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315 estórias

Wednesday, November 12, 2025

O Comboio Humano

 


O Comandante Guélas

Série "Malucos Anónimos"

4

A Humanidade contém muitas anomalias inexplicáveis. O guinchar dos travões do comboio quando o avistava, eram a banda sonora dos dias do Chora na Penca. Qual seria o seu destino, estaria à procura de um caminho para casa? Por causa da doença viu desaparecer familiares, amigos, amantes, apenas lhe restou o vazio, o silêncio. Começou por trancar-se no quarto, calando aflições e dores, abandonos e vácuos, sem esperança de melhorar. Punha-se em causa, descontraia-se, refazia-se, reinventava-se, sem autocomiseração. Esvaziou os afetos, o corpo fragilizou-se, as memórias tumultuaram-se. Para a mente amputada não havia qualquer tipo de prótese. Como não gostava dele próprio não podia amar os outros, apesar de não querer deixar de amar. Tinha mirrado na demência que lhe desfizera o pensar e o agir. Passava a maior parte do dia numa ausência da realidade, por isso perpassava nas vidas de todos, mesmo sem fazer nada. Discutia consigo próprio muitas vezes, via auras estranhas sobre os cabelos:

- Vou dar milho aos espíritos santos! – Dizia num fio de voz, coçando a extremidade do nariz, um vértice desmedido numa cabeça enorme numa face doentia e óssea, em cima de pernas pouco sólidas.

Os seus sonhos estavam cheios de monstros e fantasmas. Caminhava no meio de uma neblina leve de gotículas frias. As ressonâncias que o Chora na Penca recebia do convívio com os colegas, flatos, arrotos, palavrões, gritos, convulsões e agressões, eram de tal modo ensurdecedoras, que começou a imaginar que estava a desaparecer, que estavam a apropriar-se de pedaços de si, por isso começou a coxear. Um dia entrou de rompante a gritar pelo gabinete do diretor:

- Gamaram-me o pé, ficou um coto.

- Rouba o pé a outro! – Respondeu o psiquiatra de serviço, que tinha sido acordado, empurrando-o para fora do espaço.

Saiu apressado do edifício, passou por vários mortos-vivos, e ainda ouviu os queixumes habituais do Cara de Apito, um utente solitário, que estava cada vez mais ensimesmado:

- Namoro com a minha esquerda, que não me dá descanso, já tenho a piroca em carne viva. Tentei chegar a ela com a boca, mas os bicos de papagaio não deixaram. Por isso peido-me sempre que quero transmitir ideias e sentimentos.  

O Chora na Penca era artista, criava desenhos raspados à unha nas paredes do quarto, por isso nele imperava sempre o óxido da dúvida:

- Maluco ou não maluco, eis a questão, mas agora pó, só o dos móveis.

Gostava de sentir a luz nos olhos, não tinha vergonha de ser triste, por isso fumava cigarros a condizer. Os demónios da vida que o tinham desembraiado deixara-os para trás, apesar de continuarem a persegui-lo. Tinha um pessimismo intransigente em relação ao futuro:

- Sinto o sabor a cinzas na boca – sinal de que transmutava a banalidade da loucura numa loucura sã. – Por isso sei falar enoquiano!

Mas como sintonizava sempre mal a comunicação, em vez de falar com os anjos, recebia instruções de demónios. Um dia, quando o seu colega de quarto e protetor, o Labumba, estava a urinar contra um pinheiro, resolveu fugir. O Chora na Penca sabia que depois de se começar uma mija, era difícil parar a meio. E até parar era difícil correr. Mas contra todas as probabilidades o seu meio-irmão correu, com a dita de fora e a despejar. Quando passaram em frente à janela do refeitório do pessoal, as luzes vermelhas acenderam-se, e eles soltaram o Caça Malucos, um enfermeiro com dois metros e 10 centímetros, e 130 Kg de peso, que tinha tiques de rico num corpo de pobre, e que quase levitava abraçado a sonhos grandiosos.


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