Comandante Guélas
Série Colégio Militar
O Colégio Militar sempre foi uma comunidade maior
do que o território onde se inseria. Por isso há portas que se fecham para
sempre e outras que se abrem em lugares inesperados. O que se conta aqui é uma
estória curta e antiga que só agora se liberta dos seus sótãos sombrios, uma
viagem no tempo capaz de nos descarnar emoções e de nos fazer ouvir sussurros a
sair das linhas. As aventuras colegiais são intemporais. Por isso o desabafo do
Semita para alguém da arraia miúda, “Psché moço, num monte de esterco, fazes
nódoa”, contrastava com a deferência do Menau para este aluno especial, que
entrara excepcionalmente para o 5º ano do Liceu:
- Vossa Alteza, dá licença que mande sentar?
O Rei D. Carlos I, com 4 anos de idade, foi nomeado em
1868 Comandante de Batalhão honorário. O príncipe Real D. luís Filipe foi nomeado para o mesmo cargo em 1893. O Craveiro Lopes sempre se opôs à entrada do Agapito no Colégio Militar, queria que o espaço fosse exclusivo dos filhos dos republicanos, evitando assim a infiltração dos monárquicos. Enganou-se, como todos aqueles que quiseram manipular os indomáveis da Luz. O 97 de 1960 ficou para a história do Colégio
Militar como aquele que conseguiu a classificação mais alta na disciplina de
Português ministrada por este docente com sotaque do Porto, calças apertadas a
meio da barriga e um contínuo mascar de tabaco, alternado com soberbas cuspidelas
para dentro da gaveta da secretária. Com o Agapito entrou também um irmão, para
o 3º ano, que recebeu o número 80. De início a família quis inscreve-lo no 6º
ano do Liceu, mas a direcção colegial foi de opinião faze-lo recuar um ano para
se adaptar ao sistema. O primeiro embate deste aluno especial deu-se quando viu
a pedagogia da instituição a funcionar em pleno. O Semita punha ordem numa
turma barulhenta, distribuindo pauladas com o ponteiro, à medida que gritava:
- É gado, é gado!
O 97 depressa mostrou que nunca iria ser
contemplado com qualquer tipo de posto comando, a não ser o do país caso o
regime mudasse. Nunca se atreveu a comer o reforço da manhã, a refeição que
punha à prova o “ardor guerreiro” dos estudantes, que consistia numa corrida
caótica em direção a um cesto geralmente cheio de pão com marmelada, onde mergulhava
toda a turbe alucinada que saia em debandada da sala de aula após o toque da
corneta, pondo em fuga os funcionários que a tinham trazido. Destas molhadas
saíram os oficiais mais condecorados do Exército Português, excepto o Agapito
que só teve direito a umas poucas caricas por causa da cor do seu sangue. No 6º
ano o 97 não cumpriu os requisitos mínimos académicos, nem em fazer cábulas era
competente, e por isso teve de repetir o ano e esforçar-se para não ter novo
percalço. No 7º ano ganhou uma estrela, ter um herdeiro abaixo desta graduação era
mau demais para o aspirante à Coroa, e deram-lhe o cargo de “Relações
Exteriores”, que nunca ninguém soube para que servia. Por não ter deixado muito
rasto na Luz, a estória acaba aqui. Foi abatido ao Batalhão Colegial no dia 31
de março de 1964 a pedido da família, porque se descobrira que o Agapito só
tinha sangue para reinar no país, e não para estudar no Colégio Militar, onde a
prestação académica era pouco abonatória e pouco substantiva. Um segundo chumbo
significava uma expulsão, mais uma nódoa que a Dinastia não iria suportar.
No comments:
Post a Comment