Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
O Matos acostava sempre ao cais por volta das três da manha, com a chata recheada de peixe-bobó, uma iguaria exclusiva de Paço de Arcos, servida nas melhores casas da região, “Tino”, “Papagaio” e “Manuel da Leitaria”, acompanhada com “Meio-Gordo à Taça”, para se engolir com estilo. Mantem-se a fama, mas a publicidade refinou, e de “Há Peixe-Bobó” os cardápios agora apregoam “Poisson Bobone com champignons”, porque os proprietários passaram da quarta classe para o 12º ano enquanto o “Peixe-Bobó dava um salto “ graças às várias Independentes, incluindo as finas. Mas voltemos à época de ouro do Matos! Nestas alturas o nosso paçoarcoense atracava com uma galga que lhe dava vontade de comer tudo o que aparecesse à frente, incluindo as sobras dos pastéis-de-bacalhau, feitos com os restos de petinga da praça, que permaneciam colados às mesas da esplanada do Marmelada, que por esta altura estava a ser transferida, pelo Gang da Avenida, para a praia Velha, outrora a preferida do rei. Um pouco mais acima a pastelaria com nome de continente frequentada pela elite da vila a cheirar a naflalina e a laca, apresentava um quadro de actividade psicótica, onde predominavam as Duchese, cujas dez primeiras seriam mais tarde engolidas de uma vez só pelo Laranjina C, e outras iguarias exclusivas do senhor Serafas. E era nestas alturas em que o proprietário labutava sozinho na preparação do dia seguinte, que o Matos pescava bolos que arrefeciam calmamente ao balcão. E o Serafim só se apercebia do delito quando ouvia o arroto estrondoso na rua, seguido do grito do Todo Boneco, escondido algures num canto a namorar com uma sopeira:
- Espera aí que já cospes!
E foram tantas as vezes, que o Serafim jurou vingança. Quando a bosta de burro, “colheita portosalvense”, caiu no óleo, que iria fritar os bolos do dia seguinte, sinal de que o país vivia em liberdade, sem a ASAE, gritou de alegria com a promoção inesperada a bolo elitista, o equivalente na Marinha a mudar de marujo para almirante. A transformação de merda em bolo-rei só foi possível nesta extraordinária pastelaria com nome de continente. Quando chegou ao balcão, o Bolo de Burro tornou-se de imediato um adversário de peso da Bola da Leitaria, do Queque da Sesaltina, do Pastel de Nata da Maria das Bicicletas, da Torta do Cabrita e de muitas outras iguarias da vila, e esperou ansioso pelas goelas do Matos. A espera valeu a pena! Às três da manhã, pontualidade britânica, o paçoarcoense mais esfomeado da região entrou no estabelecimento, pé ante pé, mas desta vez o Serafim estava com as regiões dos lobos temporais a ferver, fazendo com que os olhos se mantivessem colados aos cantos superiores esquerdos. O predador levou, não uma, mas as três apetitosas bostas de burro fritas, transformadas em elegantes obras de arte de alta cozinha, como acontecia no estabelecimento abaixo às Tainhas de Esgoto, vendidas como fabulosas Trutas de Paris. A primeira dentada do Matos no Bolo de Burro seguiu de imediato para a garganta e daqui para o estomago, sem dar tempo a que a informação das papilas gustativas pudesse ser processada. Mas com a segunda dentada a história não foi a mesma! A actividade eléctrica cerebral aumentou tanto que as traças largaram o lusco-fusco do candeeiro da rua e precipitaram-se sobre a intensa luz vermelha que saiu dos olhos do Matos, ficando muitos delas espetadas nos pêlos eriçados pela raiva.
- Isto é merda, - gritou, desaparecendo na noite muito escura.
A partir desta data histórica o Matos nunca mais ousou trincar alguma coisa do Serafim, mas a pastelaria ganhou fama, porque com aquele óleo especial os bolos ganharam um sabor único que a tornaram famosa além fronteiras, e ainda mantém a fama e o segredo, guardado a sete chaves pela meia-leca ruiva!
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