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315 estórias

Monday, January 14, 2013

O dia em que o Rei foi ao Colégio










Comandante Guélas

Série Colégio Militar

Estas histórias são escritas por memórias pessoais e memórias em segunda mão. O tradicional Colégio Militar estava definitivamente a mudar, esperava-se agora a visita de um conterrâneo do Sissé, mas que falava uma espécie de tupi e não crioulo, que iria ter, em exclusivo, o batalhão colegial com as armas em riste no campo de futebol. O pequeno-almoço, como já era habitual nos dias em que havia desfile, foi reforçado, para assim evitarem desmaios de ocasião durante a espera. A limusine com o convidado especial parou junto à sala de esgrima e o primo afastado do 361 saiu vestido com um soberbo blaiser vermelho, com o símbolo da Pepsi bordado no bolso. Umas horas antes uma camioneta estacionada no piso por debaixo do refeitório da primeira e segunda companhias, não tinha passado despercebido ao trio maravilha: Cão (328), Camélia (299) e Six (607). 
- Estão a guardar grades com garrafas, - informou o 601 (Gordini).
Junto ao ginásio a festa estava rija, os Meninos da Luz marchavam orgulhosos para o Rei Pélé, que iria de seguida dar o pontapé de saída para um encontro de futebol entre duas equipas do colégio. No guião da Pepsi constava um penalti, cuja baliza seria defendida pelo 661.
- Vou atirar a bola para o lado direito, - disse o ilustre visitante quando cumprimentou o adversário.
Dito e feito, o Dáni fez uma soberba defesa, escrevendo assim nas estrelas mais um feito do magnífico Colégio da Luz, que foi de imediato aproveitado pela imaginação: “Com Pepsi os Meninos da Luz ficam invioláveis”, dizia com orgulho um soberbo militarzinho, o Escalope (307), apresentando arma, mas em vez da Mannlicher, tinha na mão uma garrafa da bebida que o primo do Sissé dizia ser a sua preferida.
Antes do jogo as equipas tiraram fotografias com o rei, e numa delas, tal como o quadro da Mona Lisa, os sorrisos dos que estavam de pé, contrastavam com os esgares dos que se tinham agachado: o 200 ficou firme e hirto como uma barra de ferro; o Morena susteve a respiração; o Tofa ainda sentiu a brisa passar-lhe junto à orelha esquerda; o Rita ficou atordoado; o Becas gritou baixinho, “foi com molho King”; o Pélé desculpou-se com o fuso horário, e pediu calma à rapaziada; o Six pensou, “fuso horário?? Tu estás é podre ó brasuca”; o Cebola olhou maravilhado para o convidado e exclamou, “quando chegar à sua idade quero ter as válvulas de escape como as suas”; o Dáni deu-lhe os parabéns, e chamou-o de Rei Leão. Na fila de baixo, e da esquerda para a direita, o 27 acusou o Cavalo de ter largado uma cavilha maior dos que as  da Nônô; o 466 exclamou, “o rei deu uma salva de boas vindas; o Lory ficou atordoado; o Cascão sentiu a brisa por inteiro; o 574 disse que o barulho se assemelhava a uma bazuca; o Esperma ameaçou que na outra ficava afastado do rei, e de pé.
Mas como neste espaço abençoado pela luz tudo era inigualável, um pouco mais abaixo estavam a decorrer outras atividades culturais, na cave junto aos balneários. Aproveitavam as janelas abertas da cozinha e enchiam a sopa Juliana com todas as proteínas disponíveis, minhocas, bichos de conta, caracóis, e muitos, muitos outros “mariscos” exclusivos da zona. Este foi o segredo para toda uma geração saudável que o colégio produziu. Enquanto isso o “Arroz Generalíssimo” já gritava nos tabuleiros de alumínio XXL, tostado pelo forno que estava na redline, tendo à sua espera recipientes com beterraba e cenoura ralada, que lhe iriam dar um aspeto grumete. No mesmo local, ouvia-se o bater ritmado de botas contra a porta que dava acesso às bebidas milagrosas.
- Acertem o passo comigo, - ordenou o 601 (Gordini), com uma voz de chefe, ao Cão (328), ao Camélia (299) e ao Six (607).
 Mas estavam cansados, a semana tinha sido muito agitada, iniciara-se com um assalto aos bolos do Miranda nos claustros, e várias molhadas aos papos-secos com marmelada, e outros miminhos, uma atividade diária após o segundo tempo da manhã, cujo risco era tão elevado que os funcionários, por uma questão de segurança, punham os cestos à porta das salas de aula uns minutos antes de tocar, e fugiam em debandada. A corneta berrava, as portas abriam-se de rompante e uma turba de Meninos da Luz alucinados mergulhava sobre o recipiente, reduzindo parte do conteúdo a “migas à alentejana”, destinadas aos mais obesos. Mas tudo tinha o seu lado positivo, foi destas molhadas que saíram alguns dos melhores jogadores de rugby do país. E para agravar o panorama o Semita tinha dado uma bengala (7 valores) ao Six na oral de Física:
- Moço, - explicou-lhe o docente, - esta disciplina não é uma cadeira, é uma “chaise long” onde o aluno se estende à vontade.
Pum, CRRR….
A porta foi-se, dando lugar ao tradicional mergulho, um reflexo condicionado que todos os Meninos da Luz adquiriam, apesar de serem só quatro. Estava-lhes no sangue, eram personagens que se elevavam acima das suas circunstâncias. E foi por isto que a promessa do primo do Sissé de dar uma garrafa a cada Menino da Luz não se concretizou, estando este lapso entranhado na memória, como um trauma, do Monstro (493/74), que ainda hoje só bebe Coca-Cola. Nada do que se conta e se vive é ficção, mas usa-se o olhar, a profundidade e a linguagem dum romance, para trazer à luz do dia memórias fantasmas de um outro mundo, porque é disso que o Colégio Militar se trata. E o flato monstruoso do Rei Pelé ficou para sempre guardado nas memórias dos Meninos da Luz, e na foto oficial do evento, não se sabe se como uma fake new, ou um meteorismo intestinal exclusivo do evento!





