O Comandante Guélas
Quando foi libertado em 1463 de uma prisão no
norte de África, o senhor Pêro cumpriu a promessa que fizera à Virgem aquando
da sua visita ao calabouço, erigir uma ermida a Santa Maria da Luz, que mais
tarde se transformou em Igreja de Nossa Senhora da Luz, no final da Azinhaga da
Luz, de quem sobe. Durante muitos anos passaram para baixo e para cima o Cabeça
de Mula, ou Trinta e Um, cavalo da GNR rejeitado para o ensino de homens mas
apto para as aulas de equitação dos Meninos da Luz, o Quadrado, a Nono, o
Alfage, a Rata, o Eusébio, todo branco (nomes inadmissível nestes tempos de todas as histéricas), o Patacho, o Vapor, a Quirina, a
Tangerina, por isso as pedras da calçada estão impregnadas de História. Esta
estória passa-se no tempo em que o páteo do Pavilhão de Desenho e do Pavilhão
de Ciências Naturais era um estaleiro de obras para o empreiteiro, e uma zona
de multiatividades para os Meninos da Luz. Porque o tempo no Colégio Militar é
relativo e nada está realmente no passado, é sempre possível ir recuperar
estórias que há muito se consideravam perdidas nas memórias. Durante o lusco
fusco daquele dia da década de setenta, que tinha sido solarengo, o 120, o 125,
o 191 e o 667 decidiram ir brincar para o parque aventura, iniciando a
jornada com uma mija coletiva para uma lata de tinta vazia com capacidade para
cinco litros, que quase ficou atestada, ao mesmo tempo que consumiam uns cigarritos. Começaram por uma atividade inofensiva,
fizeram um balancé com uma tábua tão grande que os que subiam iam alto, e como
ninguém queria ficar parado, puseram-se dois em cada ponta. Mas Menino da Luz
que se prese, levaram a brincadeira a outros patamares: o 667 abandonou o barco
quando estava em baixo, e ficou a ver o 120 e o 125 a descerem à velocidade do
som e o 191 a subir como uma bala humana. A partir daqui a atividade de balancé
teve variantes, desde um contra um em pé, até que o Horrível se despencou e
caiu de peida a milímetros de um prego, objeto que estava presente em quase
todas as madeiras. Quando o 125 resolveu fazer circular o balancé, todos voaram
quando este perdeu o apoio. Seguiu-se uma luta de calhaus, com proteção de
trincheiras. Mas as atividades radicais não ficaram por aqui. Desafiaram-se a
passar por um parapeito estreito até um jardim suspenso no pavilhão das aulas
no pateo das osgas, que dava para a azinhaga. Noutro canto da Luz, no exterior do
Colégio Militar, o senhor Júlio, nome fictício, acabara de sair de casa
envergando o seu melhor fato de cor azul cueca. A Palmira, sopeira numa das
casas abastadas de Carnide, merecia o empenho deste seu admirador, agora que se
aproximavam as festas populares de verão. O Júlio ia formoso pela verdura,
levando na mão um ramo colorido, enquanto que a uns metros acima o 120 já tinha
ultrapassado o desafio e incentivava agora o camarada 125 a alcançar o jardim
sem saída, enquanto que o 191 esperava pela sua vez. Quanto ao Júlio levava na
cabeça a formusura da sua paixão, os cabelos de ouro e a cinta fina da rapariga
que lhe arrebitavam o cacete, ao mesmo tempo que o Horrível teve de ser
amparado pelo Cabedo para não cair para os lados da Azinhaga. O Peidão iniciou
a travessia quando o Júlio se cruzou com ele uns metros abaixo. De repente o
céu desfez-se em água, que bateu com violência na calçada, seguindo-se um grito
lancinante levado por uma tempestade inesperada, veloz e aterradora, como se
fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro do Júlio. Tudo ficou
calado, o vento, o homem e os rapazes. O Loira despejara o conteúdo da lata de
tinta sobre o homem, vestido com um fato azul cueca. A figura esguia do Don
Ruan da Azinhada da Luz cheirava-se sofregamente, e o que sentia nem ele
próprio queria sentir, muito menos quereria a Palmira dos seus sonhos. Os
olhares cruzaram-se, descruzaram-se e recruzaram-se. A vítima estava com os
olhos perdidos na calçada, com o pensamento focado no maior calhau das
redondezas. O 120, o 125 e o 191 aperceberam-se e anteciparam-se. O Júlio
transformara-se num ser caótico, depauperado, destruído, de sangue frio, estava
num vácuo que engolia tudo à sua volta. O silêncio era insuportável. Os rapazes
imaginaram-se a sentir o calhau nas costas, por isso pediram tempo para
conseguirem castigar o infrator, ao mesmo tempo que regressavam em passo de
corrida. O Júlio ainda acreditou por momentos que fosse feita justiça, com a
entrega do prevaricador, mas tudo não passou de uma ilusão, pois quando os
Meninos da Luz se viram de novo na segurança do pateo chamaram-lhe todos os nomes e
fugiram em direção ao geral das companhias, não sem antes sentirem no ar o
arremesso do pedregulho. A vítima acompanhou-os pelo lado de fora, e quando
passaram pela porta da Ínfia, uma vez que tinham visto que pelo outro lado vinha em sua direção o
vigilante Speedy Gonçalez, o Chico Porteiro tentava acalmar a criatura possuída
pelo apocalipse, que trajava um elegante fato azul cueca, com um cheiro intenso
a mijo!
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