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315 estórias

Tuesday, February 12, 2008

Reforma “Convulsiva”




                          Camarada Choco

                                             Aventura 55


- Vai imediatamente para a reforma, - gritou a Doutora Sem Canudo entrando de rompante, sem bater à porta como já era costume, na Sala dos Têxteis, acordando violentamente a Dona Piulia, que tinha adormecido ao som de um “ponto-cruz”, dado pelo seu Tino. A expressão facial da Madrinha mostrava que estava irresistível, incontornável e incondicional.
As portas das outras salas ficaram cheias de olhares curiosos que passaram a acompanhar do interior a estranha animação.
- Não posso, tenho de acabar a encomenda de duzentos “abafa-o-palhacinho” feita pela Dona Pilca e que espero vir a acabar lá para meados de 2020.
- Tem de ir para a reforma porque a minha caixa está a ficar vazia e qualquer dia não há dinheiro para me pagar o ordenado dum dos cargos que não exerço há vinte anos, na época em que usávamos os pauzinhos dos gelados para endireitar mongas, mas que faço questão de receber. A outra Caixa que lhe pague o ordenado.
Mas a Dona Piulia tinha caído novamente num transe profundo e estava agora a receber o seu príncipe encantado, de nome Tino, desta vez vestido de bombeiro e munido de um camião com os dois depósitos cheios e uma mangueira descomunal.
- Aiiiii, - gritou a Informadora , que ia a passar e fora albarroada pela sonhadora que vinha em marcha-atrás. – A senhora já não sabe o que faz, tem de ir imediatamente para a reforma e deixar o que lhe pagam para pagarem a mim, que preciso do carcanhol, - e piscou o olho à Madrinha, que aplaudiu e a chamou à parte.
- O dinheiro não é todo para si. Eu dou-lhe vinte por cento.
- Só?! E as informações que lhe dou, não valem nada?!
- Ok, mas não pense que fica com o carcanhol todo. Eu quero continuar a receber pelos vinte cargos em que me auto-nomeei.
- Trinta por cento e já não se fala mais no assunto. As informações valem oiro.
- Mas primeiro temos de convencer a Piulia a reformar-se.
- Deixe isso comigo, que eu vou ser implacável.
A Dona Piulia tinha novamente caído num dos sonhos e estava agora defronte de um Tino vestido de Noddy dentro de um táxi amarelo que a convidava para o deboche e a perdição. A Madrinha aproximou-se sorrateiramente da senhora dos Têxteis, pôs-lhe o braço por cima do ombro e sussurrou-lhe ao ouvido:
- É o Tino novamente. Já viu que com a reforma vai tê-lo a tempo inteiro.
A presa sorriu, abriu os olhos, que deixaram de caber nos óculos, respirou fundo e disse:
- Talvez tenha razão, vou pensar no assunto.
A Madrinha piscou o olho à Informadora e marcou mais uma reunião, junto à casa de banho da entrada, o cartão de visita da Escola, paredes meias com os sofás onde se sentam as visitas, que muitas vezes pensam que entraram nos esgotos. Como do costume, a instalação sanitária estava ocupada com os meninos da Dona Gillete, uns cagões da pior espécie.
- Viu, aprenda comigo que eu ainda vou durar muito, - exclamou a Madrinha ao ouvido da candidata a Madrinha. – Ela disse que ia pensar, o carcanhol já está no papo.
- Tem a certeza?! Olhe que eu preciso dos trinta por cento para este ano. A Dona Piulia ameaça com a reforma desde que chegou e ainda nos há-de enterrar a todas.
-Esteja descansada. Eu conheço este tipo de gente. Eu também ando a dizer que vou largar os cargos e cada vez tenho mais.
- É por isso que estou preocupada. As doenças pegam-se.
Mas a alma da Dona Piulia estava cercada de sonhos, expectativas, desgostos, alegrias, sonetos, tragédias, romances. E a causa disso tudo tinha um só nome: Tino!
- Piulia, - continuou a Madrinha, pondo mais uma vez o braço ao redor do pescoço da funcionária de meia-idade, não para o apertar, como era o seu desejo mais íntimo, mas sim para tentar dar-lhe a volta ao ordenado. – Ofereça ao seu príncipe-da-praça um “abafa-o-palhacinho”, sou eu que lho dou.
- Alto e pára o baile, - gritou a Dona Pilca. – Isso tem um preço.
- O preço de tudo o que se fabrica nesta Escola de Reabilitação é decretado por mim. Eu deixo, a título excepcional, que a Dona Piulia leve um destes agasalhos para palhacinhos, de borla. É por uma causa justa!, - E deu um toque à Informadora, que estava coladinha . – Aprenda que eu não duro para sempre.