Monday, January 07, 2013

Os Três Croquetes


Comandante Guélas
Série Colégio Militar


Estas aventuras mostram que nenhum adeus é definitivo, há ainda muitas memórias que circulam pelas veias dos Meninos da Luz, assim como valores que continuam a ser alavancas para o futuro. Quando o Pintado, autor do “Peixe Celeste”, um prato colegial famoso, foi viver para a moradia existente junto à parada, nunca pensou que iria fazer parte da história do Colégio Militar. E a culpa era dos magníficos abdominais, que eram comuns a quase todos os militares da sua idade, que davam a sensação de estarem sempre grávidos. Nesta altura para fazerem uma encomenda de géneros alimentícios, tinham sempre de pedir uma grande quantidade, ao contrário de hoje que basta um pequeno saco do Continente.
- Quantos pastéis de nata deseja? – Perguntou amavelmente o funcionário da pastelaria que estava no balcão.
- 600! – Respondeu a seco o responsável pela degustação dos Meninos da Luz.
O rapaz olhou demoradamente para o militar em formato de leitão e tornou a questioná-lo:
- É para embrulhar ou come-os já?
A zona das refeições era um mundo de fragrâncias, das que vinham directamente das cozinhas, ou indirectamente dos balneários aos lado. E foi durante uma refeição que o 166 resolveu esconder debaixo da mesa os três croquetes que tinham sobrado, devidamente acondicionados no saco do guardanapo. Alguns meses depois, e de novo com croquetes no menu, o percurso dos ditos inverteu-se, regressando à travessa. Chamou de imediato o oficial de dia, o capitão Vitória, e mostrou-lhe com veemência a sua indignação:
- Bifes da testa ainda se comem, mas croquetes duros e com verdete é demais.
  O senhor João, mais conhecido como Meia-Lua, devido aos problemas capilares, não conseguiu explicar a razão para este “encontro imediato”,
- Garanto-lhe meu capitão, os croquetes foram todos feitos hoje.
A seguir à refeição o Maná resolveu procurar algo que o ajudasse na digestão. Escolheu o vinho destinado à missa, que estava na capela dos claustros, mas só teve tempo para dar um golo pois apareceu, vindo das trevas, o padre Peixoto, o professor de História que escrevia as perguntas dos pontos nos triplicados das participações, deitando depois as cópias para o lixo, ação esta que nunca se soube se era deliberada ou por distração, mas que fazia com que nunca ninguém chumbasse.
- Então 78, a bebida é do seu agrado?
Antevia-se um processo, o Maná já sentia uma carecada, e outros miminhos exclusivos da Luz, e ainda por cima agora que se aproximava um Chá Dançante com a presença de muitas Meninas de Odivelas. Mas, ao contrário dos outros, o padre Peixoto deu início a uma dissertação sobre vinhos, que acabou com uma oferta de uma excelente garrafa de Porto e um conselho:
- Tens de bebe-la toda para não ires parar ao Inferno, que era o que te aconteceria se tivesses morcado aquela zurrapa.
Noutra ponta dos claustros a aula do Falcão, professor de matemática, não tinha deixado saudades, a única positiva, um “suficiente”, fora para o 157 (Becas),  por isso o Cascão (436) quando viu que o docente já estava a uma distância de segurança, atirou-lhe com o dicionário de português do Cão (328), “Um por Todos, Todos por Um”, que acertou em cheio no côco do professor.
Não muito longe dali, decorria uma partida simultânea de xadrez, Semita versus Alunos e, pela primeira vez na história deste estabelecimento militar, um aluno com o número 73 ganhava terreno ao professor de Físico-Químicas. Mas foi sol de pouca dura. Com um golpe “acidental” da sua gabardine, o engenheiro Grijó acabou com a ousadia do atrevido, espalhando as peças sobre o tabuleiro. A assistir à cena, e perto da derrota, estava o 15 (Nietsche), que aproveitou a sabedoria do mestre, deixando cair o barrete sobre a zona do jogo.
- Moço, essa foi a melhor jogada que fizeste até agora, - disse o Semita, avançando para o aluno do lado. 
As gravações subcorticais de acontecimentos remotos, que estão muito abaixo do horizonte da vida mental de muitos Meninos da Luz, são as fontes destas aventuras.

