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315 estórias

Tuesday, February 12, 2008

Propriedade Privada


                          Camarada Choco

                                                                  Aventura 56

A leitura que fazemos do mundo dos Desaparafusados é muito subjectiva, pois eles dependem sempre dos seus estados de alma. É por isso que o bar é o epicentro de todas as coisas. Representa o domínio absoluto da Dona Espatinha, cuja única obrigação é pagar a Dízima à Senhora do Feudo. Um dia quando se preparava para fatiar o já célebre Bolo de Baba de Monga da Mosca Morta , deu de caras com uma dentadura a rir-se para ela.
- Meu Deus, alguém perdeu peças! Será de um Aparafusado ou de um Desaparafusados, eis a questão?
- Banana, massa, arroz, salada, cebola, - disse o Buda, o monga com a maior cabeça da Instituição, que ficara ao espelho a ver crescer a cabaça, porque na ilha não havia palinhas para desviar o líquido da tola para o estômago. E quando os papéis chegaram para uma reeducação à séria num país distante, já a cabaça tinha solidificado, como a lava de um vulcão. Era o Buda e só falava em comida, mesmo quando cagava.
A ocorrência foi comunicada, por telefone, aos Serviços Administrativos, e a Madrinha quis saber de que material eram feitos.
- Se forem de oiro meta no Saco Azul e deixa de haver descoberta, tal como aconteceu ao cheque do velho da colónia.
- São brancos! – Informou a Dona Espatinha.
- Ponha-os na retrete e diga-me o que é que acontece, - ordenou.
- Flutuam!
- Então não é marfim, entregue-os ao dono, - e desligou.
A Dona Espatinha sentiu-se perdida, desajustada. Como é que iria descobrir o dono ou dona do “corta-palha”? Resolveu pôr em lugar de destaque o achado, com uma tabuleta. Os primeiros a entrarem no estabelecimento foi um casal constituído por dois mongas genuínos, uma pateta deslumbrada e um pateta pretensioso, que quis logo comprar os dentes para oferecer à noiva.
- Mas ela tem os dentes todos, não precisa destes.
- Fica com mais, - justificou-se o chinês, mostrando porque é que na sala era o terceiro calhau a contar do armário.
Mas atrás deles estava outro, com um ar assustador e perverso, mascarado de “Abelha Maia”, a dizer que era um ninja.
- Espatinha, vê se são meus, - e abriu a boca, mostrando ser um descendente em liga directa do crocodilo do Peter Pan.
- Vê se entendes, isto não são bolas de sebo, são dentes.
- Então se calhar são meus, - gritou um monga amaneirado e ignorante entrando de rompante no espaço, na ponta dos pés.
- É mentira, são meus, deu-me a minha tia que trabalha num convento em Espanha que se chama “O Elefante Branco”, - exclamou o Pitrongas, que vinha coladinho ao bailarino, mostrando ser um deficiente versátil, sempre disposto a tentar novidades, neste caso enfiar na boca uns dentes de plástico com musgo. Mas antes cumprimentou a Dona Espatinha com um volumoso “Bom-Dia” em alemão, que foi de imediato chumbado pela Senhora das Sandes que apelou ao rigor e à ética, valores que eram transmitidos a todos pelo Presidente Porres, um exemplo de gestão e dedicação à causa do Camarada Choco, só com duas pequenas manchas, de mijo, no currículo, uma assinatura num cheque para um amigo e num contrato para auto-emprego de supervisor de nada, numa altura em que a sua Escola de Condutores de Mulas estava na falência. Enfim, um Pancho Villa da Brandoa. Junto à porta permanecia o Camarada Choco, belo e misterioso, com a mochila entreaberta. A afectividade do seu olhar era a prova da sua modéstia. O “corta-palha” iria, mais tarde ou mais cedo, pingar para a sua mochila. Apareceu o Castanheira e o Primo do Choco, que demoraram algum tempo a analisar a peça.
