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315 estórias

Sunday, January 08, 2012

Os Desvitaminados




Camarada Choco 

Aventura 83

 
Na reunião jogava-se entre a urgência da ternura e as asperezas de uma realidade  dura, que misturava Desaparafusados com e sem cor, e tudo devido à ausência de legumes cozidos e de salada, respectivamente à segunda-feira e durante todo o ano, lectivo para os estudantes, e civil para os operários.
- Podiam oferecer umas couves da Brandoa, - protestou a fisio Vitaminas que passara a última semana com imagens rarefeitas dos Desaparafusados.
- Uns Bróculos da Venteira, - interveio a Dona Espatinha recorrendo à naftalina da memória.
- Esparregado da Sala da Gilete, - disse o Virabicos.
- Mas os Desaparafusados transpiram saúde, estão uns soberbos leitões, - esclareceu a Madrinha.
- O problema deles é a falta de vitaminas, - reforçou a Fisio, de dedo em riste.
- Muitos deles já estão brancos como a cal, – atirou a Transmontana, dando uma palmada na cabeça do Nélinho, que estava a adormecer, e que agora revirava freneticamente os olhos.
- Pálidos e com os cabelos cor de bronze! – Exclamou a Terapeuta Julieta, limpando os olhos marejados por uma alegria aguda. – O Twilight já chegou à Venteira? – E continuou. - O meu bebé também é branquinho, e está muito bem de saúde, - e mostrou orgulhosa uma fotografia do petiz, uma gentileza da GNR, a 200 Km/H na A1
- Vitaminas?? Mas todos eles pesam para cima dos 80 Kg, - respondeu a chefe.
- O Fangio Espástico parece um fantasma, basta ver a cadeira a andar sozinha todas as tardes, - insistiu a fisio Vitaminas.
- Aqui está outra foto do meu menino, - continuou a terapeuta Julieta mostrando outra foto, também gentileza da GNR, mas desta vez a 190 Km/H na A2.
- Este tema está a dar-me uma fome, - disse a Afilhada Principal tirando o telemóvel do bolso. – Vou encomendar um almoço para as treze.
Estava a acontecer algo na Escola Para Desaparafusados da Venteira. Uma mutação.
- O Monga mais Velho está a ficar engelhado e seco. Alguém lhe anda a chupar o tutano, - disse alguém tapando a cara, não fosse o da carapinha com alcatrão lançar mais um mito urbano para o ar.
De repente um telemóvel tocou com barulho, lançando para o ar a música da “garagem da Vizinha”. Fez-se um silêncio sepulcral, o presidente pediu desculpa pelo incómodo e atendeu:
- ….o quê, a senhora quer encomendar três frangos assados para as treze??? Mas isto não é um restaurante! – E desligou com fúria.
- Tarado, é um tarado, - gritou a Terapeuta Julieta, que tinha acordado novamente, vindo directamente de Veneza onde se preparara para tirar uma fotografia para enviar como recordação ao padre, quando um mascarado se aproximou.
O ganido de um dos órgãos gastrointestinais dum dos presentes foi o motivo para a Madrinha dar por encerrado o tema, e prosseguir a reunião:
- Vou mandar tirar as couves da ementa antes que destruam o meu estabelecimento comercial…perdão, educacional!

