O Comandante Guélas
Série "Malucos Anónimos"
3
“Creio
nos anjos que andam pelo mundo / Creio em amores lunares com piano ao fundo /
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes / Creio que tudo é eterno num segundo
/ Creio num céu futuro que houve dantes / Creio nos deuses de um astral mais
puro / Na flor humilde que se encosta ao muro / Creio na carne que enfeitiça o
além / Creio no incrível, nas coisas assombrosas / Na ocupação do mundo pelas
rosas / Creio que o Amor tem asas de ouro, Ámen.”
Natália Correia em “Sonetos Românticos”
Os malucos
precisam de espaço para sobreviverem. A acumulação numa bolha razoavelmente
grande, que os devia proteger da aniquilação exterior, faz desaparecer o espaço
vazio e transforma-os, muitas vezes, em predadores.
- Não gosto de ti!
– Gritou o Caguetas, sentado num sofá, quando viu o Delgado Gigante a passar no
seu espaço aéreo.
Mal sabia o
residente do “Associação Mutualista dos Malucos de Sintra”,
um cidadão de meia-idade há muito gripado, que acabara de acordar os diabos do
Delgado Gigante, um utente tão presciente que, antes de o terem declarado
maluco, já o sabia. As suas raivas acabavam de ficar despertas. Dera-lhe a
provar a “maçã de Adão”, a pior das centenas de anfetaminas que o tinham
atirado para aquela instituição de gripados de famílias ricas incluindo
pensionistas do Estado. O Delgado Gigante sentiu o cheiro a azedo e a coliforme
fecais do colega de carteira, fez-lhe um olhar raivoso, e recebeu em troca um
beijinho velhaco, acompanhado do sorriso de um só dente. Sentiu tudo isto como
dardos venenosos que lhe incendiaram os sentidos. Susteve a respiração. O
Caguetas apontou-lhe o indicador, e voltou à carga:
- Não gosto de ti,
és feio!
A fúria que se
apoderou do Delgado Gigante era fogo que se ardia sem se ver. Olhou para o
Caguetas e viu-o como o causador da sua mudança, de menino promissor, beato
voluntariamente obrigado, com nome no Quadro de Honra do liceu que, de um dia
para o outro, trocou as hóstias inofensivas pelos comprimidos coloridos, que o
tornaram num jovem vadio e manhoso, ladrão e desequilibrado, frequentador
assíduo nas penumbras da viela do Alice. Sentiu o insulto como uma chibata
pública. Inspirou profundamente e arregalou os olhos azuis, cujo olhar estava
ausente. Na cabeça o rastilho avançava por entre os milhões de neurónios,
muitos deles já queimados por outros incêndios, e incapazes de participar numa
tomada de decisão. Bruscamente ficou de semblante carregado, os olhos, que
pareciam retalhos do céu, foram inundados por chamas, e esmagou com raiva o
pedaço de queque que lhe tinha caído da boca.
- Diz lá isso
outra vez, - pediu tonitruante, com o olhar reluzente de prazer, mastigando o
bolo.
O Delgado Gigante
sentiu a formidável força que existia dentro de si invadir-lhe o braço direito,
caíra num delírio fascinado. Por isso respondeu com a maior violência de um subproduto
humano. Balouçou o corpo franzino ao compasso da raiva e de uma tosse cava e
profunda, causada pelas inúmeras beatas que fumou, e continuava a fumar, ao
longo dos dias. Perdeu a respiração, fechou os olhos, o pouco cérebro funcional
parou, na altura do embate a língua incendiou-se:
- Come cabrão, -
gritou, cuspindo fel irado e urros, mostrando ter falta de sebo, espalhando
pelo ar o ranho do nariz, soltando um trovão, de tal forma assustador, que até
o Chora na Penca, que estava ao lado da vítima, se borrou como um leão.
Alternava entre um
cavalo selvagem e uma vaca de rodeo, ambos aos coices, ninguém o parava. As sensações
e perceções há muito que tinham ocupado o lugar dos números, dos factos e dos
resultados, tudo isto desde aquela noite em que tomara um comprimido com cor de
mijo, numa discoteca manhosa da Porcalhota, com cheiro intenso a catinga, que
lhe derretera os neurónios. Afastou-se, tendo ainda tido tempo para dar uma
festa na cabeça da Lucinda Careca, que estava sentada num degrau, abraçada aos
joelhos, olhando para o seu céu, o chão, tão negro como a cor do seu cérebro.
Pelos corredores
sem fim do “Associação Mutualista dos Malucos de Sintra”,
anónimos só para alguns, sentiu-se um grito de dor intenso e límpido. O canino
do Caguetas, último dente disponível, desapareceu nos ares e entrou na boca do
Pé de Pato, que o engoliu. De seguida o Delgado Gigante correu para o jardim e
regressou com um machado, disposto a fazer a folha ao amigo, agora transformado
num inimigo mortal, e quem o safou foi o coração do agressor, que começou a
roer a corda e, sem aviso, partiu o fio na altura em que já tinha a arma
elevada, pronta a cair sobre o coco do amigo. Foi um curto-circuito macio
abençoado!
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