- Meus não são, - atirou de rajada o familiar do nosso herói, mostrando ser psicologicamente da profundidade de um bidé.
Quanto ao primeiro, tomou um leitinho transparente, fez uma excursão pela memória e deu uma “grande seca” à Dona Espatinha, contando-lhe a história da bisavó que usava um dente de elefante. O Vira-Bicos, um homem de complexidades poliédricas, só parou junto do objecto estranho ao café, que o fez revelar-se como um senhor de segredos imorais. A presença de todas estas carcaças ressequidas estava a levar a Senhora das Bicas a aproximar-se a passos largos do seu ponto de saturação. Já se via o véu amargurado dos olhos. A Lolita entrou sem aviso com aquele movimento verbal que fazia dela um fenómeno da natureza, cuja língua não tinha medo de nada e debitava palavras rápidas, altas e sonoras, que a faziam delirar e alucinar.
- Organizem-se! – Gritou com a altivez dos mitos e o clamor do trovão.
E como boa telefonista compulsiva, agarrou na mão e fez de imediato uma ligação para o vereador dos seus sonhos, dando-lhe conta, com veemência e voracidade, da descoberta da Dona Espatinha.
- Acudam, acudam, - gritou alguém dos confins da Escola.
No parque da instituição tinha sucedido algo! O Cabo Pilas apresentara-se ao serviço dentro de um bólide e tinha tido alguns problemas na manobra.
- Eu estava aqui sentadinha no contador da electricidade a fumar um cigarré quando vejo um carro a fazer a recta aos soluços, - contou a Tareca ao agente Bóbó.
- E não vinha ninguém ao volante, - interrompeu a Faísca quase à beira de uma convulsão.
- Quando quis fazer a curva acelerou e nem tive tempo de acompanhar a manobra. Ouvi um estrondo, vi uma data de pincéis a voar e o carro continuou, só parando lá em cima no local das “cargas e descargas”.
- Houve vítimas? – Perguntou o repórter da TVI.
- Está ali espalmado no chão, a confundir-se com o alcatrão, um gato, - exclamou a Dona Piulia, que tinha sabido da notícia e suspendera as dores para vir aparecer na televisão.
- É a dona do bichano?
- Não, sou uma vítima!
- O carro-fantasma também lhe acertou?
- Atropelaram-me a alma e fugiram, - queixou-se a Senhora das Baixas Pressões.
No cimo do parque a porta do bólide abriu-se e saiu de lá, com um ar arrogante, o Cabo Pilas, trazendo na mão direita uma mala à Doutor que se abriu com estrondo e espalhou várias “Ginas” pelo alcatrão. Depois de recolher o material didáctico dirigiu-se, em passo de ganso, para a Escola de Desaparafusados. Quando ia a passar pelo gato espalmado foi interceptado pela Pirosa:
- Já viste o lindo serviço que fizeste, - e apontou para o bichano.
- O gato sabia fazer “crochet”? – Perguntou o repórter.
- Gatos há muitos, - respondeu o Cabo Pilas, limpando as solas dos sapatos, com desprezo, no pobre animal. – Serve para tapete de entrada, - e desapareceu lá para os lados do primeiro andar em busca da sua Kalélé, cujo horário de trabalho indicava que deveria estar no seu quartel, a dar lustro aos livros. Mas já tinha concorrência:
- O que é que o Senhor Pintor faz aqui, junto à minha porta? – Perguntou, tentando crescer.
- Esta porta é a sua? – Perguntou o artista da cassete pirata, barrando o acesso do dono ao interior do espaço. – Não pode entrar, está em manutenção.
- Em manutenção?! O senhor pretende dizer que eu trabalho num mijatório?
- Não pode entrar, e pronto, são ordens da Doutora Sem Canudo.
- O quê?! Até para entrar na minha sala tenho de pedir autorização à Madrinha das outras?
- É um assunto que não me diz respeito. Não entra e pronto!
