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315 estórias

Monday, October 11, 2004

CENAS CANALHAS

                          Camarada Choco

                                         
 
O mar batia furioso de encontro às rochas, lixando para sempre alguns mexilhões mais atrevidos, enquanto que noutro ponto do país fluidos cerebrais batiam furiosos de encontro aos restos de neurónios, lixando para sempre os sonhos cor de rosa do nosso querido e estimado Choco. As gaivotas fugiam em pânico dos respingos violentos que se projectavam no ar, dizimando tudo à sua passagem, enquanto que no outro local os piolhos, as cabaças, os cutrilhos e as burgalhotas fugiam em debandada, pelos lençóis abaixo, deste terrível terramoto existencial. O bater de uma onda mais violenta rasgou as entranhas da terra e tudo desapareceu numa nuvem de espuma; a T-Shirt vestida no ano lectivo anterior rasgou-se com violência ao nível dos peitorais e lançou para o ar as moléculas de odor corporal, que obrigaram a um suicídio colectivo das cutrilhas que estavam a vomitar à janela; a fúria da tia Natureza não tinha limites, tudo era diferente, tudo era igual, o Oceano e o Choco misturavam-se numa orgia infernal, ora eram pedaços de rochas que se projectavam no vazio, ora eram pedaços de sebo que se colavam com estrondo no poster do herói da cassete pirata, que se confundia com o musgo das paredes sensuais do quarto do camarada Choco. A vida estava ingrata e os sonhos já não eram cor-de-rosa, a sua sensual “Bébéu” já há muito tempo que o largara, estando agora a largar a sua excitante bába, não de camelo, no colo de outro. Os sonhos do dragão da Venteira eram agora negros, carregados de trovões, peidos, relâmpagos rápidos e jactos de mijo, que decoravam as cuecas vermelhas com bolinhas brancas. Só o faro deste predador é que conseguia distinguir a parte da frente da de trás e nunca se enganava, prova irrefutável de que os seus neurónios cerebrais, apesar de reduzidos, eram dos melhores. O ladrar carinhoso do “Jardel” deu-lhe os bons-dias, mas infelizmente o senhor Choco não estava para aí virado e teve assim necessidade de transmitir ao canídeo de estimação da mãe a sua opinião sobre o estado do tempo: o coice colocou o peluche arrumadinho ao colo dum Santo António com fácies de trissómico. E como um colo dum Santo só tem espaço para uma criatura de cada vez, o menino não teve outro remédio senão despencar-se das alturas e cair em cheio dentro dum balde com as cuecas de molho de toda a família. O desencadear de acções familiares foi puro e duro, após a mãe se aperceber do estado periclitante da “jóia da coroa”. Entrou em cena o chefe da família, o único contribuinte, o empresário, que se atirou sem dó nem piedade ao Choco e fez dele um “puré-de-batata-da-loja-dos-300”. Estranha forma de iniciar um novo e solarengo dia.
A rejeição tinha-se consumado, a mãe já não o queria, abandonava-o agora aos 22 anos e doava a sua parte do carinho à irmã, tornando-se ela agora a única totalista do “Amor de Mãe”. Triste e abandonado, tal qual uma Ágata qualquer, o nosso herói pegou na trouxa e rumou em direcção ao trabalho.
O dia não podia ter começado pior. À sua espera estava a Dra., tal qual uma agente da Pide, pronta para lhe fazer a folha.
- Há, à,ó,ô,à – ainda tentou protestar mas foi em vão.
Confiscou-lhe o saco de plástico e abriu-lhe com raiva a mochila tipo pára-quedas. O conteúdo ficou no chão à mercê das patas dos seus colegas, tal qual as batinas dos universitários. As minhocas, que já tinham construído moradias de musgo numa ex-toalhinha branca, não tiveram outro remédio senão protegerem-se dentro dos ténis vermelhos deste Che Guevara da Brandoa, apesar da natureza-morta do seu ambiente.
A vida de um revolucionário não estava para brincadeiras desde o 11 de Setembro. Até aqui, neste edifício a quem ele considerava a sua primeira casa, uma simples mochila de 50 Kg não passava despercebida. Na noite anterior tivera tanto trabalho a transformar uma toalha de mesa fascista em trinta “bábetes” proletários, para humildemente recuperar o seu “Amor de Mãe”. Apesar da idade cronológica ser a de um adulto, não se aperceberia a mãe de que o conteúdo encefálico parara aos 3 anos, e tudo graças ao Decreto-Lei 40/85 que extinguira os números negativos? E aos 3 ainda se é muito querido e ainda se usam “bábetes”! Quereria a mãe que ele passasse a ladrar para assim também ter direito ao colo, como o Jardel? Enfim, problemas existenciais que infelizmente também afectavam os guerrilheiros. Mas agora era tempo para trabalhar e agarrou no pincel, dando início às pinceladas.


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