Wednesday, January 04, 2012

O Bolo de Burro

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

O Matos acostava sempre ao cais por volta das três da manha, com a chata recheada de peixe-bobó, uma iguaria exclusiva de Paço de Arcos, servida nas melhores casas da região, “Tino”, “Papagaio” e “Manuel da Leitaria”, acompanhada com “Meio-Gordo à Taça”, para se engolir com estilo. Mantem-se a fama, mas a publicidade refinou, e de “Há Peixe-Bobó” os cardápios agora apregoam “Poisson Bobone com champignons”, porque os proprietários passaram da quarta classe para o 12º ano enquanto o “Peixe-Bobó dava um salto “ graças às várias Independentes, incluindo as finas. Mas voltemos  à época de ouro do Matos! Nestas alturas o nosso paçoarcoense atracava com uma galga que lhe dava vontade de comer tudo o que aparecesse à frente, incluindo as sobras dos pastéis-de-bacalhau, feitos com os restos de petinga da praça, que permaneciam colados às mesas da esplanada do Marmelada, que por esta altura estava a ser transferida, pelo Gang da Avenida, para a praia Velha, outrora a preferida do rei. Um pouco mais acima a pastelaria com nome de continente frequentada pela elite da vila a cheirar a naflalina e a laca, apresentava um quadro de actividade psicótica, onde predominavam as Duchese, cujas dez primeiras seriam mais tarde engolidas de uma vez só pelo Laranjina C, e outras iguarias exclusivas do senhor Serafas. E era nestas alturas em que o proprietário labutava sozinho na preparação do dia seguinte, que o Matos pescava bolos que arrefeciam calmamente ao balcão. E o Serafim só se apercebia do delito quando ouvia o arroto estrondoso na rua, seguido do grito do Todo Boneco, escondido algures num canto a namorar com uma sopeira:

- Espera aí que já cospes!
 E foram tantas as vezes, que o Serafim jurou vingança. Quando a bosta de burro, “colheita portosalvense”, caiu no óleo, que iria fritar os bolos do dia seguinte, sinal de que o país vivia em liberdade, sem a ASAE, gritou de alegria com a promoção inesperada a bolo elitista, o equivalente na Marinha a mudar de marujo para almirante. A transformação de merda em bolo-rei só foi possível nesta extraordinária pastelaria com nome de continente. Quando chegou ao balcão, o Bolo de Burro tornou-se de imediato um adversário de peso da Bola da Leitaria, do Queque da Sesaltina, do Pastel de Nata da Maria das Bicicletas, da Torta do Cabrita e de muitas outras iguarias da vila, e esperou ansioso pelas goelas do Matos. A espera valeu a pena! Às três da manhã, pontualidade britânica, o paçoarcoense mais esfomeado da região entrou no estabelecimento, pé ante pé, mas desta vez o Serafim estava com as regiões dos lobos temporais a ferver, fazendo com que os olhos se mantivessem colados aos cantos superiores esquerdos. O predador levou, não uma, mas as três apetitosas bostas de burro fritas, transformadas em elegantes obras de arte de alta cozinha, como acontecia no estabelecimento abaixo às Tainhas de Esgoto, vendidas como fabulosas Trutas de Paris. A primeira dentada do Matos no Bolo de Burro seguiu de imediato para a garganta e daqui para o estomago, sem dar tempo a que a informação das papilas gustativas pudesse ser processada. Mas com a segunda dentada a história não foi a mesma! A actividade eléctrica cerebral aumentou tanto que as traças largaram o lusco-fusco do candeeiro da rua e precipitaram-se sobre a intensa luz vermelha que saiu dos olhos do Matos, ficando muitos delas espetadas nos pêlos eriçados pela raiva.
- Isto é merda, - gritou, desaparecendo na noite muito escura.
A partir desta data histórica o Matos nunca mais ousou trincar alguma coisa do Serafim, mas a pastelaria ganhou fama, porque com aquele óleo especial os bolos ganharam um sabor único que a tornaram famosa além fronteiras, e ainda mantém a fama e o segredo, guardado a sete chaves pela meia-leca ruiva!

