Série Camarada Choco
Aventura 98
Charles Ganzas
A TVI tem
destas coisas, quando as audiências são poucas obriga os empregados a fazerem
das tripas coração, e foi por isso que Queluz reinventou a biografia do
trissómico mais mafioso da Brandoa, que nascera geneticamente entupido ao nível
do hardware, com uma mentira sem limites, descaracterizado, normalizaram a sua
família fraudulenta, afogaram-no em mentiras, um pobre coitado nas mãos de
gentalha em roda livre, atolados nos seus próprios complexos. Uns dias antes a
Fininha dos Serviços Administrativos atendera o telefone, e dera de caras com a
mamã do Kodac, que lhe deixava um inusitado, e urgente, recado:
- Diga ao
meu filho que quero saber onde é que ele escondeu o saco com as doses de erva
do sobrinho, porque o miúdo tem de ir trabalhar.
Dizia-se que
o mano do Kodac tinha ficado farto das estadias periódicas em Vale dos Judeus e
emigrara para a Alemanha, deixando o rebento na Brandoa a gerir o negócio
familiar. O Kodac era o bem-amado da zona, os brós idolatravam-no
alimentando-lhe piedosamente o vício do tabaco e do sumo de cevada. Mas havia
pré-condições, um pacote com vários maços em troca de algumas doses catadas ao
sobrinho. Nesta família tão atenta, teve logo de amadurecer a partir do
primeiro mês, porque caso o não fizesse não iria longe. E aprendeu que o
cromossoma extra no par 21 não iria ser uma desvantagem na Brandoa, mas sim um
passaporte para a impunidade, seria o rei da zona, com uma espiritualidade no
andar, que brotava diretamente dos próprios pés, que exalavam um permanente
cheiro a queijo indiano, e tudo graças a uma mistura explosiva de unhas
encravadas, calos jurássicos, fungos locais, alcagoitas familiares, razão
suficiente para a mãe nunca ter atendido aos pedidos desesperados da escola
para que fosse mostrar os cascos do filho a um especialista. O Kodac apercebeu-se
dos poucos neurónios da entrevistadora, por isso deixou a mãe enfeitiçar a
pateta da jornalista com fake news:
- O meu
filho é esperto, podia ter ido muito longe, mas só encontrou obstáculos na
vida. O último sujeitou-o a um trabalho escravo no hospital, oito horas diárias
para ganhar uns míseros 136 euros. Despediu-se!
- E fez
muito bem, - respondeu a Poeiras.
Mas a
verdade era outra, trabalhava três vezes por semana, quatro horas, o resto do
tempo que deveria ser na Escola para Desaparafusados da Venteira, era cumprido
no hospital a catar nas carteiras dos colegas, dinheiro esse que mantinha vivo
outro vício diário, as raspadinhas. Entrava às nove horas, fumava no balneário,
catava dinheiro aos colegas, tomava o pequeno-almoço às dez, desviava mais
euros da caixa registadora, e fingia que trabalhava no restante.
- Passava
todo o tempo a andar, - queixou-se a “extremosa” mamã, que dizia agora estar
sempre sentado na escola, a fazer de segurança na portaria.
Desculparam-no
durante anos por ter um extra no vinte e um, mas acabou por ir para a rua,
despedido. Até para um monga havia limites! Os manos eram assim verdadeiras
obras-primas da Natureza e da mão humana, um com três no vinte um, o outro com
várias estadias em Vale de Judeus. Quanto ao pai, nunca reconhecera o filho, não
se sabe se por não se rever na cara do rebento, e por isso ter pensado que um
carteiro chinês tocara três vezes à porta, ou por consumir diariamente sumo de
cevada que dava para um batalhão, mas por precaução o petiz estava proibido de
fumar na sua presença, não fosse o papá explodir. A tia do Kodac não se
conformou com o que lhe tinham explicado, que o rapaz não iria longe, tinha um
cromossoma a mais no par 21, e por isso arranjou a morada de um médico “que até
marrecos cura, e tudo com um limão”, como lhe explicara a amiga Laurinda, que
fazia bordados para fora. Quando o doutor viu o trissómico da Venteira deu a
receita:
- Eduque-o
como ao outro!
Foi a sorte
dele, na Brandoa não havia coincidências, tudo acontecia quando tinha de
acontecer, na altura certa e no lugar certo, por isso agora na idade adulta aos
fins de semana, sem variações, o Kodac não chega a casa, fica sempre estatelado
num qualquer passeio da Brandoa, de braços estendidos, fitando os céus num
movimento de translação onde, devido à mistura de erva e cevada dada pelos
brós, uma estrela se transforma invariavelmente na amada Barbuda, que lhe expõe,
sem preconceitos, a abundante turfa, que nasce nos pés e acaba nas beiças.
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