado pelos pés sobre uma das latrinas onde um formoso cagalhão do Gordo espreitava pela borda:
- Se fazes esta gracinha outra vez, mergulhas direto ao calhau do 459, que pelo tamanho vai ficar aqui vários meses. 
Foi também durante uma formatura no mesmo local, nove anos depois, que o Chaminhas nº 2 iniciou a sua carreira de incendiário, que neste tempo era exclusiva de uns eleitos, mas que atualmente está em franca expansão durante os meses de verão. Procedia-se a uma revista aos armários, coisa rotineira no meio militar, quando o graduado responsável deu de caras com um isqueiro:
- Mas para que é que este puto, que só está aqui há dois dias, quer isto?
Dirigiu-se à formatura e questionou o 475 sobre a necessidade daquele instrumento.
- Então não vês que a chama faz parte da alcunha que o puto herdou – explicou o comandante da companhia, dando o caso como encerrado.   
E diz também outra lenda, que a marca da bota num dos tetos duma das salas dos claustros tem um tamanho 39, e pertence a este Chaminhas, arremessado durante uma das atividades da moda, os “Miolos ao Teto”.
No livro de registos do Colégio Militar há só uma referência à entrada de Bombeiros, para apagar um fogo de origem desconhecida que consumiu parte dum canavial, que existia nos anos setenta junto ao ginásio. Os cronistas da época contam que este Chaminhas (o número um), queimou, nesta ocasião, parte do cabelo, que encarapinhou. Este ato pirotécnico foi precedido de muitos treinos no Monte Sinai, a elevação acima do campo de futebol, resultante da acumulação das terras retiradas do local onde construíram o Pavilhão de Ciências.
- A presença do 475 via-se à distância, os sinais de fumo eram diários, - disse uma testemunha da época.
Para acabar em beleza esta história dos Chaminhas, regressemos ao início, mas entrando por outra porta do passado: a época de exames do ano lectivo 1978 / 79. Um dia quando o 475 (número 1) regressava dos estudos, sentiu-se atraído misteriosamente pelo “Grizzly”, que tinha a intimidade toda exposta às intempéries, desde que alguém lhe tirara a tampa do depósito de combustível. Lá dentro um líquido convidava-o para o pecado. Agarrou num ramo de uma árvore, tirou-lhe as folhas, e enterrou-o no buraco do blindado, até “sentir” a ponta a mergulhar no líquido. Puxou o pau e cheirou a ponta.
- É água.
Aproximou o olho esquerdo da abertura, para ver com mais pormenor a intimidade do “Grizzly”, e atirou lá para dentro um fósforo a arder.
VOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOSH
As dioptrias salvaram-no, porque por causa delas usava uns óculos estilo Clark Kent, coisa impensável nos dias de hoje em que a rapaziada opta pelas lentes de contacto, para não traumatizarem. Este Chaminhas viu o sol de frente a bater-lhe nas lentes, que o bronzeou, desde os olhos até à nuca, principalmente no lado esquerdo, tendo permanecido em formato baunilha e chocolate durante “vários anos” (sic). Teve direito a internamento, a cabeça ligada, e a um telefonema para os pais:
- Minha senhora, fala da Enfermaria, vimos informar que o seu filho, o aluno nº 475 encontra-se nestas instalações em formato de conguito!
E porque a história também merece um pouco de romance, esquecemos o facto do Chaminhas ser o "batalhãozinho". Por causa de um currículo destes, o Colégio Militar deu-lhe a honra de inaugurar a chama dos 175 anos, na Parada do Corpo de Alunos, com o Batalhão Colegial formado, e um ex-95 do tempo da monarquia a acompanhá-lo.