Thursday, December 08, 2011

Feira da Ladra


                        Comandante Guélas

                                        Série Paço de Arcos



A peregrinação não era a Meca, porque a figura mais parecida com Maomé era o Milhas, e dele todos fugiam como o Diabo da Cruz desde que ganhara a lotaria e que qualquer conversa mais demorada significava que estavam a querer comer por conta da cautela comprada à dona Belandina, irmã do Frederico dos Jornais, mas a um lugar também ele mítico, e mais rentável, a Feira da Ladra. Esta era a “Geração em Branco”, como disse o Pontas trinta e sete anos depois, embrenhada na cultura do Cine-Teatro de Paço de Arcos que presenteava os espectadores com soberbos filmes do Bruce Lee e efeitos 3D, na forma do Todo Boneco, que só atuava quando havia cenas de marmelada, atirando então, não o grito do Ipiranga, mas sim o “espera aí que já cospes”, e não a “Geração Sem Rumo”, que era agora obrigada a gramar com o Centro Cultural de Belém e a sua exposição permanente de ferro-velho, paga a peso de ouro, propriedade de um sapateiro viúvo com sotaque da madeira e aspecto de menino queque de Leião, onde ficava a quinta do pai do Zé dos Porquinhos. E quando se atingiu o número mínimo de tarecos que justificava a viagem e garantia mais uns dias de bejecas, marcou-se no calendário o dia D.
O bólide já estava repleto de quinquilharia quando o senhor Américo colocou o gang na rua, como era habitual, à meia-noite, deixando estes anjinhos à mercê das influências nocturnas, que os transformavam sempre em demónios. Mas tinham de esperar pelas cinco da manhã, altura em que o “Dois Cavalos” do Pláni fazia questão de rumar ao Campo de Santa Clara. O Pontas viu ao longe o seu amigo Zé do Fotógrafo sentado num dos bancos do jardim, olhando para o chão, para o espaço entre os seus pés. Ficou a saber que tudo aquilo se devia a ter sido abandonado, novamente, pela sua Rosa do Ártico, e de novo achincalhado pelo Serapito e o Tonzinho, que desta vez tinham decorado a montra da Jomarte com uma foto sua embelezada com uma armação do tamanho das renas do Pai Natal.
- Vou mas é viver para Cascais, já não aguento mais este peso permanente na cabeça, - disse o irmão do Bigornas quando viu que o amigo se sentara ao seu lado, e lhe pusera um braço pelos ombros.
Criou-se um silêncio insuportável, o Zé do Fotógrafo sussurrava abusos e traumas por sarar. A um dado momento o amigo Pontas, um adolescente elegante e cordial, guardador de muitos segredos e escravo dos bons sentimentos, ofereceu-lhe as palavras adequadas, como era seu costume:
- Não desesperes, na praça há mais!
Quando chegaram a Santa Clara os compradores eram tantos que se atiraram ávidos aos tenrinhos do Capitão Porão, mas não esperavam pela reacção do condutor que continuou a marcha. A turpe não desistiu e foi no encalço do “Dois Cavalos”, de nome Dumbo, uma homenagem às orelhas do proprietário. Por pouco não foram engolidos devido à subida acentuada e ao peso excessivo de quinquilharia.
- Não venda que eu roubo…perdão, eu compro, - gritavam os fregueses do Outlet mais famoso de Lisboa.
Graças a Deus que a seguir a uma subida havia sempre uma descida, e foi isso que o Pláni aproveitou.
- Temos de dar duas voltas para cansar o pessoal, este é o segredo do negócio de Santa Clara, - explicou o ex-menino da Luz.
