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315 estórias

Saturday, July 25, 2009

Carjacking



Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


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O primeiro carjacking do país teve a assinatura de um paço-arcoense, o Pacheco do talho, um loirinho com caracóis de caniche, e tudo isto coincidiu com o aparecimento do primeiro Multibanco da zona, lá para os lados do “Ronda 99”, um “bar de tudo”, na terra das “queques”, que começavam a ser substituídas pelas “tias”, fêmeas sem raça definida. Neste sub–gang de Jovens adultos caucasianos de boas – famílias de Paço de Arcos ia o Orlando, a testemunha viva e juramentada desta cena digna de Hollywood que, apesar da idade, da careca avançada e da barriga dilatada, ainda mantém intactos os registos que viabilizaram o relato de mais esta imemorável aventura.
Era uma vez…
um velho acompanhado de uma dama, ao volante de um Mercedes topo de gama que parou junto à única caixa de Multibanco do país, para impressionar a oxigenada tipo Lili.
- Querida, vou levantar dinheiro.
- Levantar dinheiro?! A esta hora da noite? Mas os bancos já estão fechados.
- Agora já há esta caixa, que dá dinheiro e eu já sou sócio, – disse o velho com cara de leitão mostrando orgulhoso o cartão.
Foi o acto do levantar do braço para mostrar à múmia o glorioso que dava acesso à caixa, que chamou à atenção do Pacheco, que estava pacatamente no passeio do outro lado, a conversar com os amigos. E para agravar a situação o velho deixara a porta do seu lado aberta para que a namorada visse melhor o seu acto, e o motor a roncar. O cérebro do paço-arcoense com cabelo loiro estilo caniche começou a fervilhar e não mais parou. Correu de imediato para o bólide, sentou-se ao volante, e arrancou com os pneus a chiar e a debitarem nevoeiro para cima da única caixa de Multibanco da Costa do Estoril, onde ainda só tinham acesso colegas do Pierre Pomme-de-Terre, futuro engenheiro da construção civil, Licenciado em Tijolos e Tuvnan Chinês pela Universidade das Ilhas do Seixal. O velho ficou imóvel com o glorioso na mão a ver desaparecer no horizonte os seus dois topo de gama, o Mercedes e a Lili,, assim como os amigos do Pacheco. Felizmente no fim da recta havia uma rotunda e foi aí que o Fangio da Praceta fez um pião digno dos melhores James Bond e voltou ao ponto de partida, estancando com estrondo e elogiando a performance do bólide com uma palmada nas costas do proprietário, que só teve tempo de correr para o seu Mercedes e desaparecer na escuridão da noite.





Sunday, July 12, 2009

Marginal à Noite


Comandante Guélas
Série Paço de Arcos



O calor apertava, estava uma noite de Verão magnífica e a praia de Carcavelos estava escura, muito escura, com maré-cheia e ondas grandes. O Gang regressava a casa de mais uma noite louca na discoteca do Farol, ainda por cima com uma vitória estrondosa do Milhas no concurso de dança que, no estado etilizado em que se encontrava, nem se apercebeu e ninguém se arriscava a dar-lhe a boa notícia, porque com este adolescente de genes incertos tudo funcionava ao contrário. Fora o único membro de todos os gangs da Costa do Estoril, que eram numerosos, a sair a Lotaria, mas para ele isso significou a sua desgraça. Quando os excursionistas de “boas famílias”, incluindo o Charlot que pertencia a todas, iam a passar junto do “Narciso”, não aguentaram a pressão do calor e resolveram ir refrescar-se. A água do mar estava quentinha, não se sabe se por força da Natureza, se por influência do esgoto que costumava despejar os cagalhões do dia à noite. O Gang entrou todo nu, tudo balançava ao sabor do oceano. Se o Capitão da Quinta Divisão soubesse! Estas ocasiões geralmente não acabavam aqui, tinha de haver algo mais radical. O que aconteceu a seguir ao banho foi único e irrepetível. - Quem é que consegue ir pedir boleia para a Marginal, todo nu? A pergunta desafiadora da praxe, a questão que levava ao acto. Só o Gang dos Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos (G.M.R.C.P.A.) teve lugar na História, porque caso todas estas aventuras não tivessem acontecido, ter-se-iam reduzido a uma simples Associação dos Queques Cristãos de Paço de Arcos. Mas, continuemos! - Um por todos, todos por um! Um grupo de meninos adolescentes correu apressadamente para a estrada, que estava com o trânsito intenso, e por isso lento, com as pilas a chicotearem as pernas. Todos pediram boleia para Lisboa. O vencedor foi aquele que ocupou o traço contínuo e tentou acertar, não nas beatas que forravam os fundos dos urinóis, mas nos carros que passavam. A rotina de uma noite quente de Verão foi quebrada por um show erótico, que nos dias de hoje os chefes de família de Paço de Arcos se recusam a comentar: - Não, não me lembro, nunca me dei com malta dessa! Havia algo a favor daquela gente abençoada, os telemóveis não existiam e por isso a GNR só actuou no dia seguinte, e deu de caras com meninos já avisados e muito bem comportados.

Sunday, June 21, 2009

Codex 632


 Camarada Choco
 Aventura 65 


A camisola que vestia tinha as mangas cavas, expondo às fêmeas umas peles brancas cor de Maizena, cobertas com vegetação mais apropriada às zonas baixas do corpo. Fechou os alunos na sala, aproximou-se do espelho chinês, com muitos anos de Feira Popular, e desabafou:
- Ah Silvestre Stalonas, está na altura de ires procurar a fêmea que te dará a próxima geração de anõezinhos.
Meteu sofregamente a mão nas calças e tirou uma fita-métrica do Aki. Aproximou-se de um calendário com Desaparafusados da Michellin e definiu as medidas obrigatórias da sortuda:
- …mais baixa do que eu, ou do mesmo calibre, - pôs o dedo nos 120 centímetros e continuou. – Ser obediente, ganhar menos, abaixo dos 40…
Mas algo o distraiu quando trancou a porta da sala, onde antes trabalhava e agora pouco tempo permanecia, perdido na sua incessante busca da Fêmea perdida:
- A Tareca está com a mania que é doutora, até tem um dossier e tudo, e está cheio de papéis, - lamentava-se a outro espelho a Faísca. – Só quer é reuniões.
Ao espreitar na curva do corredor, o garanhão tocou inadvertidamente num quadro e detrás dele caiu um papel.
- “Codex 632”?!!
O título estava a negrito e no canto superior direito destacava-se a vermelho a palavra “Top Secret”.
- Um documento sigiloso? Escondido atrás do quadro com a cara da Madrinha? Que interessante.
Olhou para todos os lados. O andar estava vazio, excepto a Faísca que continuava a fazer queixas ao espelho. Regressou pé ante pé ao espaço onde antes trabalhava e agora fingia que o fazia, e trancou-se.
Nomina Sunt Odiosa
Aquí el informe de los restos de la farra ocorrida en mi presencia entre el Codex 632 y el Voz de Bagazo, el 3 de junio del año de Gracia de Mi Querida Madrina, que en el futuro yo la sustituirei de acuerdo con la voluntad de Mi Madrina . Esa tarde cuando el conductor viejo ay detenido la Nau los dos acusados corrió y you fui detrás de les , ya la previsión de un farrobadó, prohibida por Su legislación, que aquí también es mía, y quiero cumplir, por escrito, si Su humor no nudar, diciendo que no dijo lo que todos escuchamos. Madrina, lo que vi fue una visión del Infierno. La Voz de Bagazo está por encima de la del Codex 632 y él trató de molde la serpiente, que ya estaba moribunda. Gracias a Dios todavía tive tiempo para ver las bolas que batiam a los demás como unas castañuelas, cada vez que corresponde a golpear en la parte superior de la serpiente, tratando en vano de poner en juego, como en las películas para adultos Noddy que no vejo por qué tapo los ojos con las manos y los dedos abiertos, como la Madrina. Señaló inmediatamente después de la ocurrencia, la hora, los minutos y los segundos, quem inmediatamente tiene la culpa, no a mí y no al delegado sindical, como aprendí de la Madrinha, a pesar de ser parte del grupo. Sálvese quien pueda. Y para no resolver la situación inmediata, como dice el bon senso, télefonei inmediatamente a la Señora para incendiar más y declarar una posible pandemia sexual. Sugiero a toma de la píldora del día siguiente para todos, incluidos los hombres, porque el azoreano ya tienne enjoos tuta las maganas y el tamaño de su vientre no es un buen pronóstico.