- Infelizmente parece que também ainda nos vai enterrar a todas, - sussurrou a candidata a nada.
- Mas o que é isto?! – Indignou-se alguém que pretendia fazer um telefonema para casa, e assentar no livro como “de trabalho”, e verificou que o aparelho já não estava ao “Deus dará”, mas guardado por uma nova funcionária tipo cão de guarda, que fazia questão de discar o número.
Entretanto e enquanto a pessoa reclamava da mudança, o Porres aproveitou a distracção da funcionária e discou para a esposa, como era habitual, para saber o que era o jantar. Aproveitou para lhe dizer que à tarde, quando iniciasse a volta, passaria lá por casa com a carrinha e os mongas, para a levar ao Feira Nova. Enquanto se discutia a problemática da gratuidade do “abafa-o-palhacinho” made in Dona Pilca, cuja produção tinha sido contratada aos chineses da Sala dos Têxteis, da responsabilidade da Dona Piulia, cujo estado a que tinha habituado os colegas do “mais para lá do que para cá” se tinha alterado radicalmente devido a um simples Tino, passou o Camarada Choco com um dossier debaixo do braço e os dois olhos “à Belenenses”, uma vez que insistia em estar acordado e a falar durante toda a noite, à medida que passava as folhas transportadas com tanto orgulho.
- Agora o poder da Madrinha multi-funções também já chegou aos meus “abafa-o-palhacinho”? – Insurgiu-se a Dona Pilca, mostrando a todos porque é que ao longo de toda a sua carreira escolhera sempre ser a voz discordante.
Desde que se tinha mudado para o topo da instituição, a Faculdade de Tampinhas Professor Doutor Nélinho, o Camarada Choco estava num estado de exercício contínuo de aprendizagem, que associava ao sentido de liberdade e de independência individual a excelência da responsabilidade profissional. Ele era bom em tudo o que fazia, incluindo o cagar. Cagava com estilo para os outros, revelando ser individualista, moralista e empreendedor que levava as injustiças da vida muito a sério. Mas esta sua ingénua relação com o que de mais terno podia existir, confrontava-o muitas vezes com o que de mais brutal podia existir: o “olho à Belenenses”. Mas mesmo nestas ocasiões dramáticas ele conseguía fazer amor consigo próprio. De repente a Dona Piúlia levantou-se com brusquidão, pondo de rasto todas as doenças que andava há anos a propagandear, agarrou na mota eléctrica dada à Escola, mas registada pela Doutora Sem Canudo em nome próprio, para fazer um figurão como presente de um futuro aniversário para alguma sobrinha, e acelerou em direcção ao Refeitório, com um cigarro fumegante ao canto da boca e o cabelo ao vento estilo punck.
- Perdeu o tino de vez, - comentou a Dona Gilete habituada a estes jogos de humor, cruzados com dramas escondidos.
- O Tino é outro e tem “T” maiúsculo, - atirou a Tareca.
Mas a via rápida estava interrompida. O Professor Doutor Sem Canudo Nélinho esquecera-se de tomar o “Tenilvet” e sem o drunfo começara a deitar fumo pelas orelhas e a procurar uma vítima. A “sorte” coube ao Vira-Bicos.
- Alto e pára o baile, - gritou, pondo-se em frente ao Animador-de-Mongas.
- Mas o que é que vem a ser isto?! – Indignou-se o hippie ao ver-se envolvido numa pega de caras.
- Mostre-me a sua autorização de residência, - ordenou o agora bófia Nélinho.
- Mas quem é o senhor para me dar este apertão? – Perguntou indignado o Vira-Bicos, já com os glóbulos oculares fora das órbitas e dos óculos.
O problema da dupla personalidade só foi resolvido depois da Terapeuta Zézé ter conseguído convencer o Nélinho a comer uma maçã vermelha com um “Tenilvet” no interior, perto do caroço, que lhe arrumou momentaneamente os carretos deixando de implicar com a vítima, que correu para o seu espaço artístico no primeiro andar e recusando, mais uma vez, a entrada da tia Kalélé para uma faxina.
A recusa do direito à reforma foi afixada no placar. Todos sabiam que sem os estímulos e provocações da Doutora Sem Canudo, a Dona Piulia perderia grande parte do seu poder e da sua originalidade. E em relação ao facto das puristas não gostarem do seu modo de trabalho, a Senhora dos Têxteis encolheu os ombros e presenteou-as com uma baixa, tendo ainda tempo para dizer:
- Têm inveja do meu Tino!

1 comment:

SP said...

Gostei do blog! Voltarei mais vezes...