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315 estórias

Saturday, July 03, 2021

Jogos sem fronteiras

 




O Comandante Guélas

Série Colégio Militar

O Menino da Luz é uma unidade íntegra e única, falar dele é recordar fragmentos, ficções, fantasmas, a vida é constituída por grandes e pequenos afetos. Esta estória vai-nos conduzir de jogo em jogo, inebriando-nos, numa alquímica busca das raízes culturais mais profundas deste espaço único, um local construído por muitos, durante muito tempo. O produto do 664, “La Vache que Rit”, era o motivador do jogo que decorria em simultâneo com os verbos “Être” e “Avoir” debitados pelo professor, triângulos de queijo francês cruzavam o espaço aéreo da sala, e quando acabou, por exaustão do material que já se confundia com o branco das paredes, os atletas fizeram o retorno à calma através de perguntas em voz baixa, que obrigaram o François a aumentar o volume do som da prótese auditiva, altura em que se apercebeu estar a ser vítima de buling, os étudiants passaram para um coro de gritos. Numa das camaratas da terceira companhia, transformada em Cabo Canaveral, o 224 puxava, mais uma vez, tudo o que lhe entupia o nariz, e lançava na vertical o conteúdo amarelado tentando colá-lo ao teto onde, sobe o efeito da gravidade tentava sempre voltar à base, mas que, por razões de densidade e química, transformava-se numa soberba estalactite. Quem se deitasse nos anos setenta do século passado na cama do Fogaça e contemplasse a abóboda celeste via-se transportado, por momentos, para uma galeria nas grutas da serra de Aire e Candeeiros. O jogo mais atrevido, ir até à zona vermelha e trazer uma prova, passou-se nos anos noventa, quando alguém trouxe as estrelas de prata do gabinete do Dito, uma oferta da filha, que lhe iriam ser colocadas nos ombros, e obrigou o Colégio Militar a entrar em “Defcom 1”. Na aula do Feio, cujo tema eram os eternos “Descobrimentos”, um dardo improvisado, uma borracha e uma agulha, cruzava o espaço aéreo, e tinha como alvo a parede contrária onde o lançador pretendia espetá-lo. Mas por razões não esclarecidas o objecto evaporara-se e todos tentavam encontra-lo, incluindo o 120 em cuja cabeça ele se espetara.

- Miolos no teto, miolos no teto, miolos no teto, oeh, oeh, oeh, oeh, ooh, – gritava-se algures numa sala do primeiro andar do Zimbório, seguido de um “BUM” que fez estremecer o local.

O jogo começara com uma manta e quase ia vitimando o Bola quando umas das pegas se rasgou na fase de aterragem. Por isso o Pencas não quis arriscar, trazendo desta vez duas mantas e um pássaro mais maneirinho, o Mosca, que foi arremessado com vigor conseguindo deixar no teto uma pegada estilo Armstrong.

Bufar-se com estrondo na altura em que o carrasco-Mor da companhia dera início à sessão de tortura, uma brincadeira das noites frias de inverno, mais conhecida por “Firmeza”, não era aconselhável de todo, mas a tripa do Leitão traiu-o, e o petardo deu a sensação de estarem no São João, provocando a risota geral, uma humilhação intolerável para os adolescentes com estrelas aos ombros armados em rufias, e alguns com tendência para a psicopatia. Houve uma imediata distribuição de biqueiros e pena sumária para o prevaricador. E a festa brava prosseguiu pela noite dentro!

- Façam pela vida, - aconselhou o professor Oliveira, mais conhecido como Baco.

A inspeção ao andamento dos trabalhos manuais, que teimavam em não sair da fase da bola de barro, porque de cada vez que virava as costas o cinzeiro do 69 voltava à forma primitiva, e tudo graças aos murros dos colegas no material, desesperava o docente, que não se apercebia de outro jogo que decorria em simultâneo, o arremesso de barro contra a parede branca, que mais parecia um cenário de guerra polvilhado de estilhaços de granadas.

O tempo era de “Estudo”, o último do dia, e o professor resolvera faltar, obrigando o Chefe da Turma, o Peidão, a manter em silêncio uma turma de trinta e dois macaquinhos com bicho carpinteiro, e se não o fizesse o oficial de dia, o Aparício, um meia-leca com uma tabuleta pregada na farda a dizer “comandos”, ameaçara-o fazer-lhe a folha por “incompetência”. E para agravar a situação o 289, Stratopel, que, além do bicho carpinteiro, tinha também graves problemas nos carretos, mas nestes tempos muitos progenitores pensavam que o Colégio Militar era o local indicado para curar riscos nos cromossomas, resolvera desestabilizar ainda mais a turma. Foi o alvo de um jogo de “Bullying Farmacêutico”, sendo imobilizado no estrado para que cada camarada lhe conseguisse despejar, sem desperdiçar o produto, o conteúdo das cápsulas de óleo de fígado de bacalhau, o complemento alimentar da moda e presente na maioria das carteiras. Entrou Stratopel, saiu Texugo!

A estória acaba com a avó do Boinga que, devido às modernices, instalar um telefone público no recinto, recebeu um telefonema colegial a ameaçarem raptar o seu bambizinho. Contactou de imediato o Dito que decretou o alerta geral.


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