Su doctora también sin paja



Sunday, June 07, 2009

Cavalos & Cavaleiros


Comandante GuélasSérie Paço de Arcos


O menino queque, mas mesmo queque, só montava a cavalo no Guincho. O Gang era constituído por meninos de uma “Geração de Oiro”, irrepetível. Mas chamar “Geração Rasca” à dos seus filhos, porque estudavam e recusavam-se a fazer cábulas, era um exagero. Numa característica os papás estavam em vantagem, eram geneticamente dotados de uma capacidade de adaptação a novas situações. E foi numa dessas alturas que a Becas entrou no café “Iolanda” e perguntou quem é que queria ir montar. Dito e feito, quatro levantaram os braços:
- Mas tu já alguma vez andaste a cavalo? – Perguntou o “Menino da Luz”, de nome Peidão, quando viu que o Xinoca estava de braço no ar.
- Eu tenho uma “Maxi Push”.
Mas havia um obstáculo a ultrapassar. O amigo da Becas, desconhecido do Gang, estava dentro do Renault 5 todo bonito, com chibata, botas de montar e cara de cu.
- Eles podem vir connosco?
O matador olhou para os quatro meninos de “boas famílias” e percebeu que, ou iriam todos, ou arriscava-se a ter de mudar um pneu. Teve bom senso. A excursão rumou para a aldeia de nome “Areias”, onde seriam alugados os animais. Quando os bichinhos foram entregues o Xinoca quase que saiu à carga, porque pensava que “Cavalo” e “Peidociclo” era tudo da mesma família, e por isso acelerou a fundo.

- Têm a certeza que o vosso amigo sabe andar de cavalo? – Perguntou o dono do picadeiro ao ver que o rapaz com cara de oriental não tinha qualquer vestígio de técnica de acompanhamento do trote, indo por isso a bater violentamente com o traseiro na sela e a enredar as rédeas nas pernas.

- Ele está habituado a montar as éguas em pêlo, - explicou o jovem Peidão, um ás na equitação.
O trombudo tomou a dianteira passando com um ar de desprezo por todos os amigos da Becas. A sorte devia-se ao facto de os cavalos estarem habituados a andar uns atrás dos outros e assim o do Xinoca teria poucas hipóteses de fugir. Atravessaram a rua e embrenharam-se nas dunas. Alguns metros mais adiante tiveram de reduzir para passo, pois era necessário poupar o rabo do chinês. Mas aconteceu o primeiro dos “previstos”, quando um ramo baixo lhes apareceu pela frente. Todos puxaram pela rédea esquerda e contornaram o arbusto, excepto o Xinoca que seguiu em frente e chocou contra o obstáculo. Passou o bicho e quase ia ficando o cavaleiro, caso não se tivesse deitado sobre a cabecinha do cavalo, folgando as rédeas e soltando os chinelos de quarto dos estribos. Ainda houve tempo para apostas, ganhando a opção “queda”. Valeu o sangue frio do trombudo que encostou a sua montada e segurou o animal. Pausa, o chinês estava mais inclinado do que a Torre de Pisa, e à medida que ia descaindo puxava as rédeas, arriscando-se a sentar o alazão no colo. Quando o líder o informou dessa hipótese, tirou as mãos e caiu na areia fofinha. Pôs-se logo ali uma dúvida: como é que ele iria montar, uma vez que não havia a escada do picadeiro? Veio-lhe à memória o paço-arcoense da Quinta Divisão e da falta que ele lhe fazia naquele momento. Caso fosse um dos presentes, manda-lo-ia agachar e ele obedeceria. Depois bastaria saltar-lhe para a espinha e montar. Mas a realidade era outra! O Xinoca teria de se desenrascar, nenhum dos presentes queria fazer de militar de Abril. Foi o que fez, meteu o bichano na parte baixa de uma duna e saltou-lhe para cima. Como o tempo já estava a escassear, foi necessário recorrer ao galope, porque senão nunca chegariam à Praia Grande. Ao chegarem ao Guincho cada um escolheu o seu ritmo e, de uma maneira geral, a carga foi a velocidade que imperou. Quanto ao Xinoca, optou por parar, largar o volante, enrolar um cigarrinho, ao mesmo tempo que dava folga ao rabo. Só que este tipo de cenas não eram as mais aconselháveis no momento, porque o animal cheirou o chão deitou-se de imediato, atirando o adolescente com cara de oriental de pantanas, tendo no entanto ainda conseguido dar a última “passa” antes de aterrar. O trombudo, que estava na outra ponta da praia, nem queria acreditar no que via. O cavalo do Xinoca parecia um cão a coçar-se no chão e quando a festa acabasse de certeza que iria a Cascais tomar um copo. E quem tinha deixado o Bilhete de Identidade, aliás o único a leva-lo, tinha sido ele, como prova que eram todos “meninos de boas famílias”. E o seu Renault 5 não valia nem metade de um burro sarnento, quanto mais um cavalo inteiro. Ficaria de certeza a lavar cavalariças o resto do ano e estragaria as suas botinhas com brilhantina. Meteu “prego a fundo” e conseguiu chegar a tempo. Quanto ao Xinoca, queria era regressar a pé, alegando já ter o traseiro em chamas e não querer ser confundido com algum revolucionário tresmalhado. Conseguiram convence-lo a dormir nessa noite de barriga para baixo, para que as marcas no mealheiro desaparecessem.

