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315 estórias

Thursday, August 13, 2020

Tempestade na Azinhaga da Luz

 

O Comandante Guélas

Série Colégio Militar

Quando foi libertado em 1463 de uma prisão no norte de África, o senhor Pêro cumpriu a promessa que fizera à Virgem aquando da sua visita ao calabouço, erigir uma ermida a Santa Maria da Luz, que mais tarde se transformou em Igreja de Nossa Senhora da Luz, no final da Azinhaga da Luz, de quem sobe. Durante muitos anos passaram para baixo e para cima o Cabeça de Mula, ou Trinta e Um, cavalo da GNR rejeitado para o ensino de homens mas apto para as aulas de equitação dos Meninos da Luz, o Quadrado, a Nono, o Alfage, a Rata, o Eusébio, todo branco (nomes inadmissível nestes tempos de todas as histéricas), o Patacho, o Vapor, a Quirina, a Tangerina, por isso as pedras da calçada estão impregnadas de História. Esta estória passa-se no tempo em que o páteo do Pavilhão de Desenho e do Pavilhão de Ciências Naturais era um estaleiro de obras para o empreiteiro, e uma zona de multiatividades para os Meninos da Luz. Porque o tempo no Colégio Militar é relativo e nada está realmente no passado, é sempre possível ir recuperar estórias que há muito se consideravam perdidas nas memórias. Durante o lusco fusco daquele dia da década de setenta, que tinha sido solarengo, o 120, o 125, o 191 e o 667 decidiram ir brincar para o parque aventura, iniciando a jornada com uma mija coletiva para uma lata de tinta vazia com capacidade para cinco litros, que quase ficou atestada, ao mesmo tempo que consumiam uns cigarritos. Começaram por uma atividade inofensiva, fizeram um balancé com uma tábua tão grande que os que subiam iam alto, e como ninguém queria ficar parado, puseram-se dois em cada ponta. Mas Menino da Luz que se prese, levaram a brincadeira a outros patamares: o 667 abandonou o barco quando estava em baixo, e ficou a ver o 120 e o 125 a descerem à velocidade do som e o 191 a subir como uma bala humana. A partir daqui a atividade de balancé teve variantes, desde um contra um em pé, até que o Horrível se despencou e caiu de peida a milímetros de um prego, objeto que estava presente em quase todas as madeiras. Quando o 125 resolveu fazer circular o balancé, todos voaram quando este perdeu o apoio. Seguiu-se uma luta de calhaus, com proteção de trincheiras. Mas as atividades radicais não ficaram por aqui. Desafiaram-se a passar por um parapeito estreito até um jardim suspenso no pavilhão das aulas no pateo das osgas, que dava para a azinhaga. Noutro canto da Luz, no exterior do Colégio Militar, o senhor Júlio, nome fictício, acabara de sair de casa envergando o seu melhor fato de cor azul cueca. A Palmira, sopeira numa das casas abastadas de Carnide, merecia o empenho deste seu admirador, agora que se aproximavam as festas populares de verão. O Júlio ia formoso pela verdura, levando na mão um ramo colorido, enquanto que a uns metros acima o 120 já tinha ultrapassado o desafio e incentivava agora o camarada 125 a alcançar o jardim sem saída, enquanto que o 191 esperava pela sua vez. Quanto ao Júlio levava na cabeça a formusura da sua paixão, os cabelos de ouro e a cinta fina da rapariga que lhe arrebitavam o cacete, ao mesmo tempo que o Horrível teve de ser amparado pelo Cabedo para não cair para os lados da Azinhaga. O Peidão iniciou a travessia quando o Júlio se cruzou com ele uns metros abaixo. De repente o céu desfez-se em água, que bateu com violência na calçada, seguindo-se um grito lancinante levado por uma tempestade inesperada, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro do Júlio. Tudo ficou calado, o vento, o homem e os rapazes. O Loira despejara o conteúdo da lata de tinta sobre o homem, vestido com um fato azul cueca. A figura esguia do Don Ruan da Azinhada da Luz cheirava-se sofregamente, e o que sentia nem ele próprio queria sentir, muito menos quereria a Palmira dos seus sonhos. Os olhares cruzaram-se, descruzaram-se e recruzaram-se. A vítima estava com os olhos perdidos na calçada, com o pensamento focado no maior calhau das redondezas. O 120, o 125 e o 191 aperceberam-se e anteciparam-se. O Júlio transformara-se num ser caótico, depauperado, destruído, de sangue frio, estava num vácuo que engolia tudo à sua volta. O silêncio era insuportável. Os rapazes imaginaram-se a sentir o calhau nas costas, por isso pediram tempo para conseguirem castigar o infrator, ao mesmo tempo que regressavam em passo de corrida. O Júlio ainda acreditou por momentos que fosse feita justiça, com a entrega do prevaricador, mas tudo não passou de uma ilusão, pois quando os Meninos da Luz se viram de novo na segurança do pateo chamaram-lhe todos os nomes e fugiram em direção ao geral das companhias, não sem antes sentirem no ar o arremesso do pedregulho. A vítima acompanhou-os pelo lado de fora, e quando passaram pela porta da Ínfia, uma vez que tinham visto  que pelo outro lado vinha em sua direção o vigilante Speedy Gonçalez, o Chico Porteiro tentava acalmar a criatura possuída pelo apocalipse, que trajava um elegante fato azul cueca, com um cheiro intenso a mijo!

 


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