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315 estórias

Tuesday, January 08, 2008

Dentadas à Desgarrada

                         Camarada Choco

                                                                   Aventura 52

Quando entrei na Escola parecia que estava no Líbano. O caos não era o normal, porque os feridos eram diferentes: ao Senhor Pintor faltava-lhe um pedaço da mão, apesar de ele coxear para “pintar a manta”; a Menina Tatrícia andava à procura duma parte da bochecha, não sendo capaz de pronunciar os “r”, e à Doutora Sem Canudo ainda não tinham feito o levantamento dos danos, mas era o suficiente para accionar o seguro e assim ser contemplada com um décimo quinto mês, mordomia esta vedada ao pessoal menor. O teste-surpresa de Filosofia de uma das Trabalhadoras-Estudantes das “Novas Oportunidades”, tinha desaparecido no meio da confusão e ela agora receava aparecer na próxima aula, porque assim tinha de fazê-lo lá e só sabia preencher o cabeçalho. Fora por isso que o Professor lhes dera o enunciado duas semanas antes, para que o sucesso fosse garantido, e a estatística governamental melhorasse. A causadora desta cena apocalíptica, que ferira três e causara insucesso escolar a outro, tinha sido a Maria, uma utente com nome de tia mas descendente da Marreca de Monsanto, colega de profissão da mãe que, pela milésima vez se tinha passado e levara tudo à frente, mesmo o Senhor Pintor, que era dotado de um corpinho que lhe tinha valido um convite, em 1968, para o “Concurso RTP da Canção”, como costumava contar. A Doutora Sem Canudo já estava com a situação controlada e encontrava-se na Sala dos Presentes de Casamentos, Baptizados e Funerais a interrogar a fera.
- Se tu continuas a Desaparafusar expulso-te da minha propriedade…da Escola e vais directamente para a Quinta dos Super-Desaparafusados, - ameaçou, protegendo-se duma das mãos da Maria, que lhe tentava agarrar o lençol…o vestido.
- Não, eu juro que não dou mais dentadas, - suplicava a arguida.
- Ai não dás não, porque se o fizeres vais directamente para a Universidade.
- Dá-me um comprimido dos brancos, - pediu a Fera Amansada.
- Qual comprimido, qual carapuça, - tu tens de te controlar.
- Eu preciso, eu preciso de um comprimido, - avisava a Desaparafusada.
- Não há comprimidos, acabaram, - explicou a Madrinha.
- Há, há, eu hoje fui com a outra à Farmácia, durante a minha aula de Treino Social, que inclui uma passagem da Técnica pelo Cabeleireiro ou pela Loja Chinesa, e vi-a a comprar desses comprimidos, - dizia, já um pouco alterada a Maria, acusando sub-repticiamente a Doutora Sem Canudo de estar a mentir, comportamento este vedado aos Desaparafusados, mas de uso diário pelos Aparafusados.
Era por estas e por outras que a candidatura do Camarada Choco aos destinos da Nação representava uma ruptura com a velha e gasta “Inclusão”. Os Desaparafusados eram a maioria, e por isso o Poder pertencia-lhes por direito próprio. E que não viessem com a esfarrapada desculpa de “Desaparafusado Não Vota porque é Desaparafusado”, porque então teriam de se explicar qual o conteúdo encefálico daquelas santas alminhas que os partidos dos Aparafusados iam muitas vezes buscar ao norte do país em grandes camionetas, com a promessa de uma ida a Fátima e só paravam em Lisboa para aplaudirem um candidato vencedor ou apoiarem uma causa ambiental, revelando-se todas as vezes uns autênticos “vegetais” quando questionados pela Comunicação Social. E se não queriam misturas, então que o país se regionalizasse de vez para haver um exclusivo para Desaparafusados, uma espécie de Cooperativa Gigante. Seria mais barata e muito mais eficaz do que a Desaparafusada Lei da “Rampinha obrigatória em tudo o que é Prédio”, para que de cem em cem anos lá fosse um cágado visitar a prima do décimo andar. Mas há conta disto tudo parasitavam muitos Aparafusados que a única coisa que sabiam fazer era chular. E era um “Grande Basta” que o Camarada Choco vinha prometer.
A Maria sabia que as palavras da Doutora Sem Canudo eram musica para os seus ouvidos e espectáculo para os outros, pois o vigésimo subsídio dependia da sua presença vitalícia ali, com e sem dentadas, e disso a Madrinha não abdicava porque precisava dele como de pão para a boca. Por isso, quando ela voltou as costas presenteou-a com um manguito dos mais elegantes símbolos pictográficos para a comunicação (S.P.C.), pretendendo com isto dizer-lhe, “a mim ninguém me muda”!
Cada uma à sua maneira anda à procura de um rumo para a vida. Aqui estiveram duas criaturas frente a frente, sendo cada uma o espelho da outra, uma Desaparafusada a tentar aparafusar-se e uma Aparafusada completamente desaparafusada. De cada vez que se cruzam têm de encontrar um ponto de estabilidade, que lhes confira o mínimo de convivência pacífica. Sem este olhar mútuo sobre o que cada um produz, o sistema funciona de modo incompleto, tornando-se demasiado redutor. As crises da Maria são sempre um estímulo à melhoria do desempenho profissional da Doutora Sem Canudo, porque uma Desaparafusada que se preze não cede a nenhuma ideia feita, a nenhuma retórica, que leve a dentadura a ficar saciada. Obedece sim a uma tensão, com princípio, meio e fim. E todos têm de esperar pelo fim, tudo o resto é conversa!
P.S.: Já fazem parte desta Campanha as aventuras anteriores:
Nº - 48 - Buffo-Terapia
Programa de Governo – Parágrafo 1 – Fim da Exploração dos Desaparafusados
Nº - 49 - Um Jantar no Farwest
Programa de Governo – Parágrafo 2 – Pôr ordem nos Aparafusados

2 comments:

Anonymous said...

que belas caricaturas,quanto ao governo tem muito que se lhe diga

Desambientado said...

Uma boa sátira deste Portugal pseudo-qualquer coisa....