A
vida é uma longa viagem com um mapa feito por um idiota, por isso somos sempre
um misto de essência e de circunstância. Os ratas que conseguiam absorver uma
nova personalidade por entre as personagens complexas que os rodeavam, tinham
mais hipóteses de sobreviver no sistema. O Colégio Militar dos anos setenta do
século passado, tal como Hogwarts School, era um espaço educativo muito à
frente no seu tempo, onde a magia acontecia num Laboratório de Línguas. Aqui os
Meninos da Luz eram sujeitos ao “American Language Course” que, tal como nas
cavalariças lá para os lados da Formação, os cavalos, perdão, os “senhores
alunos”, estavam distribuídos por boxes, cada uma equipada com microfone,
auscultadores e gravadores de bobines semeados de botões multicolores. Ao
longe, num estrado com uma consola futurista, estava o professor, que dirigia
as operações, dando início à aula pré-gravada e ouvindo individualmente o
desempenho dos alunos, que eram obrigados a responder à voz vinda de outro
mundo:
-
Good-Morning!
Coro:
Good-Morning!
- How
are you?
Coro:
I’m fine, thank you!
O
“Teacher” tinha um ritual, antes de pôr os auscultadores abria a aba do blêizer, parecendo uma águia a abrir uma asa, e tirava uma caneta de uma resma
que ocupava todo o pano. Iria ser com ela que distribuiria os mais e os menos na
folha com o esquema da posição dos alunos. A vida no Colégio Militar nos
anos setenta era dura, desprovida de sentimentos éticos, com uma justiça sumária que causava duas sensações, o que a
aplicava estremecia de prazer, o que a sofria estremecia de dor. Todas as aulas
decorriam lá para os lados do Zimbório. Todas? Todas não, houve uma turma que
não saiu do Geral das Companhias, o 2º B, cujas aulas eram ministradas por
baixo da soca. Começaram por ser trinta e seis anjinhos fardados de cotim no 1º
B de 1971/72, perdendo sete alminhas para uma nova turma no 2º período, o 1º E,
comandadas pelo Peidão tendo como adjunto o Horrível. A tempestade perfeita
aproximava-se do chefe 191, o 289, o Stratopel, cuja entrada naquele espaço
cheio de pergaminhos era um mistério, uma vez que só possuía meia dúzia de
neurónios, que nunca conseguiram fazê-lo acertar o passo, sendo por isso o alvo
preferido dos biqueiros dos graduados, seria um dos deslocados e iria pôr, umas
semanas mais tarde, um conjunto de psicopatas frente a frente com o Peidão,
numa noite no Geral da Companhia, onde descarregariam todas as suas frustrações
até este cair exausto no chão. Enfim, banalidades da Luz que não deixaram
marcas na maioria, mas que fez com que uma minoria de gente boa ficasse a odiar
o Colégio Militar para sempre. De manhã tinha havido problemas com o
professor de matemática, o Gunga, que
não respeitava a ética do limite. Chegara à formatura junto à sala de
aula, de óculos escuros, impossibilitando o chefe de turma de dar as ordens necessárias
à formatura: “firme”e “siope” (voltado para os colegas), “direita volver” (duas
vezes sozinho), ficar de frente para o professor em sentido, continência,
autorização, mais dois “direito-volver” sozinho, “esquerda volver” para todos,
passo de corrida para a frente da primeira fila e ordem “em frente marche”, ao
mesmo tempo que se deslocava lateralmente para a fila do meio, que recebia a
mesma ordem quando o último da primeira entrasse na sala, seguido de passagem
para a terceira fila, sendo depois o último a entrar, seguido do Gunga. Todos
ficariam em sentido junto às carteiras, até receberem ordem para se sentarem.
Mas o ”firme” não saía, o chefe de turma não conseguia dar a ordem, à sua
frente os colegas riam, atrás de si o Gunga mirava-o do seu metro e noventa,
com um ar imperial.
- Estou a ver que temos festa, -
ameaçou o único professor de matemática que entregava os testes 10 minutos
depois de os recolher.
Tudo correu na perfeição exceto a
entrada. A turma, num ato de suicídio coletivo, continuou a marchar dentro da
sala de aula, fazendo um barulho infernal com as botas. Não tiveram autorização
para se sentarem, ou melhor, a ordem só foi dada depois de o Gunga ter
distribuído abrunhos duplos a toda a turma, que permaneceu sempre em sentido
durante o ato pedagógico.
A
aula que decorria na sala do 2º B era de francês, ministrada pelo “François”,
um ciborgue, um humano equipado com um aparelho auditivo, que acabara de ser
vítima de bulling noutra turma, quando os alunos decidiram só mexer os lábios
na altura da resposta às questões do docente, fazendo-o pensar que a culpa de
não os ouvir era do volume do aparelho, por isso aumentou-o, sendo de imediato
envolvido por uma gritaria, que o obrigou de novo a rodar o botão do volume,
novamente para perto do mínimo. O espaço onde decorria a aula tinha três
varandas, por isso de cada vez que o docente escrevia no quadro, os alunos das
últimas carteiras trocavam de lugar com os das primeiras através das varandas.
Assim tornava-se impossível classificá-los através de perguntas orais,
pois estes não correspondiam ao mapa da distribuição de lugares.
- Lá
para traz, - ordenou ao 200, que cumpriu com todo o brio.
Mas
bastou escrever o “Avoir” no quadro para este voltar à carteira da frente.
No primeiro andar dos claustros o
Moreira gritava desesperado com os alunos que tinham acabado de lhe atacar o
armário, mal abrira a porta, recheado de Bolama:
- Bós sois piores que os ciganos!
Na semana anterior tinham-lhe tirado
os fundos do armário e por isso quando se preparava para iniciar o complemento
do ordenado, já com uma fila de clientes devidamente ordenados, e com distância
de segurança, das bolas de Berlim e dos mil folhas só restava algum açúcar e
umas poucas páginas.
Quando outro professor pôs os auscultadores
para dar início ao American Language Course, um “senhor aluno” aproximou-se do
microfone e gritou:
- Óó Tabiii, chupa aquiiii”.
Mas quem chupou foi o autor da
brincadeira, o Fogaça, várias murraças na carcaça, ao mesmo tempo que sentia o
vibrar dos gritos do professor, uma mistura incompreensível entre português e
inglês, neste caso “amaricano”. De regresso ao estrado apanhou o Elefante a mastigar:
- Cospe para a minha mão a pastilha elástica, - ordenou.
Com o "senhor aluno" em sentido esfregou-a no cabelo.
- Vai para o barbeiro!
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