Na outra ponta da Instituição que transformava Aparafusados em Desaparafusados, a Maria contava a odisseia no “Miguel Bombarda”:
- Quiselam dáleme os comprimidos e eu de-lhes uns abufos.
Tinha tido alta, não porque a merecesse, mas sim para não pôr em perigo a vida dos Doutores & Companhia. Tinha sido sempre assim, na Venteira era onde a compreendiam, com mais ou menos dentadas.
- A Gilete esteve aqui? – Perguntou a Menina Tatrícia pegando nos dentes e ficando com eles em frente aos olhos, tal como Shakespeare.
O caso só ficou resolvido quando a mãe do chinês-cagão reclamou pela falta de material.
- Os dentes são nossos, - explicou a mãe-monga. – Quando eu vou para o trabalho, ele vai desdentado para a Escola, quando eu tenho folga, fico a comer papas em casa.
No rés-do-chão, na área da Educativa, a confusão era enorme. O Amendoim tinha ido aos cornos, com o único braço disponível, ao Buda e a Pipoca não conseguira segurá-lo.
- E ainda por cima está com uma convulsão e a cabeça do outro ultrapassou o tamanho dum melão do Entroncamento.
O Amendoim era um Desaparafusado de cor, que desaparafusava em muitas coisas, incluindo o crioulo. Tinha aparecido na Escola acompanhado da mãe e de um tradutor, que explicara à Psicóloga Morena que o objectivo da encarregada de educação era que o seu Amendoim chegasse ao final do Ano Lectivo a falar um crioulo límpido. E como os desejos dos progenitores eram agora lei, até para os Desaparafusados, crioulo foi a língua oficial registada no Plano Educativo. Invertia-se assim a situação, o Amendoim passaria à condição de Aparafusado e os doutores promovidos a analfabetos. Descobriu-se mais tarde que o Desaparafusado, Aparafusado em crioulo, era surdo que nem uma porta, um mouco genuíno. Nova carta para casa, de novo a mãe presente numa reunião, mas desta vez sem tradutor, e na mesma condição que da primeira vez. Informaram-na que o Amendoim nem crioulo, nem português, e tudo causado pela panada que levou ao nascer, quando caiu do coqueiro. Mas como quem tem boca vai a Roma, lá lhe conseguiram explicar que possivelmente o filho teria de gramar com um aparelho auditivo. Fez-se luz! Desta vez percebeu o sentido da questão e explicou que já lhe tinham querido pôr o tal rádio no pavilhão auditivo, mas ela recusara, por uma questão estética. O percing da Casa Sonotone não jogava bem com o seu Amendoim. E como boa guineense de família muçulmana, optara por proteger as partes baixas do seu rebento com um colar feito por um bruxo. A última cena que ocorreu no corredor central foi a Kalélé em fuga para a Sala da Dona Pilca, que estava ausente por motivos de força maior, perseguida por dois mecos rebarbados.

7 comments:

Ana said...

Que ganda texto!
Fiquei com pena da mulher cuja alma foi atropelada mas... podias ser pior lol
Beijos

SP said...

Passei por aqui e gostei muito! Parabéns!

Anonymous said...
This comment has been removed by a blog administrator.
Anonymous said...

Pode não ter nada a ver com o assunto aqui tratado, mas porque a cultura é um “bem” importantíssimo a defender, convido-vos a participarem nos VI Jogos Florais de Avis, que já são uma referência no panorama cultural português. Sendo uma iniciativa da Amigos do Concelho de Aviz-Associação Cultural, o regulamento está disponível em www.aca.com.sapo.pt
Concorram e boa sorte.
Saudações culturais.
P’la ACA,
Fernando Máximo!

Paulo said...

Interessante..... um quotidiano objectivo.
Abraço

R. M. Peteffi said...

Hooray para o Camarada Choco!

Anonymous said...

voce é muito brejeiro, mas com muita classe e bom gosto.


Não me importava de ser a sua camarada choca, certamente teria uma boa vida