Friday, May 22, 2009

Férias de Verão – Brincando à Distribuição




Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


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Se o Citron tivesse continuado a sua carreira no atletismo estava agora ao lado do Eusébio, a viver à das comendas. O primeiro a ingressar no mundo laboral foi o Pilas, que depressa se tornou patrão. Comecemos pelo início. O trabalho consistia em abastecer algumas livrarias e quiosques de Lisboa e da Linha de Cascais, de jornais e revistas. O motorista era o Pilas e tinha como ajudante o Citron. Mal sabia este que iria chegar ao fim das férias com uma excelente condição física, fruto de corridas contínuas e sprinteres que o seu companheiro e treinador o obrigavam, uma vez que arrancava sempre antes do atleta chegar à carrinha. Ficaram famosas as fugas do Pilas no centro de Cascais, com o Citron no seu encalço. O abastecimento da carrinha era feito lá para os lados do Marquês de Pombal e os primeiros postos da volta, além de clandestinos, pertenciam ao patrão do Pilas e dono da carrinha, que começava o dia a desviar revistas e jornais dos molhos que já estavam atados e etiquetados. Quando a carrinha iniciava o serviço ia com o rabo quase a tocar no chão e havia uma subida que tinha de ser feita em marcha-atrás caso a rua estivesse molhada, pois os pneus da frente estavam tão velhos que já não tinham força para se agarrarem aos paralelepípedos. A festa brava era reservada para os fins-de-semana, em que não havia trabalho, mas estava presente a carrinha. Ao patrão do Citron, o Pilas (capataz de outro) reservava-se o direito de trazê-la para casa, com uma obrigação: ficar parada! Mas isto era pedir muito a estes adolescentes irrequietos e ainda por cima com uma Peugeot comercial (sem rede a meio) a rir-se para eles. Bastava levantar o banco de trás e a máquina transformava-se num autocarro. No primeiro minuto da primeira sexta-feira à noite o patrão Pilas cumpriu escrupulosamente a ordem superior, outra coisa não seria de esperar, saindo de casa e desejando “boa-noite” ao Peugeot, mas quando já ia perto do Pica não aguentou a pressão da sua consciência e correu desgrenhado para o carro, saindo em peão e com os pneus a deitarem fumo por todos os poros. Foi assim toda a noite e as seguintes. Tinha de estar treinado para as corridas entre distribuidores, pois os da “Capital” estavam à frente na competição. O jornal “A Tarde” chegava sempre em último e isso o senhor Pilas não admitia. O Citron deixou assim de sair do carro e limitava-se a atirar o molho para dentro da loja. E foi numa bela tarde em que as três carrinhas concorrentes iam coladas umas às outras e já todos tinham estado ao comando da prova, que a “Tarde” ia assassinando um cliente. O proprietário da loja já estava à porta à espera, quando o Citron arremessou o molho atado, que acertou em cheio no velho e rebentou, espalhando os jornais pela banca e arredores. Ninguém parou. Após a vitória retumbante da equipa composta por dois paço-arcoenses de “boas famílias”, que cilindrou os adversários da Brandoa e da Porcalhota, o Citron arranjou uma namorada no Liceu de S. João, que fazia questão de visitar durante a hora de trabalho. Só convenceu o motorista, porque prometia-lhe sempre trazer uma amiga para o acariciar. A partir daqui o jornal “A Tarde” passou a chegar a Cascais à noitinha, com os clientes a reclamarem que àquelas horas já não vendiam nada.
- Ponha para as sobras, - respondia-lhes o Pilas.
Um dia o Pilas resolveu reformar-se e contratou o motorista de nome Peidão.
- Cuidado com a carrinha, podes levá-la para casa mas só a usas para o trabalho, - avisou no dia da assinatura do contrato.
O Citron continuava, já quase não cabia no carro devido à fabulosa musculatura, adquirida pelas inúmeras corridas e arremessos. Mas o Peidão era um rapaz muito ajuizado e compreendeu que o ajudante já não aguentava mais aqueles treinos intensivos e assim passou a levá-lo sempre até à porta dos clientes. Uma semana depois o Citron também se reformou e o Peidão ficou por sua conta e risco. E a tentação foi mais forte. No primeiro fim-de-semana transformou a carrinha em autocarro e foram todos passar a noite no “Maria Bolachas” na Praia das Maçãs e no regresso acendeu uma luz vermelha. Como a mecânica não era o seu forte, levou nesse estado a carrinha até casa, que ainda estava muito longe. De uma só vez ficaram os quatro no desemprego, incluindo a carrinha.

