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315 estórias

Wednesday, September 25, 2013

Uma coisa chamada Fernanda


Comandante Guélas

Série Colégio Militar

Os lençóis levantaram-se com estrondo, levados por um vento e por uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, que não era do domínio do ar, mas do interior obscuro dos intestinos, com ligação direta ao cérebro. Seria real ou apenas uma alucinação o pungente pesadelo da “jornalista”, fruto de um estado psicótico atormentado pelos spots televisivos dos Meninos da Luz? Ouviu murmúrios que caiam uns sobre os outros, viu olhares hostis, medonhos e perversos, os pensamentos ficaram caóticos, excessivos, fantasmagóricos, estava ali e fora dali, distante com proximidade, num universo fragmentado no tempo e no espaço, com um clima de tensão no limite do insuportável, cheio de pássaros negros chocando no ar. Queixava-se de ter sido atacada por vibrações emitidas por uma barretina, alucinação causada por fumo ilegal, por isso ouviu uma tosse surda vinda das paredes do pardieiro, sentiu uma entidade estranha, viu então uma mulher lívida, de sorriso estampado na cara, com um olhar doce. Aproximou-se com a ganância que lhe era conhecida, mas esta transformou-se num homem com sotaque do Porto, calças apertadas a meio da barriga e um contínuo mascar de tabaco, que lhe atirou uma soberba cuspidela para dentro da cara lúgubre.
- Querias, - gritou-lhe o Menau. - Bai-te lá deitar ó calhau com olhos, tu és “a desonra dos valores essenciais da república portuguesa, um atentado à razão”, mesmo sendo eu monárquico.
- És um “híbrido escandaloso”, - acrescentou outro de nariz saliente, voz rouca, vinda do fundo, e cabelo amarelado, - uma bronca, nem uma bengala mereces. Na tua profissão, que é a mais antiga, umas dormem com o olho fechado, outras com o olho aberto, por isso nunca aprendeste a ser autêntica.
Fernanda tossiu uma tosse seca e nervosa, e esfregou, com rapidez e repetição, as mãos, que só sabiam escrever obscenidades, injúrias e insultos.
- “Criada na monarquia para os rebentos das elites do exército”, - leu o professor de Português, aproximando a cara da coisa. – Rebentos das elites?
- Sabes o que é um Jericoacéfalo? – Perguntou-lhe o professor de Físico-Químicas. - É o que tu és….um burro sem cérebro. O Rebelo criou o colégio porque estava preocupado com a educação das crianças e jovens familiares da sua guarnição.
Como é que uma pessoa, sem qualquer tipo de vocação, cuja educação se baseara no oportunismo, como ficara patente uns anos antes ao aceitar fazer o papel de namorada de um político, obrigando-a a inventar um sentimento que não sentia pelo género oposto, poderia agora dar palpites sobre o Colégio Militar?
- Sabes “porque é que ainda existe”? – Gritou o Ferrari, puxando-lhe por uma orelha. – São duzentos e dez anos !
Fernanda procurou um pensamento mais forte, pensou no ontem e no amanhã, mas o ar estava saturado de cansaços, decadências, desistências e derrotas. O Ferrari, professor de português vindo do Além, porque as circunstâncias assim o obrigaram, pôs uma mão no bolso, tirou um maço de Kart, colocou um cigarro na boca e acendeu-o calmamente, atirando-lhe o fumo para a cara, ao mesmo tempo que torcia a coisa da coisa:
- Escuta, Fernanda, não passas de um peido e julgas-te perfumada a violetas!




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