Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
A proprietária da Adega Camponesa em Alcabideche nunca mais se iria esquecer do encontro imediato do quinto grau que estava prestes a acontecer, pois trinta anos após relatou o sucedido ao cinquentão Carlos Ponta, como se de uma lenda se tratasse. Tinha estado toda a manhã a montar a mesa para uma refeição de luxo com clientes especiais, onde se destacava à entrada um soberbo peru real vindo directamente de uma quinta nobre da zona do Douro, após emborcar involuntariamente um meio-gordo com a idade de um rei. O bicho envergava o melhor traje para a ocasião e preparava-se para a “noite de núpcias”, onde iria ser trinchado, tal qual uma virgem, pela filha do financiador da real refeição. Contou então que num dia de calor entrou, com o Sol pelas costas, na sua casa de pasto, um demónio com a cara de anjinho.
- Vinha com a boca toda aberta, enorme, parecia o lobo do Capuchinho Vermelho, - disse a senhora, aproximando a cara do velho Carlos Ponta, que lhe sentiu o cheiro a alho e o toque do monstruoso buço.
- Consegui ver-lhe as amígdalas, - reforçou a outra idosa que estava escondida atrás do balcão, deixando sair restos de tremoços que se desencravaram da prótese.
- Pareciam os tomates do meu falecido Júlio, - insistiu a proprietária.
Na cabeça do paçoarcoense Carlos Ponta as memórias já tinham soltado a alucinação da idade, e a cara do Focas com menos trinta e tal anos ocupava agora a porta da entrada do restaurante “Adega Camponesa” em Alcabideche. Mas como os neurónios já estavam com folgas, deu de caras com o Glorinha à janela a varrer a praceta em linha reta até ao café “Iolanda”, e do lado esquerdo até à esquina do Grilo, que estava naquele momento a vender uns charros ao Alice e ao Taka Takata. Porque ainda não tinha idade para poder andar em roda livre com o gangue, o irmão do Ginja só estava autorizado a estar à janela, tal qual a personagem da “Gabriela Cravo e Canela”, que dominava o panorama televisivo da altura. Ali fez tudo o que a adolescência pedia e assistiu a muito mais do que devia. O senhor Carlos Ponta esfregou os olhos e mudou para o sul, mais propriamente Lagos, e deu de caras com uma multidão de peidociclos estacionada à porta de um restaurante. Lá dentro uma dezena de adolescentes seus conhecidos, incluindo ele próprio, comiam marisco à descrição, mesmo tendo as carteiras vazias. Nova convulsão, de novo o Focas, agora quase em cima da ave.
- O peru nunca mais foi o mesmo depois daquela dentada, - exclamou a proprietária, pondo a mão no ombro esquerdo do cliente, carimbando-o com quatro impressões digitais de banha no blaiser, que ele comprara nos indianos do Martim Moniz, mas que insistia ser do Massimo Duti.
Foi de novo levado para o passado que o atormentava, e agora a alucinação também tinha som, um batalhão de peidociclos com o escape livre fugia a todo o gás do restaurante algarvio, deixando para trás uma mesa atestada de cascas de todo o tipo de mariscos e de garrafas vazias dos melhores carrascões da zona e arredores.
- O bicho mesmo depois de assado ainda deu um grito alucinante, - exclamou a outra, deixando agora sair restos de azeitonas, que acertaram no Pontas como cachos de caspa preta.
Foi uma dentada célere, eficaz e previsível. E o velho Pontas sentiu-a, como se fosse ele a ter estado enfeitado para o casamento, em cima de uma mesa, rodeado de rodelas de laranja. O atacante ferrou os dentes com tal força, que levou atrás de si parte das costelas do prato principal, deixando à vista de todos um buraco onde se podia ver claramente ao longe o imponente palácio real no topo da Serra de Sintra. A imagem do Focas ficou gravada como um demónio interior na alma da proprietária, e nunca mais lhe deu sossego, como se podia ver agora, várias décadas depois!
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