Thursday, May 07, 2009

Como tu sabes…



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Comandante Guélas
 
Série Paço de Arcos
O dia do aniversário do Focas chegou e na vila de Paço de Arcos a agitação pairava no ar! Os lugares já estavam marcados no restaurante e a ASAE tinha passado a casa de pasto a pente fino, não fosse o Pontas ir servir atum do Jamor ao Mac Macléu Ferreira, filetes das Fontainhas ao Boa-Cara e polvo da Terrugem ao Proveta. A primeira surpresa da noite foi o avistamento do Serapitola, que parecia o Álvaro Cunhal em versão negativo. Tinha autorização para mastigar, mas falar nem pensar. O Cocciolo pediu o livro de reclamações para protestar contra as comemorações dos cinquenta anos do sobrinho do Isaltino, pois largara um masso de notas por meia dúzia de croquetes e um saquinho de favas fritas.
- Pensei que eram as entradas e para não perder a fome esperei a noite toda pelo jantar.
A um canto da mesa o Conan mantinha o recorde de cobrições, agora com os episódios de incontinência incluídos. Todas as semanas abandonava fêmeas da Costa do Estoril. De repente o telemóvel do aniversariante tocou:
- Allô Focas, aqui engenheiro Petroni.
- Engenheiro Petroni?!!! – Perguntou o Focas fazendo um zapping à memória das amizades, incluindo os defuntos, não conseguindo, no entanto, descobrir algum “Engenheiro Petroni”. – Deve estar enganado.
- Grande Focas vejo que já estás com esclerose, eu sou o Engenheiro Petroni e gamámos….crescemos juntos com figuras ilustres, como o Mocho, o Balatuca, o Pingalim, o Milhas, o Peidão, o Graise, o Velinho, o Pilas, o Maneleiro, o Marreco, o Xinoca, o Pontas, o Rato, a quem me esqueci de pagar o compressor…
- Pierre Pomme-de-Terre, já podias ter dito.
- Como tu sabes acabei engenharia, a minha filha anda no Britânico, como tu sabes…
E o Focas agravou o seu estado de espírito com esta aparição difusa e imprevista de um amigo do alheio. Como é que ele poderia saber do currículo actualizado do Pierre Pomme-de-Terre se o último que lera fora há 35 anos quando ele fugira para o Brazil com o diploma incompleto da Infantil (fugira da sala 4 depois de ter pedido emprestado os guélas dos colegas e a carteira da educadora Meca, para ir comprar “Gorilas” ao Kitanda), levando no seu encalço o chefe Bigodes e todo o seu pessoal, o padre no encalço das esmolas, o carteiro dos cheques dos reformados, obrigando a vila a dividir-se ao meio, uns para o engavetar e outros para o enterrar. O Pierre Pomme-de-Terre agora o senhor Engenheiro Petroni, representava um certo neo-romantismo amigo do alheio, que se tinha estabelecido entre o final do século XX e o início do século XXI. A vinda desta figura carismática paço-arcoense representava o regresso às fontes das tradições da vila, particularmente no que dizia respeito ao mítico cheque careca. A mesa em “U” agitava-se, havia quem tivesse perdido a tranquilidade. As carteiras começaram a ser guardadas e todos viram o senhor Rato a cravar, com raiva, a faca da carne no atum do Mac Macléu Ferreira, e tudo por culpa das recordações de um compressor trocado por um cheque careca do filho do marquês. E o engenheiro Petroni sabia disso, viu-se na resposta que deu ao aniversariante quando este lhe perguntou onde estava:
- Em Macau a fazer o projecto para as futuras Torres Petroni que vou erguer no lugar do Tino, com as fundações do próprio.
Com a vinda deste mecenas de sinal contrário vinha outro tipo de discurso, desta vez mais elaborado:
- Focas amigo, diz aí ao pessoal que eu agora já tenho outra “armadura estrutural”, no passado fiz muita “argamassa” que tenciono agora compensar com um “cálculo estrutural” à maneira, que “arquitrave” as “incrustações” do antigamente, prometendo um autêntico “baldrame”, estás a topar?
O Focas nem teve tempo de responder, pois o (in)desejado continuou:
- Não te preocupes, convido-te desde já para um almoço sem limites aí no restaurante onde estás a jantar, e tudo por minha conta, e explico-te detalhadamente o que disse em cima.
O Pontas, pelo “sim” pelo “não”, encerrou de imediato o estabelecimento e pôs trancas nas janelas.

Sunday, April 26, 2009

O dia em que o Capitão arrumou as botas



Comandante Guélas

Série Paço de Arcos
 

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O tempo era de mudanças, a Velha Geração de jogadores formada na Praia de Carcavelos, com o esgoto a servir de linha lateral, estava a receber novos reforços, filhos, sobrinhos e amigos destes, que traziam uma nova dinâmica à modalidade, para pior, uma vez que esta juventude estava mais habituada aos copos sentados do que aos copos em pé, reflectindo-se estes maus hábitos na sua péssima condição física. E esta característica fazia toda a diferença neste tão popular desporto de “fim-de-semana com autorização escrita das mulheres”. Mas havia alguém que andava com a cabeça à roda por causa desta invasão de tenrinhos, aparecidos por geração espontânea. Eles tratavam-no com respeito, diziam “sim” aos seus convites para tertúlias em sua casa, mostrando serem muito diferentes da Geração Rasca dos pais e dos tios, como por exemplo o Chico Sá, que perguntava sempre aos amigos “Ouviste o eco?” de cada vez que a bola batia com violência no “bumbum” do Capitão. Os tenrinhos até o tratavam por “Tio Porão”! Ao aceitar o lanchinho do Capitão, o Tona revelava não estar com a lucidez necessária, nem nunca ter ouvido falar da história do “Capuchinho Vermelho”. Foi preciso passar algum tempo, deixar baixar a poeira, ganhar a distância, para que os amigos o confrontassem com a verdade. Este “inocente” convite do militar de Abril mudou para sempre a carreira futebolística deste jovem ingénuo e veio mostrar o fosso que separava aquelas duas gerações de “profissionais” da bola. O jovem careca não estava habituado a deparar-se sempre com um defesa adversário que protegia a sua área e a bola de costas viradas para ele. E tantas foram as vezes com que se deparou com um “bumbum” a convidá-lo para a luxúria que, tal como a Leonor do poema, acabou por partir-lhe a bilha, mais propriamente enganar-se e chutar no pé do velho, em vez de o fazer no esférico. Por momentos aqueles dois corpos, um tenrinho e o outro com caruncho, moveram-se, agiram, num único movimento sussurrante, tocando-se levemente no ar, num gesto que se aproximou dos outros coxos, com um virtuosismo técnico tão elaborado, que fez com que ninguém visse que o Milhas tinha tocado com as duas mãos na bola. O reencontro do Tona com o Capitão teve uma sensibilidade poética, que levantou a dúvida quando se deu o contacto do corpo rançoso com o solo e dele saiu um grito alucinante com diferentes interpretações:
- Foi um gostinho, – disse o Fininho.
- Deu o berro, – atirou o Chico Sá.
- Perdemos o guardião do saber e da memória de uma espécie de homem que um dia nos treinou para o Torneio de Futebol de 5 no Pavilhão de Paço de Arcos, – lamentou o Milhas, deixando cair uma lágrima.
- O Capitão é que se esborrachou, mas o Milhas é que está a delirar, – exclamou o Peidão.
- É falta do velho! – Sentenciou o único jogador lúcido, o Caramelo.
O caso não era tão simples e natural, tinha agora uma dimensão metafísica. A imagem do mais velho jogador de futebol de Paço de Arcos esticadinho no pelado, estilo bacalhau, iria ficar gravada para sempre nas memórias de todos, como um momento único, desarmante. Mas ninguém se apercebera das terríveis consequências, ao nível comportamental, que este espectáculo, simples e natural, iria ter sobre a Nova Geração. Dali para a frente tornaram-se diferentes. Fora preciso aparecer uma nova revoada de tenrinhos para atirar por terra e arrumar a excitante carreira futebolística do mais capitão de todos os capitães, a seguir ao Patrão Lopes. O dinossauro foi ao chão em decúbito ventral e por lá ficou no meio de estranhos movimentos de cobrição e dor. Quanto ao Tona, encontrava-se de pé debruçado sobre o ferido, sem saber o que fazer. A Velha Geração aconselhava-o, por gestos, a deitar-se sobre o moribundo, evitando que ele arrefecesse, e também como forma de compensação pelos danos sofridos. Mas o Capitão queria outro, o futuro médico e disse-o em estilo comando:
- Leva-me a casa!
Todos imaginaram a entrada do militar em casa ao colo do tenrinho, tal qual um par de recém-casados. A recusa do contemplado foi imediata e as atenções voltaram-se novamente para o Tona, que tentava escapulir-se da zona do acidente.
- Eu vim de mota, – desculpou-se, abrindo os braços.
- O ferido não se importa de ir sentado de lado, muito agarradinho, – esclareceu o Chico Sá.
Quem ajudou o Capitão a instalar-se no Mini e a desenrascar-se a partir daí foi o Choné, um jogador com uma perna-de-pau e uma careca maior e muito mais velha do que a do Tona. Quanto ao velho, não teve outro remédio senão pendurar as chuteiras junto às recordações de África, as caveiras de antílopes e as cabeças em pau-preto, com as cuecas do pelotão!

