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315 estórias

Thursday, March 27, 2008

O Bicho da Fruta (Triologia) - II

                           Camarada Choco
                                   A maldição dos bichanos

                                               Aventura 58

- Vocês estão todas com caras de cú e não é por causa do Bicho da Fruta, - disse a Proprietária entrando sem bater, como mandavam as suas regras de boa-educação, nas salas. – Mas eu como sou vossa amiga tenho aqui a cura, - e mostrou um “pilhão” transformado em “confessionário”. – Podem depositar nesta caixa de cartão as vossas mágoas, que eu hei-de dar-lhes andamento, como faço neste espaço. Vou pô-lo à entrada da minha quinta, junto ao cagadouro da Sala dos Quiabões.
Mas não pôs só uma caixa, montou três, uma para plásticos e outra de esmolas, sendo esta a maior e de cor azul. Debaixo das saias da mesa arranjou um lugar para o Fantasma da Cerci, uma espécie de câmara de filmar móvel, que lhe fazia sempre o relatório das ocorrências ao final do dia. Mas a Escola estava inquieta. Junto aos Serviços Administrativos, a falar com a nova funcionária-escrava, via-se uma silhueta estranha, com uma cabeça que parecia um ovo cozido.
- Um rabo ao balcão da Dona Sãozinha?!! – Interrogou-se a Dona Pilca, que tinha deixado os óculos na mesa, em cima de um conjunto de “abafa-palhacinhos”.
No fundo do corredor que dá acesso às entranhas da Escola para Desaparafusados, o Camarada Choco estava com um olhar lúdico sobre a realidade daqueles Aparafusados, mostrando a sua perspicácia para retratar a ruralidade daqueles que o tentavam, em vão, reeducar. O horrível mundo de visões prepotentes e sombrias que a Proprietária tentava impor naquele espaço, só afectava os Aparafusados. Aos Desaparafusados ninguém metia medo, nem mesmo o Bicho da Fruta. Mas mesmo assim a Madrinha representava para o Camarada Choco um sonho mau. Era um confronto entre um Aparafusado e uma Desaparafusada no limite da normalidade. O cume verbal desta não intimidava ninguém, só provocava risos e desprezo. A imagem que ela dava era de alguém com calças de fantasia, feitas com os restos de vários lençóis, sapatos de verniz e jaquetão da Feira da Ladra.
O Bicho da Fruta tinha posto a Venteira em crise, havia Aparafusados em “estado convulsivo permanente”, e o Camarada Choco sabia que não poderia ficar quieto, vendo os seus amigos sendo dizimados pelo bichano.
- Hei-de ver a tua declaração de IRS ó Fecais, - ameaçou a Proprietária ao telemóvel, levantando os braços e expondo ao vento, como já era costume na época balnear, uns sovacões dignos de uma catedrática.
- E eu vou-te acusar de maltratares o meu Surfista e enchê-lo de Bichos da Fruta, sua bruxa com brilhantina no cabelo.
- Antes ter pasta no cabelo, do que cara de sapateiro viúvo. Fica sabendo de que a tua amiguinha nunca há-de ter aqui um tacho, - gritou com os olhos desorbitados, a cara lívida e flatulências retumbantes.
Acordou sentada no puffe laranja da sala da Dona Gilete e reparou que a funcionária estava distraída a ver o Marco Paulo no programa do Goucha. Quando se preparava para intervir energicamente, sentiu uma estranheza e inquietação. Além de não se conseguir levantar só conseguia dizer uma palavra:
- Bom-dia, bom-dia!
- Está caladinha Papagaia que eu quero ouvir a música, - gritou a dona Gilete atirando-lhe uma bola de plástico azul à cabeça.
O Porres nem queria acreditar no que vira. Uma funcionária a agredir um Desaparafusado com um calhau da calçada. Como Presidente não podia admitir tal insensatez. Tinha que intervir. Teria, mas não conseguia levantar-se da cadeira de rodas. Segurava na mão uma caixa de plástico de um rolo de fotografias, na penca sobressaia uma ferida em carne viva, de tanto raspar com o indicador direito, e quando tentou chamar à atenção a subordinada, teve uma convulsão e mijou-se todo. Permaneceu em silêncio durante alguns minutos, até que conseguiu exprimir-se:
- Não faz xixi na mesa, não faz xixi na mesa!
- Seu porco, - gritou a funcionária atirando-lhe com uma bola de plástico verde à mona.
O Bicho da Fruta ia lentamente atacando os Aparafusados, numa escolha selectiva feita um a um. A Papagaia vira-se liberta da sua carcaça e mal se apanhara com os ossos da Madrinha, rumara em direcção à neve, lá para os lados de Espanha, numas merecidas férias sabáticas. Quanto ao Pentes, agarrou no carro novinho, comprado à conta de um Desaparafusado, e saiu a chiar.
O Camarada Choco estava por dentro do assunto. Parou à porta da Sala dos Quiabões, lançou um olhar simples e místico sobre a Papagaia, que sabia que ele sabia que ela era a outra, e atirou-lhe com um extremo tesão verbal, que não era mais do que uma recusa frontal para a tirar do seu acessório. Mas a festa ainda ia no adro. A entrada para a casa de banho dos Quiabões estava parcialmente bloqueada por uma palete com caixotes misteriosos. Todos se interrogavam da proveniência de tanto material. Seria mais uma limpeza de um sótão feita por um benemérito que preferia a Escola ao contentor? Ou um protocolo com a Somália, que prometia aclarar o quarto escuro das pulsões dos Desaparafusados, sujeitos a leis naturais?
- Ninguém toca nos meus livros, - avisou o autor do projecto, o Nélinho.
Livros junto a uma casa de banho? Iriam substituir os rolos? Mas o mistério ficou resolvido porque a sala da ex-Piulia ostentava agora um letreiro:
“Biblioteca Doutor Nélinho – onde a leitura é compulsiva e os leitores têm a memória extinta”
O Bicho da Fruta tinha destas coisas!

3 comments:

quETzalcoatl said...

WWW.MOTORATASDEMARTE.BLOGSPOT.COM

one day!!!

personal injuries

Andreia said...

Obrigada pela visita! Volta sempre!
Uma boa semana!

osátiro said...

excelente denúncia dessa malta.