Wednesday, January 02, 2013

A Semana de Campo







Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Um militar tem de ser capaz de desenvolver acções com a inteligência e destreza suficientes para surpreender o inimigo e reagir com prontidão e eficácia a um ataque de surpresa do mesmo. E isto implicava uma Semana de Campo, onde os Meninos da Luz iriam mostrar todos os seus conhecimentos adquiridos nas aulas de Infia (Instrução Militar). Por isso as viaturas de caixa aberta do Exército chegaram cedo ao batalhão colegial. Durante a viagem cantou-se várias vezes a tradicional “As Meninas de Odivelas”, mostrando que as relações humanas e as emoções que elas acarretam sempre estiveram para lá das modas e dos silêncios destes rapazes:
- As meninas de Odivelas / Pum, pum / As Meninas de Odivelas / Pum, pum / São umas pu / Tiro liro li / São umas pu / Tiro liro li / São umas pu / Tiro liro li / São umas pu…ras donzelas / As Meninas de Odivelas / Fazem bro…ca à janela / Os namorados dessas meninas / Dão o cu / Dão o cu/ Dão o coração por elas.
Era nestes momentos que o duro tenente minorca de nome Aparício, que ostentava uma placa de grandes dimensões no ombro esquerdo a dizer “Comandos”, se transformava em duríssimo, e não permitia desvios no brio profissional dos alunos. Por isso os alvos na Carreira de Tiro estavam a 200 metros e o almoço dependia da destreza, que deveria ser boa nesta altura do ano. Quando o Gordini (601) carregou no gatilho ouviu-se um estrondo, ao mesmo tempo que o barrete do Cão (328), que estava deitado ao seu lado direito, saltou com violência, ouvindo-se um grito de guerra:
- Fo…-se, – seguido de um tiro por reflexo que acertou na muche do 95 (Coiote), que garantiu assim um “Bife da Testa” para a refeição.
A G3 tinha destas coisas, cuspia o cartucho pelo lado. Mas comecemos pelo início! O calendário indicava o ano de 1978, a Semana de Campo iria decorrer na Tapada de Mafra, e tudo começou pela distribuição das tendas: 3 panos, o teto e a parede traseira, com medidas para “batalhãozinhos”. Por isso a rapaziada teve de dormir com os pés de fora, protegidos pelas botas militares, distribuídas para a ocasião, e que só foram descalçadas no fim das manobras. Como colchão podiam optar pelos catos, pedras, lama e outras mordomias, exclusivas dos Meninos da Luz.
- Lembrem-se que durante esta semana vamos estar em território inimigo, e por isso têm de se comportar como verdadeiros militares, - gritou o tenente Aparício, continuando. – 601!
- Presunto, - respondeu o Gordini pondo o dedo no ar.
- Está a brincar com a tropa? – Perguntou o mini-Comando aproximando-se raivoso do insolente. – Está escalado para fazer a guarda ao acampamento das três às quatro  da manhã. Percebeu?
- Sim meu tenente!
- Olhos bem abertos, o inimigo pode atacar a qualquer altura. Findo o seu turno acorda o seguinte que é o 299.
- Presente, - respondeu o Camélia com brio militar.
- Se o inimigo aparecer quero prontidão rápida. Por isso vamos dar início ao primeiro exercício.
A prova consistia em correr e a um sinal atirarem-se para o solo, mas segundo a técnica militar: os joelhos eram os primeiros a tocar no chão, seguida da coronha da arma, de forma a amortecer a queda e a fazer com que a dita ficasse apontada para a frente, pronta a abafar os inimigos.
- Entendido?