Monday, April 20, 2009

Jogadores à beira de um ataque de nervos




Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


A tradição cumpria-se com mais um jogo a chegar ao final sem a intervenção externa da campainha. Pela milésima vez o Chico tinha atingido a “redline” e queimara as juntas da cabeça, colando-se à sombra do Tio Fininho, que estava impecavelmente vestido com um equipamento preto de árbitro da “Sexta Divisão do Batatinha”, o célebre Abramobatata do campo de Vila Fria, vizinho da lixeira camarária. O estado de alma do Chico reflectia-se no fumo que lhe saia pelas orelhas e na cor avermelhada que lhe forrava a “fácies”. Estava próximo de um ataque de caspa! Ao longe o papá, impecavelmente vestido com um equipamento do Sporting, que incluía meias e chuteiras verdes do Quaresma, tentava trazer o filho para a realidade, sabendo de antemão que tal seria impossível, porque a gasolina que tinha bebido no Algarve quando foi ao gamanço com o amigo chinês, depois de terem demorado a noite toda a desmontar uma cadeira feita de tubo de plástico, entranhara-se nos genes, não havendo nada que conseguisse apagar o tal risco profundo que, em quase todos os jogos, colocava o pequeno-grande Chico à beira do precipício.
- Não lhe ligues, o Fininho é assim mesmo!
Mas nada demovia o colosso de estar colado à sombra do “tio”. O mal dele era ter ido para o curso de Logística da Escola Náutica. Desde esse momento o Tio Fininho tornara-se muito exigente com os estudos do “sobrinho emprestado”, um rapagão que trocara os livros pelos copos, fazendo-lhe interrogatórios massivos sobre o comportamento da “Carreira 22”. Pelo meio ia-lhe agradecendo os golos que teimavam em entrar na baliza da equipa de que o colosso fazia parte, tendo como companheiro o inebriante Milhas, que teimava em dar orientações tácticas desde que o apito assinalara o início da partida. E no calor da discussão ninguém se apercebeu da saída intempestiva do careca de meia-idade de nome Jorge, que tinha atingido o prazo de jogabilidade, em virtude de ter sido traído pela “claustrofobia por espaços vastos” que o impedia de respirar, compensando o défice com escarretas fininhas. Pelo meio o filho do Vaca Prenhe interrogava o Pequeno Polegar, de nome de guerra Biblot, sobre os motivos que o levavam a ir sempre disputar as bolas altas nas Grande Áreas. Mas o assunto da jornada era a grandiloquência do Chico, que teimava em Rosnar junto ao “tio”, enchendo-lhe o fatinho de perdigotos, e isto o jogador Fininho não tolerava:
- Não me diriges a palavra com a boca cheia de azeitonas, – indignou-se o jogador com equipamento de árbitro, apontando um indicador ameaçador ao “Colosso das Palmeiras”.
E nisto uma bola tresmalhada passou a rasar a cabeça do Milhas. Tinha sido o Rubi, que ainda não se apercebera que o jogo estava em “pausa”.

Wednesday, April 01, 2009

O “Caso Ramalho”








Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Quando o Peidão entrou na praia de Carcavelos na sua Yamaha 50 Mini-Enduro, tirou o penico de aviador que levava na cabeça e foi de imediato chamado por um agente da GNR que estava junto ao restaurante “O Narciso”.  Resolveu não fugir, como habitualmente, e a atitude de cidadão exemplar custou-lhe um belo dia de praia. Esperava que os agentes da autoridade tivessem acordado com "bom-senso", mas enganou-se! Foi de imediato acusado de ter vindo de casa com a cabecinha ao léu e por isso, contra a corrente que grassava no país, iriam aplicar a lei. Mas não contavam com a reação do cidadão: trazia na carteira uma bomba atómica!
- Se este senhor pode andar à boleia numa mota da GNR sem capacete, eu também tenho esse direito, estamos em democracia.
A foto da revista foi aberta e ficou escancarada para os agentes da autoridade e para o povo, que normalmente nestas ocasiões festivas aparecia sempre de geração espontânea. O documento exclusivo do Peidão mostrava o Presidente da República, o Ramalho, a transgredir a lei, ainda por cima com a cumplicidade da GNR. O guarda ficou estático e sentiu o bafo do povo atrás de si, que se aproximara para ver a fotografia. Houve risos e comentários de reprovação, afinal tinham votado num fora-da-lei.
- Montagem, isso é uma montagem, - acusou o mais graduado. – Vou passar-lhe uma multa por difamação.
- “Difama” quê? – Perguntou o outro.
- Este cidadão está a insultar o Comandante Supremo da Nação - sentenciou, olhando de cima para baixo.
A assistência estava ao rubro, a autoridade já era confundida com os artistas do Circo Palitó. E tudo se agravou quando tentaram tomar posse administrativa do documento, que desapareceu no meio do povo
- Esse polícia que está na fotografia é falso,  – gritou um dos agentes, apontando um dedo acusador ao réu.
- Quantos são vocês na GNR? – Perguntou o caluniador do cidadão de nome Ramalho.
- Para aí uns quinze mil, – respondeu o agente, que era parecido com o famoso guarda Ricardo.
A risada foi geral, o povo aplaudiu o desempenho irrepreensível do pessoal do Circo Palitó.  A autoridade viu-se obrigada a tomar medidas. Definiu um perímetro de segurança, abriu o livro de instruções para multas rodoviárias, e depois de muito soletrar, “difamação” nem vê-la. Foi necessário contactar com a central.
- Alô, alô, aqui 24 chama a central, escuto.
Respondeu-lhe um ruído semelhante a um ressonar. Insistiu.
- Alô, alô, aqui 24 chama central, escuto.
Desta vez o ruído assemelhava-se ao de um balão a esvaziar. O povo tornou a aplaudir, a situação estava a ficar incontrolável.
- Temos de nos deslocar para uma zona mais aberta, - informou o chefe. – O senhor vai ter de nos acompanhar.
Uma BMW 750 à frente, uma Yamaha 50 Mini-Enduro no meio e outra BMW a fechar. Todos a 20 Km/hora, assim os obrigou o cidadão Peidão, alegando que a mota não dava mais. Os heróicos agentes da GNR foram obrigados a ir com as botas a arrastar pelo alcatrão, porque àquela velocidade tinham de ir em primeira e aos solavancos. Quanto ao povo, despediu-se acaloradamente dos animadores de praia.  A caravana parou na zona do Motel, junto a uma cabine telefónica. Mas surgiu um problema. O único que tinha trocos era o arguido, que não tencionava gastá-los com os agentes da autoridade. Até que surgiu, também de geração espontânea, um individuo numa Casal Boss 50, que se aproximou em alta velocidade, e rodeado de uma nuvem de fumo, do trio, identificando-se de imediato como agente da PSP de Oeiras. Foi posto ao corrente do crime e aproveitou para mostrar que era muito mau.
- Se quiserem tenho lá uma cela para ele, - gritou, atirando uma baforada de fumo contra aquele que ousara pôr em causa a honestidade do homem que enfrentara, uns meses antes, em posição de forcado em cima de um tejadilho de um carro, uma turbe de chaparros que disparava pistolas de fulminantes .
O reforço acabou por ser útil nos trocos. Quando a central foi posta ao corrente da situação, o cabo levou de imediato um cartão vermelho por andar armado em intelectual, e não se ter reduzido à sua condição de GNR com a 4ª classe. A infracção era por falta de penico e a multa era essa. O resto era estar a faltar às suas obrigações, que eram patrulhar a Costa do Estoril. Escusado será dizer que o papel unicamente serviu para o habitual, já que a partir de Junho só os otários pagavam as multas, como era tradição.

