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315 estórias

Wednesday, October 22, 2025

O Tira-Dentes

 



O Comandante Guélas

Série "Malucos Anónimos"

3

 

“Creio nos anjos que andam pelo mundo / Creio em amores lunares com piano ao fundo / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes / Creio que tudo é eterno num segundo / Creio num céu futuro que houve dantes / Creio nos deuses de um astral mais puro / Na flor humilde que se encosta ao muro / Creio na carne que enfeitiça o além / Creio no incrível, nas coisas assombrosas / Na ocupação do mundo pelas rosas / Creio que o Amor tem asas de ouro, Ámen.”

 Natália Correia em “Sonetos Românticos”


Os malucos precisam de espaço para sobreviverem. A acumulação numa bolha razoavelmente grande, que os devia proteger da aniquilação exterior, faz desaparecer o espaço vazio e transforma-os, muitas vezes, em predadores.

- Não gosto de ti! – Gritou o Caguetas, sentado num sofá, quando viu o Delgado Gigante a passar no seu espaço aéreo.

Mal sabia o residente do “Associação Mutualista dos Malucos de Sintra”, um cidadão de meia-idade há muito gripado, que acabara de acordar os diabos do Delgado Gigante, um utente tão presciente que, antes de o terem declarado maluco, já o sabia. As suas raivas acabavam de ficar despertas. Dera-lhe a provar a “maçã de Adão”, a pior das centenas de anfetaminas que o tinham atirado para aquela instituição de gripados de famílias ricas incluindo pensionistas do Estado. O Delgado Gigante sentiu o cheiro a azedo e a coliforme fecais do colega de carteira, fez-lhe um olhar raivoso, e recebeu em troca um beijinho velhaco, acompanhado do sorriso de um só dente. Sentiu tudo isto como dardos venenosos que lhe incendiaram os sentidos. Susteve a respiração. O Caguetas apontou-lhe o indicador, e voltou à carga:

- Não gosto de ti, és feio!

A fúria que se apoderou do Delgado Gigante era fogo que se ardia sem se ver. Olhou para o Caguetas e viu-o como o causador da sua mudança, de menino promissor, beato voluntariamente obrigado, com nome no Quadro de Honra do liceu que, de um dia para o outro, trocou as hóstias inofensivas pelos comprimidos coloridos, que o tornaram num jovem vadio e manhoso, ladrão e desequilibrado, frequentador assíduo nas penumbras da viela do Alice. Sentiu o insulto como uma chibata pública. Inspirou profundamente e arregalou os olhos azuis, cujo olhar estava ausente. Na cabeça o rastilho avançava por entre os milhões de neurónios, muitos deles já queimados por outros incêndios, e incapazes de participar numa tomada de decisão. Bruscamente ficou de semblante carregado, os olhos, que pareciam retalhos do céu, foram inundados por chamas, e esmagou com raiva o pedaço de queque que lhe tinha caído da boca.

- Diz lá isso outra vez, - pediu tonitruante, com o olhar reluzente de prazer, mastigando o bolo.

O Delgado Gigante sentiu a formidável força que existia dentro de si invadir-lhe o braço direito, caíra num delírio fascinado. Por isso respondeu com a maior violência de um subproduto humano. Balouçou o corpo franzino ao compasso da raiva e de uma tosse cava e profunda, causada pelas inúmeras beatas que fumou, e continuava a fumar, ao longo dos dias. Perdeu a respiração, fechou os olhos, o pouco cérebro funcional parou, na altura do embate a língua incendiou-se:

- Come cabrão, - gritou, cuspindo fel irado e urros, mostrando ter falta de sebo, espalhando pelo ar o ranho do nariz, soltando um trovão, de tal forma assustador, que até o Chora na Penca, que estava ao lado da vítima, se borrou como um leão.

Alternava entre um cavalo selvagem e uma vaca de rodeo, ambos aos coices, ninguém o parava. As sensações e perceções há muito que tinham ocupado o lugar dos números, dos factos e dos resultados, tudo isto desde aquela noite em que tomara um comprimido com cor de mijo, numa discoteca manhosa da Porcalhota, com cheiro intenso a catinga, que lhe derretera os neurónios. Afastou-se, tendo ainda tido tempo para dar uma festa na cabeça da Lucinda Careca, que estava sentada num degrau, abraçada aos joelhos, olhando para o seu céu, o chão, tão negro como a cor do seu cérebro.

Pelos corredores sem fim do “Associação Mutualista dos Malucos de Sintra”, anónimos só para alguns, sentiu-se um grito de dor intenso e límpido. O canino do Caguetas, último dente disponível, desapareceu nos ares e entrou na boca do Pé de Pato, que o engoliu. De seguida o Delgado Gigante correu para o jardim e regressou com um machado, disposto a fazer a folha ao amigo, agora transformado num inimigo mortal, e quem o safou foi o coração do agressor, que começou a roer a corda e, sem aviso, partiu o fio na altura em que já tinha a arma elevada, pronta a cair sobre o coco do amigo. Foi um curto-circuito macio abençoado!


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