Mas a turpe já estava habituada a estas andanças, e mal o carro parou foram invadidos por um enxame de velhos compradores batidos nestas andanças, tendo um deles proposto a compra imediata do carro. Indignação! E como é que estes meninos de boas famílias de Paço de Arcos regressariam a casa? De combóio, no meio do povo malcheiroso?
- Nem pensar, - respondeu o maior expert de Paço de Arcos, o Proveta, o primeiro a ter prejuízo, pois no meio da confusão desaparecera a sua máquina de barbear que cortava um pelo de cada vez e metade da cara só numa passagem, tendo ficado com a caixa como recordação.
O grupo interveio, e empurrou a molhada, aproveitando a confusão para fazer uma troca de prendas. Quando o sol acordou o produto do Proveta estava na banca do Coxo da Brandoa, o cinzeiro de latão do Anão do Bairro Alto na loja do Pláni e o saca-rolhas do Meia-Lua da Porcalhota era vendido como peça rara pelo Peidão.
Foi neste dia que a aptidão do Proveta para as vendas se revelou, quando conseguiu vender o biquíni da prima americana a uma velha com umas mamas do tamanho das abóboras da Dona Rosa, mãe do João da Quinta, que um dia teimou com o Pontas que tinha mais lógica pôr uma moeda de 10 escudos nos carrinhos de choque da feira de Paço de Arcos, do que comprar fichas a 5 escudos.
- Caiem-lhe que nem ginjas - disse, com os olhos fixos e elevados, colados no bigode da mulher de olhos pequenos e afundados.
- Acha? – Perguntou a cliente ao ver que nem os pipos conseguia tapar.
O vendedor passou a mão sobre as sobrancelhas, esfregou a testa e respondeu com sapiência:
- Não importa o tamanho do seu decote, desde que olhem para o biquíni.
Estas palavras fizeram-na perder as memórias das palavras e impressionaram-lhe os sentidos, imaginando-se deslumbrante no vasto areal da Cruz Quebrada, e tudo isto devido às circunvoluções cerebrais que batiam furiosamente no crânio, que se deformava com o impacto. Após esta venda lendária o Proveta passou de imediato para um produto arrasador: um aspirador!
- Trabalha? – Perguntou o primeiro e único cliente.
- Um mimo, - respondeu de imediato o precursor da Remax.
- Quero ver, - exigiu o comprador.
- Acompanhe-me.
Dirigiram-se ao café mais próximo e o vendedor encostou a ficha à primeira tomada que viu. O som que saiu da máquina causou uma tensão dramática e um pânico miudinho, e foi por isso que o Proveta puxou de imediato o fio, não fosse tornar-se vítima do seu próprio produto. Vendido!
Não muito longe dali o Pierre Pomme-de-Terre, amigo do seu amigo, tentava vender a Sachs do Bajoulo, que se tinha ausentado para ir compensar a ausência do pequeno almoço com uma soberba Imperial, entregando ao Mocho a parte promocional e aos amigos Ginja, Drenos, Orelhas e Fice o papel de figurantes:
- Amigos, senhores, esta motorizada tem incluído um Kit Sexual, que faz com que acima dos 100 Km / hora o condutor entre em transmissão direta com o cinema Olímpia.
A venda quase foi consumada, o regresso do dono estragou tudo, mas antes tivesse sido, pois nesse verão o Bajoulo deu boleia ao Ginja no Algarve, e à chegada à praia da Oura derrapou na areia, obrigando o pendura a entrar de rastos no parque de estacionamento, deixando parte do calção de banho, a totalidade das sandálias e uma porção do bronzeado, no asfalto.