Ninguém respondeu, mas o olhar de lince do Escalope (307), a expressão dura do Picanço (612), o perfil atlético do Gordini (601), a posição de combate do Becas (157), e a vontade para guerrear do Cão (328), serviram como resposta afirmativa para o oficial mais malandro do Colégio Militar.
- Formar em duas fileiras, a manobra vai ser feita aos pares.
O primeiro duo a partir era constituído pelo Bolinha e pelo Peida-Gorda, que demoraram tempo a partir, tendo sido ajudados pelo Aparício que gritou “mexam esses cus”. Na altura em que iam a passar por um monte de cardos, ouviu-se um novo apito, mas a queda só se deu na erva mais à frente, de uma forma muito controlada, que implicou uma paragem, um ajoelhar, o agarrar do barrete e um deitar cuidadoso da arma. 
- Estão a brincar com a tropa? – Gritou o tenente Aparício, espumando da boca e aproximando-se ameaçadoramente em passo de corrida do 470 e do 668.
- Estamos a proteger a dita! – Explicou o Peida-Gorda, com a arma apontada para os colegas.
- Acabou de matar alguns dos seus camaradas.
- E não se perdia grande coisa, são só artistas, - desabafou o Camélia (299), escondendo-se atrás do Beterraba (653).
Veio a noite e a necessidade de fazer guarda ao acampamento, ouvia-se ao longe o barulho do inimigo a pisar as folhas. Tudo correu segundo as normas militares, até que:
- Gordini, acorda, o turno é teu!
O guerreiro nem abriu os olhos, limitou-se a mudar de posição e continuou a ressonar, deixando o acampamento à mercê dos veados, gambuzinos e outras coisas más. O tenente Aparício nem queria acreditar quando acordou de madrugada e passeou alegremente pelo espaço sem ser detetado:
- Estão a brincar com a tropa, - gritou, acordando os adolescentes ao som da corneta.
O exercício do dia iria pôr à prova os conhecimentos de Orientação. Uma bússola, um mapa do espaço e os conhecimentos adquiridos nas aulas de Instrução Militar.
- 612?
- Presente! – Respondeu o Picanço dando um passo em frente.
- É o comandante do grupo A, “Raposas”, e os seus subalternos são o 556, o 299 e o 328. Quero-vos aqui o mais tardar antes do jantar. Não me obriguem a ir-vos procurar. Entendido?
- Sim meu tenente, - confirmou o comandante dos mamíferos omnívoros da família dos Canidae.
 - Se o Picanço (612) nos conduzir da mesma maneira como guia a sua mota “Casal”, nem para a semana chegamos ao jantar, - desabafou o Camélia (299).
Mas ele estava decidido a manter a disciplina, por isso deu ordem de formatura, e partiram com brio para a missão que tinha sido distribuída aos “Raposas”. Mas como era tradição na maioria das aulas de Instrução Militar, tudo mudou quando desceram a colina e deixaram de ver o capitão Oscaralhinho, também ele pequenino, careca, e com um tique característico, pentear o cabelo a partir da orelha. Destroçaram e correram para o muro.
- A partir de agora vamos andar por cima da bússola, - informou o 612.
O dia já ia a meio quando o Gordini (601), do grupo dos “Chacais”, viu ao longe duas “Raposas” esfomeadas em cima do muro, que naquele ponto era alto, bloqueadas por uma muralha de silvas, que tentavam desesperadamente ultrapassar.
- Onde estão o Madiura (556) e o Picanço (612)?
- Não sabemos – responderam em uníssono o Cão e o Camélia.
O tenente Aparício nem queria acreditar quando viu que o grupo dos “ Chacais” tinha aumentado a sua população.
- Reproduziram-se?? - Gritou, mostrando ter três dentes chumbados. – Quero os números dessas meninas extras.
Mal sabia o oficial que 34 anos depois a “Semana de Campo” seria uma actividade extracurricular mista, com a presença das sempre eternas musas de Odivelas.