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315 estórias

Friday, April 06, 2018

O Milagre da Luz







O Comandante Guélas

Série Colégio Militar



Quarenta anos após a saída o curso de 1971/1978 regressou às origens. O Colégio Militar sempre foi um paradoxo, porque admitia a possibilidade de existirem alunos nas suas margens, que eram diariamente confrontados com uma realidade mais rica que as restritivas prescrições, por isso tinham a capacidade para inquietar este espaço dinâmico, em que o posicionamento de uns confrontava o de outros. O Menino da Luz não mudou muito desde o tempo das cavernas, por isso o Colégio Militar não é tão ambíguo, volátil, complexo e incerto quanto as histéricas gritam, pois sempre que as condições mudaram, eles ajustaram-se, por serem os únicos que continuam a ter o futuro no bolso. Apesar de cataclismos, mudanças e progresso, são sempre pequenas estórias que mudam a História, mesmo que pintem o mundo com sombras, dizemos sempre para não se afastarem da Luz, porque na escuridão de lá nunca houve dragões, havia descoberta, havia possibilidades, havia muita liberdade. Somos fruto do que vimos, do que vivemos e do que aprendemos.
- “Não salte, não salte, que já o vão aí buscar” – gritou o chefe da secretaria, que fazia parte da força de cerco.
Com ele estavam soldados da formação, vigilantes e rondas, atrás de um jovem Coelho com a alcunha de Cebola, e o estatuto de meliante. Os factos de uma estória talvez só se transformem em “factos” depois da estória acabar, porque no Colégio Militar aconteceu sempre o que tinha de acontecer!
Algures no Alentejo profundo, no Ano da Graça de dois mil e dezoito, um chaparro qualquer conta de novo a estória que lhe mudou para sempre a vida, ao mesmo tempo que engole mais um copo de tinto.
- Eu vi um fantasma, foi nos anos setenta do século passado lá para os lados da capital, quando trabalhava como ajudante nas cavalariças do Colégio Militar. 
A vítima involuntária do Cebola jurava a pé juntos ter-se cruzado, numa manhã de nevoeiro, na Azinhaga da Luz, enquanto levava um cavalo para os edifícios da Formação, não com o Desejado, mas sim com uma alma do outro mundo que se deslocava num galope rasgado, “sem pôr os pés no chão”, e com a cor branca da morte. Já não era a primeira vez que o 360 fazia uma visita de cortesia ao bar dos oficiais no Zimbório, acompanhado pelos restantes membros do gangue oficial do curso de 1971, o 240 e o 661, e por vezes alguns mercenários, onde vigiavam, penetravam, alambazavam e retiravam, tudo em segurança. Mas desta vez foi sozinho, era fim de semana, os meninos de coro tinham ido para casa, e precisava desesperadamente duma dose de tabaco e bolama. Quando se preparava para introduzir a chave na fechadura, uma novidade pois entrava sempre pela janela, apercebeu-se que o funcionário ainda estava lá dentro, o que o obrigou a fazer uma retirada estratégica para o primeiro andar, onde ficou de vigia, atento às movimentações do inimigo. Como o tempo de espera foi longo, adormeceu embalado pela imagem da Rosa, ambos entregues aos prazeres da carne sob o efeito dos produtos desviados da manjedoura dos cães. Foi acordado bruscamente pelo barulho de uma porta a fechar-se. O trabalhador estava de saída! Silencioso como um coelho, aproximou-se sorrateiramente do bar, que para ele já era uma toca, e entrou. Dirigiu-se de imediato ao balcão, decidido a apropriar-se ilicitamente do tabaco, que sabia estar guardado nas gavetas, alguns chocolates, sumos e bebidas espirituosas, para serem consumidos solitariamente ao final do dia. De repente ouviu um barulho de chaves a penetrar a frio na fechadura e os tomates caíram-lhe ao chão. O Coelho adolescente entrara em pânico! Se o destino o tivesse protegido, o roedor teria ficado quietinho atrás do balcão, porque o funcionário ia somente buscar o guarda chuva que estava à entrada da sala. Viu um vulto, através do vidro fosco que protegia o hall do vento, a saltar do balcão e também ele ficou com os ditos junto aos pés. Por breves momentos o silêncio deu-lhes a lentidão da eternidade! O intruso já não podia fugir por onde entrara, por isso correu para a casa de banho, decidido a sair pela janela por onde habitualmente entrava. Abriu-a, mas apercebeu-se que o caçador abrira outra, para tentar identifica-lo! Fechou-a, aguardando pela próxima movimentação do inimigo, que aproveitara a pausa para dar um alerta geral. Sentiu-o entrar na zona, e então saltou e fugiu para o edifício do 1º e 2º anos. À medida que progredia na fuga envolto numa conjugação de sentimentos bipolares, e espantava todas as vozes