Friday, October 21, 2011

Espera aí que já cospes

Camarada Choco

Aventura 82

- Dona Pilca, temos um problema, - informou a senhora da fábrica de componentes elétricas.
- Um problema? Mas não lhe entregaram o produto do trabalho dos meus Desaparafusados? Não me digam que o Primo do Cabo Pilas se perdeu, como o Capuchinho Vermelho?
- Não Dona Pilca, a encomenda já chegou, os parafusos vêm com as anilhas e as porcas enfiadas....mas do avesso.
- Do avesso? - Gritou a Dona Pilca, riscando com os nervos um babete forrado de anjinhos, uma encomenda da funerária "Sempre a Abrir", da rua de baixo.
- O trabalho que dei aos seus Desaparafusados vem com defeito. Já não são só os trabalhadores, mas também o produto.
Do outro lado só se ouviu um ranger de dentes.
- Dona Pilca?....a senhora está aí?
- Ainda estou...mas não sei por quanto tempo, - respondeu a velha empresária da Venteira, ao mesmo tempo que simulava com a mão uma degolação geral. - Vou resolver o problema imediatamente e mais tarde entrarei em contacto consigo.
Quando a tecla vermelha do telemóvel foi premida, saiu um grito de raiva tão profundo, que o preto que estava a pintar o prédio deixou cair o pincél em cima do Primo do Cabo Pilas, que com o peso caiu do passeio e fez um entorse. Todos estavam receosos, a Dona Pilca não aceitava a falhas dos seus subordinados, e agora era vista a falar sózinha em todos os cantos da Escola para Desaparafusados da Venteira.
- Só pode ter sido ela, - gritou pela centésima vez para a imagem do espelho, que já não conhecia. ~A fazer-se de amiguinha e por detrás a trocar-me as roscas. Vou tratar~lhe da saúde, enquanto o Diabo esfreganha um olho, - e fez novamente o sinal de degolação.
A Instituição estava insegura. Pela frente entrara a Natali, uma gorila das montanhas prenhe, que tinha vindo pedir satisfações à Chefe Bélinha, por ter de acordar muito cedo todas as manhãs para entregar a irmã na carrinha que ia buscá-la à barraca, um luxo exclusivo dos melhores colégios privados, cujos pais pagavam caro estas mordomias, mas que para os Desaparafusados da Cova da Moura e afins era de borla, porque a conta ia sempre parar à caixa do correio dos portugueses caucasianos. Mas a ameaça também vinha do interior, e tinha a forma de uma distinta senhora de meia idade, que atingira o estatuto da Madrinha Sem caneco, e que já não aceitava "desaparafusices" dos seus Desaparafusados.
- Tenho uma mancha no meu curriculo, e a culpa é vossa, - gritou ao entrar na sala, não sem antes deixar o recado para a vizinha. - Gente como tu como eu ao pequeno-almoço.
- Coitada da Pilca, a mudança de idade está a afetar-lhe os carretos, - desabafou a ingénua Menina Tatrícia para a sua colega Pirosa. - Tenho de dar-lhe a minha solidariedade.
- Não sei se devas, - aconselhou a colega.
- Ai vou, não posso abandonar uma colega de peregrinação numa hora destas, - e encaminhou-se para a porta.
- Isso já foi há muito tempo, a Pilca já se esqueceu, - exclamou a Pirosa, sem tirar os olhos duma revista. - Não vás, é melhor!
Mas a humilde Menina Tatrícia estava decidida a ser solidária com a velha Pilca.Os segundos seguintes foram de silêncio, mas breves, muito breves, porque o grito que se ouviu foi tão alucinante, que até o Rui Monga, que já estava muito mais para lá do que para cá acordou:
- Silêncio, já não se pode dormir eternamente!
As janelas da Sala das Roscas abriram-se com estrondo, levadas por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro do espaço. O ferimento que a Menina Tatrícia trazia na mão era de guerra, e da atómica. A única testemunha juramentada do ataque foi a Desaparafusada Vaisnessa, que contou que a Dona Pilca se atirou com tanta raiva à vítima, que despejou toda a pistola de cola, ao mesmo tempo que gritava:
- era aí quele já ospes (tradução: "espera aí que já cospes")!  
 

