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315 estórias

Saturday, April 28, 2012

Prevenção Rodoviária

Comandante Guélas
Série Paço de Arcos

Quando o Cabeça de Ananás, nickname posto pelo próprio pai da criança, que durante algum tempo também lhe chamou “Dois Cus”, nasceu, o avô Mene tornou-se no bisavô mais babado da Costa do Estoril, e depressa tomou em mãos a responsabilidade de, finalmente, conseguir educar com bons princípios morais este novo neto, uma vez que em relação aos outros tinha sido uma desgraça. Vivia sem esperança de continuidade, o “Quadro das Lamentações” , onde dava explicações de matemática e física aos netos, que acabavam sempre aos gritos e insultos, e com a intervenção musculada da Milu, estava ameaçado de extinção porque os neurónios do Peidão tinham atingido a redline. A esperança residia agora no Cabeça de Ananás, ou Dois Cus, como preferirem, que era um puto dotado de mais neurónios que os pais e os tios todos juntos, que passava o dia todo na garagem a brincar com o bisavô. Mas houve um dia, no meio de muitos outros, que o tempo ia parando! O avô Mene estava equipado a rigor, um soberbo penico da segunda guerra cobria-lhe a cabeça, apito colado aos beiços, com uma corrente de tampa de bidé a dar a volta ao pescoço, botas cardadas com solas esfomeadas e uma raquete de ping-pong pintada de vermelho e azul, as únicas cores existentes na moradia de dois andares, em cujo rés-do-chão ele era o cabeça de casal, enquanto que no de cima reinava a filha, e o “Dois Cús” em todo o logradouro. A cor vermelha forrava metade das torneiras do jardim, indicando que toda a água que por aí saísse debitava no contador do avô Mene. Por isso usava mais as azuis, da responsabilidade do genro!
- Aiiiii, - gritou pela centésima vez, indicando que o Cabeça de Ananás lhe passara novamente com os rodados por cima dos calos.
Estava tudo ainda muito fresco, na semana anterior ameaçara esganar o petiz que, seguindo a tradição familiar, aproveitara uma distracção e trancara-o no quarto das ferramentas, perdendo a chave logo de seguida. A Milu só deu pela falta dele quando o chamou pela enésima vez para o almoço, onde só se apresentara o Dois Cús, que comia alegremente um ovo estrelado, exclusivo desta bisavó, que só era atirado para a frigideira quando a manteiga atingia o ponto de rebuçado, ameaçando aevaporar-se, tendo ainda ousado comentar:
- Que irresponsabilidade, pedi-lhe para tomar conta do menino e nem para isso serve!
O avô Mene já espumava, mas de nada lhe valia. Pediu que lhe trouxessem o petiz junto à porta, e deu-se início às negociações:
- Se tu disseres onde escondeste a chave, dou-te um chocolate, - prometeu, com uma voz suave.
O Dois Cus deu umas coordenadas e a Milu correu para o andar de cima, e espreitou por detrás do sofá. Falso alarme. Chave, nem vê-la!
- Pensa bem, o avô não se zanga, até te dá um Lego, - tornou a prometer, mas desta vez com um canino de fora, que o Dois Cus não conseguiu ver.
Novas coordenadas, e a bisavó escada acima outra vez. Falso alarme, na casa de banho com o tampo transparente para baixo, uma modernice da Milu, só havia restos de uma mija descuidada.
- Se eu te apanho meto-te os dentes para dentro, - berrou o avô Mene, cravando as unhas na porta. – Isto já se tornou um hábito.
Tinha razão, trancá-lo era já um comportamento inscrito nos genes dos seus descendentes, que o dissessem o Peidão e as irmãs, que um dia o tinham encurralado no torreão da casa da Base das Lages, onde permanecera parte do dia a gritar por socorro para o exterior, enquanto a Milu se ausentara com os petizes para fazer compras no “BX” dos americanos, loja conhecida como “BIEX” pelos autóctones. A única chave que conseguiu abrir a porta cinzenta de pinho maciço foi um machado, a segunda ferramenta preferida do avô Mene, a seguir ao martelo. O almoço decorreu dentro da normalidade, com o Cabeça de Ananás, ou Dois Cus, nicknames da responsabilidade do pai, que se tinha atrasado nos estudos devido a uma “pneumonia dupla”, como se costumava justificar, que se transformara em tripla devido ao estado em que lhe tinha deixado o Cérebro, a correr de um lado para o outro, incluindo várias passagens por cima da mesa. Nos dias de hoje teria levado com várias doses de Ritalina, destinada aos irrequietos de antigamente, classificados nos dias de hoje com o pomposo nome de “hiperativos”. Após a refeição as duas crianças, uma de cinco e outra de setenta, rumaram para a garagem e foram acabar a brincadeira do polícia sinaleiro. Avô Mene a rigor no seu papel de autoridade e o Cabeça de Ananás a pedalar freneticamente no carro.
- Aiiiii, - gritou o polícia sinaleiro após a passagem dos rodados por cima dos calos.
E continuaram! Até que os “ais” do avô Mene foram substituídos pelos gritos alucinantes do Dois Cus, que obrigaram a uma descida fulminante da Milu à cave. O petiz tinha um galo do tamanho dum capão, e o avô Mene segurava em pânico numa lata de tinta vermelha que, segundo ele, lhe tinha caído da mão e, azar dos azares, acertado nos cornos do pequenito. A versão do Dois Cus era diferente, o polícia sinaleiro tinha-lhe atirado deliberadamente com o objecto à tola, após mais uma passagem por cima dos seus calos. A brincadeira ficou por ali, a verdadeira autoridade mostrou um cartão vermelho ao polícia sinaleiro!  

 

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