Friday, March 20, 2009

Abromobajoulo



Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

O Verão no Algarve consumia cada vez mais dinheiro e por isso era necessário arranja-lo, pois as férias grandes eram mesmo grandes. O Bajoulo conseguia passar um mês inteirinho ao Algarve, sem interrupções, com uma nota de mil escudos e regressava a Paço de Arcos mais gordo, estilo leitão de Barrancos, trazendo ainda cinco mil na carteira. Era o dois em um, nas boites namorava e abastecia-se. Naqueles saudosos anos pós-revolução havia mais alemãs com pulgas por metro quadrado do que Ctenocephalies felis felis sozinhas e o Bajoulo estava em vantagem em relação aos suínos que elas traziam, pois ele era produto nacional e falava fluentemente em alemão. E as meninas bebiam no mínimo vinte cervejas, só para aquecerem. Por isso caíam-lhe todas no regalo, deixando as malas descuidadas. Este adolescente anafado já era muito avançado para o seu tempo, pois só se abastecia nestes Multibancos germânicos. Os desvios eram vários, longos e metódicos. Numa primeira fase conferia a forma e a localização da carteira, na segunda fazia os ajustamentos corporais necessários, que incluíam a aproximação e a distracção da fêmea com modos corteses e medidos, e na terceira preocupava-se com os pormenores, ou seja, a abertura do fecho e a localização das notas. Todo este ritual demorava tempo e exigia muita gramática, o Bajoulo falava da vida como se contasse um segredo. Mas tinha uma ética e por isso mostrava sempre o maço de notas aos amigos e pedia-lhes a opinião da quantidade aceitável, tudo isto em mímica e ao mesmo tempo que namorava com a turista.

Monday, March 09, 2009

Abromobatata




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Comandante Guélas
Série Paço de Arcos

Ainda o Abramovich andava de fraldas e já o pai do Pierre-Pomme-de-Terre tinha uma chata com cabine feita de lona comprada nos ciganos, a quem ele chamava Iate. Como em Paço de Arcos todos o conheciam, a feira das vaidades rumava a Sul, mais precisamente para o Algarve. No início das férias o rebento ficava sozinho em casa a “estudar” para os exames, ou seja, a desviar umas librinhas de ouro para os gastos. E num dos verões apareceu um problematizo adicional: o arranjo do descapotável do chulo do Pimenta, com que haviam marrado numa parede! Durante vários dias o Bajoulo e o Batata tinham impressionado o Pica (o café) com o potente cabriolet que, de cada vez que arrancava, dobrava a meio, dando sempre a sensação de se ir dividir em dois a qualquer momento. O majestoso Iate dos Batatas, o “Pirolito II”, estava estrategicamente fundeado na praia mais “in”. Em terra davam-se os últimos retoques para a cena, os papás Batatas colocaram os derradeiros emblemas com motivos do mar, âncoras e búzios, para dar a impressão de várias voltas ao mundo ao leme do “Pirolito II”. Na cabeça do chefe morava um chapéu digno dos melhores lobos-do-mar e na tola da esposa uma espécie de toldo, a imitar as mais finas castas inglesas. No barco, vindo expressamente de Paço de Arcos na noite anterior, depois de se ter desenvencilhado das libras no “Dobrão”, Pierre-Pomme-de-Terre esperava pelo sinal que viria de terra. O papel que lhe tinha sido atribuído era o de paquete, que iria a terra numa chalupa buscar os patrões, para irem almoçar a bordo. Quando a praia ficou cheia com as famílias mais importantes de Lisboa, o papá tocou a corneta, comprada numa das bancas da feira de verão que estava junto à estátua do Patrão Lopes, e o marinheiro fez-se ao coco, ao mesmo tempo que os patrões se dirigiram para a beira-mar. O encontro foi digno dos melhores filmes de Hollywood, os magnatas Batatas estavam mais brancos do que o próprio OMO, uma brisa marítima fazia ondular o vestido voluptuoso da dama, enquanto que o chapéu à Comodoro dava um ar imponente à figura do Pomme-de-Terre Sénior. O coco atrasou-se um pouco, como tinha sido decidido no guião, para que a praia tivesse direito a apreciar um fenómeno ainda muito raro naqueles anos, mas rotineiro nos dias de hoje. O Batata chegou com uma remada digna das melhores caravelas, saiu em salto, tal como um felino, mostrando à populaça o seu belo fatinho à marujo e atirou ao papá, agora no papel de capitão Haddock, com cachimbo e tudo, uma soberba continência igual às dos filmes da Segunda Guerra. O patrão agradeceu e entregou-lhe a mão da marinheira, para que lhe desse apoio no embarque. Quando estava tudo a postos, o marujo Pierre-Pomme-de-Terre deu uma remada tão brusca, que fez a chalupa dar uma volta de 180 graus, que a colocou de quilha para o ar e sentou os papás no fundo do mar!

