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315 estórias

Thursday, March 03, 2005

O Trombeiro

                         Camarada Choco 


Na sala de Artes Gráficas imperava a serenidade, como era costume. Os artistas debruçavam-se afincadamente nas mesas, perdidos algures nas suas obras. Num breve olhar as tendências eram evidentes: junto à porta, sem sobra para dúvidas, o Bibi ensaiava um Caravaggio trissómico, com queda para a ciganisse; o Pitrongas, de pé junto a uma tela de promoção da loja dos setenta e cinco cêntimos, aproximava-se, desesperado, de um Picasso depois de um acidente vascular cerebral; o Fangio Espástico dava retoques a um “Napoleão a Cavalo a atravessar o Bairro do Relógio”;o Kodak, com o pincel em riste, pintava, em êxtase, um “Batatoon em Tripé”; o Peixe Espada chorava, como já era habitual, emocionado por pertencer a tão ilustre sala; o Zé Saltitão unira-se ao Lula, e ambos desesperavam na tentativa de igualar uma Josefa de Vómitos; e, para finalizar o idílico quadro, o nosso querido e amado Choco dedicava-se à “ arte etnográfica pré-colombiana”, mais propriamente à cultura de Tiahuanaco, esculpindo um generoso Virgulino, com cordelinho das Caldas. A apreciar o desenrolar dos acontecimentos, estava o exigente senhor Pintor, um homem implacável, formado nas melhores escolas da Brandoa, com mestrado na Linha de Cascais e colega de dois sábios do pino e da cambalhota, um, um “stor” pobre”, o outro um “stor” rico.
- Acudam, acudam – gritou alguém. – Acudam, acudam, tenho a ...em chamas!
A quebra do silencio inspirador fez com que o Bibi transformasse o seu Caravaggio, num Picasso coxo e pedófilo.
- Acudam...acudam...tenho a...toda em chamas!
- Mas, o que é que se passa !?? – interrogou-se o senhor Pintor, saindo da sala.
Os seus olhos de lince deram de imediato o alerta.
- Fogo, fogo...há fogo no andar em frente – alertou, correndo de imediato para o local do sinistro, tendo para isso trepado uma parede, tal qual um felino, e atravessado um telhado periclitante, tal qual um trapezista. – Fogo, fogo...senhor Porres, fogo, - gritou, já com a mangueira pessoal na mão, e pronto a despejá-la na cozinha em chamas.
Mas a idade nunca perdoa! Apesar do esforço titânico, só conseguiu atingir os sapatos. Quanto à retaguarda, ainda demonstrou não ter folgas, pois o petardo colou o Porres à janela do bar.
- Xiça, a bilha do gás devia estar cheia! – Resmungou o Presidente.
- Porres, não é altura para se encostar, - alertou o Pintor, aproximando-se agora dum Herói. – Vá buscar a pistola de pressão.
- Pistola de pressão!?? Mas, aonde?
- Deve estar na entrada.
O Porres já não precisava de ouvir mais nada. Arrancou, a todo o carvão, tal qual um carrinho do Continente com a roda da frente quadrada. Quanto ao nosso Pintor-Herói, lá permaneceu com o peito a desafiar as chamas, e agora também com uma outra mangueira nas mãos.
- Castanheira, dá-lhe toda a pressão.
O barulho ensurdecedor da turbina a arrancar, dava a sensação de estar no aeroporto de Lisboa. Mas, foi sol de pouca dura. As pingas nem aos sapatos do Bombeiro chegaram.
- Mangueira por mangueira, prefiro a minha, - gritou orgulhoso o Pintor-Herói-Bombeiro, revelando possuir humor perante o perigo.
- Está aqui a pistola de pressão – gritou o Porres, irrompendo pelo palco da tragédia.
- Mas, isso é uma colher de sopa ! – Informou, desiludido, o Castanheira.
- Se a pistola não vem, apago o fogo à dentada! – Ameaçou o Pintor-Herói-Bombeiro.
Quanto ao Porres, desapareceu novamente nas entranhas da escola, em busca da maldita pistola de pressão.
- Vou novamente recorrer à minha mangueira, - alertou o Pintor-Herói-Bombeiro.
- Não, não, - ainda se ouviu o Castanheira, pondo as mãos na cabeça.
A cena repetiu-se: na parte anterior ficou-se pelos sapatos, e na posterior sentou o Castanheira dentro do lava-loiças do bar, em cuecas.
- Cacanheira, Cacanheira, quéle cócó! – avisou a monga de serviço às bicas.
- Atrevido, já não tem idade para estas cenas, - gritou a dona Luisinha, a generala do estabelecimento.
Mas, o motorista só conseguiu recitar o “a, e, i, o, u”, sem o “o”.
- Está aqui a pistola de pressã, - gritou de novo o porres, arremessando o objecto.
O Pintor-Herói-Bombeiro agarrou-a com a mão esquerda e colocou-a com a direita. Bastou uma gatilhada para apagar o fogo.
- Bom trabalho, colega! – disse o Chefe dos Bombeiros, dando uma palmada nas costas do novo Rambo da Roque Gameiro.
As notícias correram depressa, a população juntou-se e arranjou um cognome para este futuro inquilino do Panteão Nacional. Como Pintor-Herói-Bombeiro-Rambo era um nome enorme, uma Comissão, formado para o efeito, decidiu fundir as quatro palavras, e criou uma nova: Trombeiro.




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