O Comandante Guélas
Série Colégio Militar
Quarenta anos após a saída o curso de 1971/1978 regressou às origens. O Colégio Militar
sempre foi um paradoxo, porque admitia a possibilidade de existirem alunos nas
suas margens, que eram diariamente confrontados com uma realidade mais rica que
as restritivas prescrições, por isso tinham a capacidade para inquietar este
espaço dinâmico, em que o posicionamento de uns confrontava o de outros. O
Menino da Luz não mudou muito desde o tempo das cavernas, por isso o Colégio
Militar não é tão ambíguo, volátil, complexo e incerto quanto as histéricas
gritam, pois sempre que as condições mudaram, eles ajustaram-se, por serem os
únicos que continuam a ter o futuro no bolso. Apesar de cataclismos, mudanças e
progresso, são sempre pequenas estórias que mudam a História, mesmo que pintem
o mundo com sombras, dizemos sempre para não se afastarem da Luz, porque na
escuridão de lá nunca houve dragões, havia descoberta, havia possibilidades,
havia muita liberdade. Somos fruto do que vimos, do que vivemos e do que
aprendemos.
- “Não salte,
não salte, que já o vão aí buscar” – gritou o chefe da secretaria, que fazia
parte da força de cerco.
Com ele estavam
soldados da formação, vigilantes e rondas, atrás de um jovem Coelho com a
alcunha de Cebola, e o estatuto de meliante. Os factos de uma estória talvez só
se transformem em “factos” depois da estória acabar, porque no Colégio Militar
aconteceu sempre o que tinha de acontecer!
Algures no
Alentejo profundo, no Ano da Graça de dois mil e dezoito, um chaparro qualquer
conta de novo a estória que lhe mudou para sempre a vida, ao mesmo tempo que
engole mais um copo de tinto.
- Eu vi um
fantasma, foi nos anos setenta do século passado lá para os lados da capital,
quando trabalhava como ajudante nas cavalariças do Colégio Militar.
A vítima
involuntária do Cebola jurava a pé juntos ter-se cruzado, numa manhã de
nevoeiro, na Azinhaga da Luz, enquanto levava um cavalo para os edifícios da
Formação, não com o Desejado, mas sim com uma alma do outro mundo que se
deslocava num galope rasgado, “sem pôr os pés no chão”, e com a cor branca da
morte. Já não era a primeira vez que o 360 fazia uma visita de cortesia ao bar
dos oficiais no Zimbório, acompanhado pelos restantes membros do gangue oficial
do curso de 1971, o 240 e o 661, e por vezes alguns mercenários, onde vigiavam,
penetravam, alambazavam e retiravam, tudo em segurança. Mas desta vez foi
sozinho, era fim de semana, os meninos de coro tinham ido para casa, e
precisava desesperadamente duma dose de tabaco e bolama. Quando se preparava
para introduzir a chave na fechadura, uma novidade pois entrava sempre pela
janela, apercebeu-se que o funcionário ainda estava lá dentro, o que o obrigou
a fazer uma retirada estratégica para o primeiro andar, onde ficou de vigia,
atento às movimentações do inimigo. Como o tempo de espera foi longo, adormeceu
embalado pela imagem da Rosa, ambos entregues aos prazeres da carne sob o
efeito dos produtos desviados da manjedoura dos cães. Foi acordado bruscamente
pelo barulho de uma porta a fechar-se. O trabalhador estava de saída! Silencioso
como um coelho, aproximou-se sorrateiramente do bar, que para ele já era uma
toca, e entrou. Dirigiu-se de imediato ao balcão, decidido a apropriar-se
ilicitamente do tabaco, que sabia estar guardado nas gavetas, alguns
chocolates, sumos e bebidas espirituosas, para serem consumidos solitariamente
ao final do dia. De repente ouviu um barulho de chaves a penetrar a frio na
fechadura e os tomates caíram-lhe ao chão. O Coelho adolescente entrara em
pânico! Se o destino o tivesse protegido, o roedor teria ficado quietinho atrás
do balcão, porque o funcionário ia somente buscar o guarda chuva que estava à
entrada da sala. Viu um vulto, através do vidro fosco que protegia o hall do
vento, a saltar do balcão e também ele ficou com os ditos junto aos pés. Por
breves momentos o silêncio deu-lhes a lentidão da eternidade! O intruso já não
podia fugir por onde entrara, por isso correu para a casa de banho, decidido a
sair pela janela por onde habitualmente entrava. Abriu-a, mas apercebeu-se que
o caçador abrira outra, para tentar identifica-lo! Fechou-a, aguardando pela
próxima movimentação do inimigo, que aproveitara a pausa para dar um alerta
geral. Sentiu-o entrar na zona, e então saltou e fugiu para o edifício do 1º e
2º anos. À medida que progredia na fuga envolto numa conjugação de sentimentos
bipolares, e espantava todas as vozes da cabeça, o Cebola tentava ter uma visão
no horizonte, pois sabia que os perseguidores não estavam interessados em ouvir
as suas razões, por isso foi-se tornando agudamente consciente das
condicionantes agora impostas. Quando a porta blindada soldada por anos de
ferrugem, que dava acesso ao sótão onde os funcionários guardavam peças soltas
do fardamento, lhe apareceu pela frente, ele provou porque é que no Colégio
Militar se podia fazer muito com muito pouco, especialmente quando os Meninos
da Luz se encontravam desesperançados: derrubou o obstáculo com uma força
interior maior num abrir e fechar de olhos, e nunca ninguém compreendeu como, ato
que seria elogiado mais tarde pelo Dario no Conselho de Guerra formado para a
ocasião:
- Este aluno
merece um 18 a Educação Física!