da cabeça, o Cebola tentava ter uma visão no horizonte, pois sabia que os perseguidores não estavam interessados em ouvir as suas razões, por isso foi-se tornando agudamente consciente das condicionantes agora impostas. Quando a porta blindada soldada por anos de ferrugem, que dava acesso ao sótão onde os funcionários guardavam peças soltas do fardamento, lhe apareceu pela frente, ele provou porque é que no Colégio Militar se podia fazer muito com muito pouco, especialmente quando os Meninos da Luz se encontravam desesperançados: derrubou o obstáculo com uma força interior maior num abrir e fechar de olhos, e nunca ninguém compreendeu como, ato que seria elogiado mais tarde pelo Dario no Conselho de Guerra formado para a ocasião:
- Este aluno merece um 18 a Educação Física!
O Cebola sabia que a sua posição vital não era a normal, por isso manteve a velocidade característica de um roedor perseguido, mesmo estando agora no topo de um telhado que parecia mais uma pista de esqui tal era a quantidade de musgo, com o Largo da Luz lá em baixo, à procura de uma saída. E ela apareceu, mas em forma de uma clarabóia do Portugal dos Pequeninos. O Coelho mergulhou de pés, mas a bilha encravou-o a meio caminho. Sabia que precisava de resistir a essa realidade precária, tinha de repensar a estratégia, o inimigo aproximava-se, sentia-lhes o lado disfuncional da alma por terem sido incomodados num fim de semana que desejavam de tédio. Abanou-se com violência. O ruído de tudo a desmoronar à sua volta tornou a queda lenta, sentiu a mescla de texturas do material que o acompanhava, e quando parou estava agarrado a uma tábua, envolto no pó branco do teto da sala de aula que acabara de colapsar. O instinto de sobrevivência, naquele momento de pausa, manteve-lhe a lucidez, mesmo estando pendurado. Balançou-se e quando abriu a mão sabia que uma falha seria fatal como o destino. Caiu num parapeito e saiu pela janela. Em baixo, muito em baixo só a Azinhaga da Luz estava vazia. À sua volta não havia gente estranha, mas uma gente que, por circunstâncias diferentes, foi obrigada a parar. A mente do jovem Coelho recusava-se a acreditar no que acontecera. Por isso graças a um impulso visceral, físico, avesso a planos, deixou os instintos tomarem conta dele. A divergência do roedor e dos soldados era, tal como na Alice do País das Maravilhas, mais de grau e forma do que de substância.
- “Não salte, não salte, que já o vão aí buscar” – gritou o chefe da secretaria, que fazia parte da força de cerco.
Como convivia diariamente com demónios, e isso representava um hino à amizade, atirou-se. A dor da queda foi atenuada por uma injeção de vida que o resgatou de imediato. Por breves segundos viu-se no refeitório da primeira companhia, e sentiu o vento do pedaço de puré que o 136 arremessara contra o 151, mas apanhara o funcionário pelo caminho, que gritara:
- Quem é que me acertou com a argamassa?
O protesto do Patronilha fê-lo sentir de novo o bafo do esquadrão de magalas que farejavam o seu sangue, por isso desapareceu como o vento pela Azinhaga da Luz abaixo! Cruzou-se com o jovem magala que puxava um cavalo e só parou junto a uma das janelas da quarta companhia. Viu o Primo Orelhas a fazer a barba. Gritou, mas reparou que não conseguia emitir som, perdera a ordem sintática. Atingira os limites da existência, existia mas estava com pouca vontade para tal, o seu brilho desaparecera, tinha nódoas de sombra e poeira no buço. Sentiu-se Bocage, a seca de poeta de quem o Ferreirinha gostava muito:
- Já Cebola não sou!
Não sabia que no seguimento do alerta lançado a partir dos claustros após ter sido detetado o intruso no bar dos cães, o Oficial de Dia convocara pelo microfone todos os alunos que tinham ficado naquele fim-de-semana chuvoso no Colégio Militar, para fazer a contagem. Quando o 200 ouviu o som de alguém a bater desesperado numa janela, viu o 260, cheio de lama e ensopado. Pediu ajuda e conseguiram trazer o Coelho para o conforto das latrinas, onde o ajudaram a lavar-se e a vestir o pijama. A partir daqui deu-se início às conversações para a entrega voluntária do meliante. O orgulho colegial ficou intacto quando se confirmou que o artista era da casa e não de fora, porque caso isso acontecesse teria de ser chamada a PJ Militar, que seria incapaz de compreender algo que o comum dos Meninos da Luz entendia. Teve uma pena institucional leve e uma “admoestação” severa do gangue, por não ter conseguido cumprir a missão, e privado assim a Associação dos Recoletores da Luz de manter ativo o posto de recolha!

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