Monday, October 17, 2011

O Delinquente



Camarada Choco

Aventura 81

O dia era de festa, o glorioso ia jogar na catedral e o Fangio Espástico não queria perder pitada do evento, a começar pelo voo da Vitória, uma águia com dificuldades em aterrar sobre a pata direita. Por tudo isto justificava-se que entrasse com a cadeira diretamente pelos fundos da carrinha, gritando de imediato para o pai:
- oe o é no alarador, arálho!
Quando chegaram à Luz o lugar exclusivo para os Desaparafusados ainda estava vago, apesar dos gritos alucinantes e do fumo que saia do alguidar vermelho. A porta traseira da Renault abriu-se com estrondo, e o Fangio Espástico saiu em cavalinho e acelerou em direção ao inferno, deixando para trás o motorista. Chegou na altura em que a sombra da ave de rapina engolia a multidão.
- enfica ampeão – gritou, ao mesmo tempo que travou a fundo perto do limite da varanda destinada aos sócios com problemas nos carretos. – Amos encer, arálho!
O inferno tinha tomado conta do Estádio da Luz quando o pai do Fangio Espástico se juntou ao filho, depois de se cruzar com o segurança que um ano antes tinha gamado a foto do Mantorras autografada com um “x”, que fora oferecida ao filho.
- Trabalho aqui há vários anos e o raio do preto coxo nunca me deu um autógrafo, mas porque este só mexe os olhos dá-lhe um poster, e ainda por cima pede-me para entregá-lo ao Desaparafusado.
 No exterior outro Desaparafusado tentava desesperado arrumar a viatura, mas não havia nenhum lugar VIP disponível. Até que descobriu uma oportunidade:
- Este Renault está com o desenho da cadeira caducado, - disse, com um sorriso solidário, carregando no botão com ligação direta ao 112.
Catorze minutos depois atendeu uma voz alterada, de alguém que não conseguira ver na televisão o golo do Benfica.
- A minha fralda está a transbordar, enviem imediatamente a polícia para o estádio do glorioso, - gritou o benfiquista Desaparafusado, ajeitando o rádio na orelha esquerda, uma vez que não tinha a direita.
O reboque chegou depressa e nem os apelos solidários de alguns Aparafusados demoveram o agente de fazer cumprir a lei. A carrinha do pai do Fangio Espástico deixou a Luz às cavalitas da autoridade, e o Desaparafusado queixoso, com o selo em dia, arrumou triunfante o “|Mata Velhos”, e saiu a correr em direção ao inferno, esquecendo-se da sua deficiência, mas não o local destinado aos da sua espécie, perto do relvado.
- etam o Antorras a ogar, arálho, - gritou o aluno com mais neurónios da Venteira, dando um chuto involuntário na cabeça de um anão que estava sentado num iogurte.
- Façam a vontade ao deficiente, - berrou o coxo do mata-velhos, dando uma palmada benfiquista no joystick da cadeira do Fangio Espástico, que avançou para cima do anão, que já tinha recuperado a anterior posição, ficando desta vez entalado dentro do frasco do "Danoninho".
Como se tornara um hábito o Glorioso chupou o tutano dos adversários e isto teve um efeito metafísico na assistência encarnada, Aparafusados e Desaparafusados: o coxo saltou de alegria durante alguns minutos, o treinador Jesus conseguiu discursar dez segundos sem dar um pontapé na gramática, o Fangio Espástico deixou de falar com a pronuncia  “bolotas na boca” e conseguiu pronunciar na perfeição a sua palavra favorita, “Karalho”, e muitos outros “efeitos benfiquistas”. Mas algo não estava nos planos do nosso herói da Venteira: a ausência da carripana que o levara à festa! O pai já tinha sido posto ao corrente da situação, o “Correio da Manhã” vinha a caminho. O coxo do “Mata-Velhos” voltou a arrastar a perna e deu toda a sua solidariedade ao colega, lamentando não poder ficar na manifestação por impedimentos físicos, causados por falta de cevada nas veias. A câmara do jornal esteve grande parte da noite a disparar, e por momentos o Fangio Espástico já se via a caminho da série “Bolotas com Farinha”, destinada a adolescentes com carretos chamuscados. A buzina do carro do pai apagou-lhe a alucinação e ele saiu do Alguidar da Luz com mais palmas que o seu colega Mantorras!      