O Cebola sabia
que a sua posição vital não era a normal, por isso manteve a velocidade
característica de um roedor perseguido, mesmo estando agora no topo de um telhado
que parecia mais uma pista de esqui tal era a quantidade de musgo, com o Largo
da Luz lá em baixo, à procura de uma saída. E ela apareceu, mas em forma de uma
clarabóia do Portugal dos Pequeninos. O Coelho mergulhou de pés, mas a bilha
encravou-o a meio caminho. Sabia que precisava de resistir a essa realidade
precária, tinha de repensar a estratégia, o inimigo aproximava-se, sentia-lhes
o lado disfuncional da alma por terem sido incomodados num fim de semana que desejavam
de tédio. Abanou-se com violência. O ruído de tudo a desmoronar à sua volta
tornou a queda lenta, sentiu a mescla de texturas do material que o
acompanhava, e quando parou estava agarrado a uma tábua, envolto no pó branco
do teto da sala de aula que acabara de colapsar. O instinto de sobrevivência,
naquele momento de pausa, manteve-lhe a lucidez, mesmo estando pendurado.
Balançou-se e quando abriu a mão sabia que uma falha seria fatal como o
destino. Caiu num parapeito e saiu pela janela. Em baixo, muito em baixo só a
Azinhaga da Luz estava vazia. À sua volta não havia gente estranha, mas uma
gente que, por circunstâncias diferentes, foi obrigada a parar. A mente do
jovem Coelho recusava-se a acreditar no que acontecera. Por isso graças a um
impulso visceral, físico, avesso a planos, deixou os instintos tomarem conta
dele. A divergência do roedor e dos soldados era, tal como na Alice do País das
Maravilhas, mais de grau e forma do que de substância.
- “Não salte,
não salte, que já o vão aí buscar” – gritou o chefe da secretaria, que fazia
parte da força de cerco.
Como convivia
diariamente com demónios, e isso representava um hino à amizade, atirou-se. A
dor da queda foi atenuada por uma injeção de vida que o resgatou de imediato.
Por breves segundos viu-se no refeitório da primeira companhia, e sentiu o
vento do pedaço de puré que o 136 arremessara contra o 151, mas apanhara o
funcionário pelo caminho, que gritara:
- Quem é que me
acertou com a argamassa?
O protesto do
Patronilha fê-lo sentir de novo o bafo do esquadrão de magalas que farejavam o
seu sangue, por isso desapareceu como o vento pela Azinhaga da Luz abaixo!
Cruzou-se com o jovem magala que puxava um cavalo e só parou junto a uma das
janelas da quarta companhia. Viu o Primo Orelhas a fazer a
barba. Gritou, mas reparou que não conseguia emitir som, perdera a ordem
sintática. Atingira os limites da existência, existia mas estava com pouca
vontade para tal, o seu brilho desaparecera, tinha nódoas de sombra e poeira no
buço. Sentiu-se Bocage, a seca de poeta de quem o Ferreirinha gostava muito:
- Já Cebola não
sou!
Não sabia que no
seguimento do alerta lançado a partir dos claustros após ter sido detetado o
intruso no bar dos cães, o Oficial de Dia convocara pelo microfone todos os
alunos que tinham ficado naquele fim-de-semana chuvoso no Colégio Militar, para
fazer a contagem. Quando o 200 ouviu o som de alguém a bater desesperado numa
janela, viu o 260, cheio de lama e ensopado. Pediu ajuda e conseguiram trazer o
Coelho para o conforto das latrinas, onde o ajudaram a lavar-se e a vestir o
pijama. A partir daqui deu-se início às conversações para a entrega voluntária
do meliante. O orgulho colegial ficou intacto quando se confirmou que o artista
era da casa e não de fora, porque caso isso acontecesse teria de ser chamada a
PJ Militar, que seria incapaz de compreender algo que o comum dos Meninos da
Luz entendia. Teve uma pena institucional leve e uma “admoestação” severa do
gangue, por não ter conseguido cumprir a missão, e privado assim a Associação
dos Recoletores da Luz de manter ativo o posto de recolha!
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