Sunday, February 22, 2009

Os sapatos do coronel Osório


Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


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Iria haver festa na vila, o Focas estava com casamento marcado e a despedida prometia ser longa. Começaram por arremessar um dos seus sapatos para a varanda do coronel Osório, que já se encontrava mais para lá do que para cá, depois de ter dividido com a esposa um jantar no café do senhor Américo. O militar ainda ouviu o impacto da falua made in senhor Coutinho no estor, mas confundiu o barulho com um tiro disparado pelo John Waine no filme que estava a dar na televisão. O que iriam dizer os futuros sogros quando o Focas aparecesse lá em casa para ir buscar a noiva e se apresentasse com um pé calçado e outro com uma meia “CD” rota? O casamento do Focas não poderia ser posto em risco, porque o Pilas já estava a preparar a festa, idêntica à do casamento do Peidão, em que trotou o dia todo, gatilhou nos extintores e abanou a fruta para as tias quando estava de cuecas em cima da prancha mais alta da piscina antes de saltar e gritar, “o que vocês querem está murcho”.
- Temos de ir buscar o sapato do pobre Focas, senão ele ainda se constipa, - disse o Velhinho, recuperando o equilíbrio depois de se apoiar numa árvore.
O jovem adulto escolhido para ir tocar à porta do militar, estava virado para a loja de electrodomésticos do Ligóia com o sexo cansado de fora a debitar mijo, muito mijo.
- Não dou, - gritou peremptoriamente o coronel Osório, não aceitando a explicação que colocava o sapato do Focas na sua propriedade devido a um golpe de vento traiçoeiro.
A hora para ir buscar a noiva aproximava-se. Como o andar onde morava o Velhinho era o de cima, um segundo plano foi montado, e consistiu em pescar a barcaça. Mas na varanda utensílios ligados ao mar só havia uma poita.
- Eu sou capaz de pescar um tubarão com uma linha de cozer, - atirou o Velhinho, chegando-se ao parapeito da varanda com a cana na mão.
Olhou para baixo e viu três sapatos, apesar de todos só verem um. Quando o isco começou a descer para ir salvar o sapato do Focas comprado na sapataria do senhor Coutinho, o pescador teve uma fraqueza nas mãos, devido à cevada que lhe forrava o interior, e deixou cair com estrondo a âncora em cima do objecto do noivo. O coronel abanou e deitou-se no chão em posição de defesa. Nova reunião, novo porta-voz, mas agora um com um ar mais convincente e da zona: o Pierre Pomme-de-Terre!
- Não, - tornou a gritar o militar da velha guarda para o adolescente arraçado de leitão com anjo barroco, de carne tenrinha e sorriso virgem.
O Focas não teve outro remédio senão pedir emprestado o sapato de cor diferente ao seu futuro cunhado, o Proveta, que o esperava no rés-co-chão, e não saiu da porta de entrada, sem acender as luzes, alegando uma reunião extraordinária com o padre. Saiu a correr e a coxear, mas com os sogros a babarem-se de orgulho por tão devoto enteado. No entretanto o gang reunira-se de emergência e aprovara por unanimidade a proposta do marido mais responsável da zona, o senhor Peidão, que lançara uma fatwa para a meia-noite: encher a varanda do coronel Osório com todos os sapatos velhos de Paço de Arcos e arredores. E a lei foi cumprida, durante meia-hora choveu granizo na varanda do militar. No dia seguinte o Osório foi visto com um enorme saco de plástico atestadinho de sapatos, a caminho do contentor da praceta.

Sunday, February 01, 2009

Estremoz cidade serena



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Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Uma das passagens de final do ano do Gang foi passada a quilómetros de distância, no meio de chaparros, tios chaparros, classificação que não constava nos manuais escolares dos “meninos de boas famílias” da Costa do Estoril.
- Chaparros queques?! – Perguntou admirado o Charlot.
- Tão queques que só podemos entrar de fato e gravata, e a festa é no casino lá da terra, um misto de mesas de matrecos com sofás de veludo, - explicou-lhe o Proveta, ajeitando a gravata do pai que lhe chegava aos pés!
Um dos membros do Gang namorava com uma menina cuja família tinha morada na respectiva terra e achara por bem convidar todos aqueles adolescentes das famílias mais brazonadas de Paço de Arcos, para assim subir na hierarquia social da “chaparrolândia”. Iriam todos de comboio, já equipados para a festa. A meio da viagem e já um pouco chateados por não fazerem nada, o Gang resolveu passar à acção, dando início a um jogo radical que consistia em mudar de carruagem, mas pelo lado de fora. Quando o maquinista se apercebeu do jogo, já havia vinte adolescentes, de fato e gravata, do lado de fora, facto inédito nos anais da CP alentejana. A brincadeira só acabou quando todos cumpriram o percurso definido: partida na última carruagem e meta na primeira. As autoridades da composição bem tentaram mete-los para dentro, recorrendo a gestos e a buzinadelas, mas a prova só acabou quando o Velhinho terminou o circuito. Meia-hora de descanso para os “bravos de Paço de Arcos” e nova animação: slows unisexo. O Focas e o irmão do Marreco levantaram-se e, ao som de uma música romântica, abraçaram-se e dançaram com sensualidade para a carruagem que ia atestada de velhas chaparronas tipo morcegos. Para abrilhantar o número, o Pilas foi à casa de banho e encheu de água uma camisa-de-Vénus, que pôs a circular pelos passageiros. A pouco e pouco a carruagem foi-se esvaziando de autóctones, acabando por ficar exclusiva dos “meninos de boas famílias” da Costa do Estoril. Entretanto algo parecia ter acontecido, um fenómeno do Entroncamento: o Peidão crescera durante a viagem, as mangas do blaiser castanho que o Pedro Sá lhe tinha emprestado acabavam nos cotovelos.
- Era o que eu usava quando a catequese ainda me aceitava, - explicou o proprietário, escondendo o facto de ter sido expulso da instituição aos 10 anos por ter desviado dinheiro da caixa das esmolas para ir comprar um maço de GS Filtro.
A chegada a Estremoz foi inesquecível para os habitantes. A rua principal estava recheada de laranjeiras carregadas de frutos reluzentes. Segundo reza a lenda, quem começou a guerra foi o Pilas, que acertou em cheio com uma laranja na cabeça do Conan que ripostou, mas falhou o alvo, esborrachando o esférico no fatinho catita do Velhinho, que também não gostou e respondeu à letra,…..Bastou meia-hora para a estrada principal estar pintada de cor de laranja. Mas como tinham de chegar a horas ao jantar na casa da família da namorada chaparra de um dos paço-arcoenses, sacudiram os caroços dos fatos e apresentaram-se na morada indicada. Foram recebidos como heróis e deram de caras com um repasto digno de príncipes. O Conan foi o primeiro a beijar a dona da casa e pediu para lavar as mãos. Só que não disse toda a verdade. Tinha saído de casa com a tripa cheia e durante a viagem a trepidação do comboio inibira o conteúdo de sair. Mas a “Guerra das Laranjas” acalmara-o e agora saíra tudo de uma vez. A fila para o WC aumentou, mas o Conan recusava-se a sair, puxando compulsivamente o autoclismo. Quando se viu obrigado a abandonar as instalações sanitárias, pois caso o não fizesse os colegas de escola ameaçavam deitar a porta abaixo, trouxe atrás de si um cheiro nauseabundo que não ficava nada atrás do Litopol. Devido a este “grande percalço” o jantar acabou de imediato e o Gang resolveu ir fazer uma visita de cortesia à pensão onde estavam alojados os dois únicos paço-arcoenses com posses: o Bakaus, teoricamente o maior cobridor do país, um conquistador cruel que não escolhia e atacava as suas presas sem estados de alma, e o sempre abonado com libras, o Pierre Pomme-de-Terre. Só dois tocaram à porta enquanto que os restantes permaneceram acoitados numa esquina. Uma velha estilo bruxa abriu a porta:
- Boa-tarde minha senhora, viemos dar um beijinho aos nossos manos, que estão aqui hospedados, - disse o pilas com um sorriso rasgado.
- São meninos de Lisboa?
- Sim, - respondeu o Conan, afastando com as mãos os vestígios gasosos da “obra” que tinha produzido uns quarteirões acima.
- Entrem, a casa é vossa.
Entraram todos.
- Chiça, e eu a pensar que as famílias numerosas eram aquelas que não tinham televisão, – resmungou a mulher morcego.
A contabilidade da casa era rigorosa, havia um contador à saída de cada tomada, mas o Bakaus já tinha feito uma ligação directa. O aquecedor estava ao máximo e o aparelho de controlo a dormir. Em cima de uma das mesas estava o garrafão de colónia “Lavanda” do gordo caixa-de-óculos com nome afrancesado. Quando o Gang se despediu dos “manos” o perfume transbordava dos sapatos italianos do Pierre Pomme-de-Terre. A festa decorreu sem incidentes de maior e alguns dos adolescentes acabaram a dormitar nos bancos do jardim, nunca tendo conseguido adormecer, porque a polícia colara-se ao espaço público e intervinha de cada vez que se deitavam.