Tuesday, September 20, 2011

Simplesmente Anoa


                                 Comandante Guélas


                                             Série Paço de Arcos
 
Quando a mãe do Pitrongas ficou com o Pinto só para si, depressa se mudou de armas e bagagens para a vivenda do velhote, e num abrir e fechar de olhos pôs um par de patins à governanta, uma concorrente perigosa, substituindo-a pela Anoa, um caniche em forma humana, que necessitava de um banco para fazer a salada de tomate e muitas outras refeições. A nova criada tinha por companhia o Tareco, um gato castrado que para ela era mais cavalo e companheiro. Mas o trabalho da Anoa não se resumia só à cozinha. Nas horas vagas era os ouvidos e os olhos da patroa. Nestas ocasiões montava então vigia na porta do jardim e nada lhe escapava na vizinhança. Quando o senhor Zé da Fruta apitava, lá se aventurava a atravessar a rua e, na companhia de outras sopeiras das redondezas, aproveitava para aumentar o rol de informações, que diligentemente entregava à chefe no final do dia. Até que um dia a rotina se alterou por completo, quando o Vaca Prenhe regressava a casa no carocha dos pais. Por momentos os dois olhares cruzaram-se e fixaram-se. Das orelhas do rapaz, que tinha acabado de ser pai do Cabeça de Ananás,  saiu fumo preto, um sinal inquietante. Pôs prego a fundo, subiu com metade do carro o passeio, decidido a transformar a meia-leca numa bonita toalha de bidé. Quando a Anoa se apercebeu que tudo aquilo era real e não um pesadelo saltou, no último segundo, para a proteção da ombreira do portão, tendo sentido ainda a deslocação do ar do bólide, que lhe levantou a saia tamanho Barbie. O exemplo foi terrível, o Graise imitou o mano, mas com mota, e desafiou os amigos. Estava assim lançado um novo desporto, o “abafa a anã”, que pôs a Maria em estado de alerta permanente e perto do suicídio, da borda do passeio. Não tinha descanso, a qualquer hora do dia arriscava-se a ser passada a ferro, tanto por quadriciclos como por motociclos. Reagia a qualquer barulho, passava a vida a correr para a proteção do jardim. Já nem a carrinha do senhor Zé da Fruta era um lugar seguro. Parecia o cão do Pavlov! E o risco aumentava quando a patroa, uma obsessiva compulsiva pelas limpezas, e mãe do único adolescente com um neurónio da Costa do Estoril,  a mandava ir varrer o passeio, depois de ter deixado o vasto jardim a brilhar. Mal via o carocha preto, que estava em constante sobe e desce, ao longe, abandonava tudo, incluindo a sombra, e corria para trás do vaso com o manjerico. Para a obrigar a sair da toca, o Graise e o Peidão, o adolescente mais bem comportado da vila, arranjaram uma estratégia infalível: passaram a trazer os sacos de lixo da vizinhança e a despeja-los dentro e fora do logradouro do Pinto, pondo a mãe do Pitrongas à beira de um ataque de nervos, e a Maria em estado de limpeza permanente. As razias aumentaram, o alvo estava num vai-e-vém constante, e qualquer dia a vila acordava com a toalha de bidé espalmada no alcatrão. E eis que um dia a Anoa resolveu acusar o irmão do Graise e do Vaca Prenhe, cunhado do Peidão, o único nas redondezas com um cromossoma extra no par vinte e um, de atirar o lixo para dentro do logradouro…às três da manhã. Quando soube a novidade a patroa agarrou na criada meia-leca e irrompeu pelo almoço dos vizinhos, apontando o dedo acusador ao último dos dez irmãos, que confundiu a Maria com um Peru, que para ele representava o Papão, e fugiu para debaixo da mesa. O Vaca-Prenhe ainda tentou atirar as culpas para cima do desgraçado do cunhado, mas foi de imediato posto no lugar de onde não tinha saído:
- Que miséria a acusar um menino tão educado e com bons princípios morais, que não se pode defender. Tenha vergonha do que diz! – Gritou a mãe do Pitrongas agarrando na Anoa e virando as costas aos vizinhos.