Monday, January 19, 2009

GNR versus Picadili


Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
Aquela manhã de segunda-feira era de treino, o Circuito de Manutenção A do Estádio Nacional iria receber a visita de dois expoentes máximos do atletismo paço-arcoense. O Gang dos Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos tinha de estar sempre em boa forma física, pois as “chinchadas” à fruta do senhor Manuel eram diárias, assim como o gamanço nocturno dos peixes dos vários lagos da Quinta do Leacoke. O meio de transporte utilizado pertencia ao Mac Macléu Ferreira, uma soberba Vespa 50, como jurava o livrete, mas com centímetros cúbicos clandestinos devido a estar “Kitada”. Um problema de última hora obrigou a uma mudança nos planos. Os atletas não levaram capacetes porque as instalações do Estádio Nacional encerravam sempre nesse dia da semana. Confiavam na Providência Divina que, com toda a certeza, iria proteger estes dois devotos praticantes das garras da autoridade. O seu currículo provava que eram portadores de um documento, passado pelo Arquivo de Identificação de Lisboa, após autorização da PJ, que atestava o “bom comportamento cívico e moral” destes “filhos de boas famílias”. E o São Pedro sabia disto!
- Não vai aparecer ninguém, eles acordam sempre tarde, - explicou o astuto motorista, limpando os óculos.
Quando o par de adolescentes ia calmamente a fazer o aquecimento em cima da mota, fumando alegremente dois GS Filtro, apareceu, não uma, mas duas BMW da GNR e um carro patrulha, com tudo o que era sirene a gritar. O estudante Mac Macléu Ferreira olhou para os agentes e informou-os de que iria imobilizar-se no carreiro que estava em baixo. A autorização foi concedida e o Peidão, como cidadão exemplar, fez pisca para a direita com o braço e só o desfez quando se apercebeu que o companheiro de treino não só não fazia questão de parar, como seguiu caminho pelo morro abaixo, fazendo zig-zagues por entre os pinheiros, que cada vez eram mais. Por momentos os agentes da autoridade não reagiram, ficando divertidos a apostar quando é que os jovens desportistas iriam marrar numa das árvores. Contra todas as probabilidades, as dioptrias do Mac não foram um empecilho, mas sim uma vantagem. Ele tinha aprendido a conduzir por instinto. Aperceberam-se que não iriam ganhar nada, a não ser uma repreensão do chefe ao final da tarde, e arrancaram em alta velocidade para a rua debaixo, onde ia desembocar o morro. Quando o adolescente desportista Mac Macléu Ferreira viu o comité de recepção, deu meia-volta e acelerou para o cume, mas desta vez com um cavalo extra, o Peidão, que passou a empurrar a Vespa, pois a menina ainda estava em rodagem e não convinha dar o berro naquele momento. De repente apareceu uma depressão e os três deitaram-se de imediato. Lá em baixo ouvia-se o barulho das autoridades desesperadas. Meia-hora depois o silêncio.
- Despistámos os chuis.
Levantaram-se e decidiram empurrar a máquina até ao alcatrão mais próximo, ou seja, na parte de cima das bancadas do campo principal. Quando se preparavam para deixar a terra batida eis que dão de caras com uma operação “stop” personalizada. Dois GNR saciem sorridentes detrás de uma árvore, empunhando pistolas. Novo treino, nova corrida. Mac Macléu Ferreira começa a correr e a empurrar a mota com a mão direita, ao mesmo tempo que levanta o braço esquerdo em sinal de “meia-obediência” à ordem de rendição dos agentes da autoridade, com o companheiro de equipa a fazer o mesmo, mas com os braços trocados.
- Não atire, não atire, - atiraram os paço-arcoenses, à medida que a rotação das pernas ia aumentando.
Mas a prova era desigual, a vantagem tendia para os representantes do Estado. Bastaram meia dúzia de metros para deitaram a mão aos adversários, que foram de imediato conduzidos para junto das BMW, que estavam escondidas junto a uns pilares do edifício central.
- Que azar senhor guarda, - interveio o Peidão, o que fumava menos. – Tivemos quase para descer o morro outra vez.
- Vocês são sempre os mesmos. Fogem pelo carreiro, escondem-se e depois julgam que despistaram a polícia, - explicou o agente, rindo-se. – Basta-nos vir para aqui esperar.
A autoridade demonstrava aqui que havia já um estudo estatístico das ocorrências no Estado Nacional, apesar de tudo se ter passado numa altura em que a 4ª classe bastava para se pertencer a um órgão de soberania. Dirão hoje os nossos pais que na altura deles é que o Ensino era a sério!
- Sem capacetes, sem documentos, uma fuga à autoridade, uma tentativa de fuga, isto vai ser uma pipa de massa, - prometeu um dos agentes abrindo o bloco e começando a escrever.
Quando entregou o papel, constava só uma multa, falta de capacete do condutor.
- É para não irem para o café de Paço de Arcos dizerem que enganaram os chuis.
Os atletas adolescentes agradeceram a compreensão e partiram estilo cordeiros a empurrar a Vespa-50 de Mac Macléu Ferreira, agora com a ajuda das duas mãos.
- Podem ir montados na mota. Era o que iriam fazer mal dobrassem a esquina.
O condutor deu ao “kiko” e a mota atirou para o ar os centímetros cúbicos clandestinos.
- Belo motor, - riu-se o polícia.
A equipa de atletismo da GNR tinha acabado de cilindrar o duo do café “Picadilly” (“Pica”)!