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315 estórias

Thursday, November 20, 2025

Os Desassossegados

 


O Comandante Guélas

Série "Malucos Anónimos"

5


“Claro que és. Se não fosses maluca não estavas aqui.”

 

Gato Cheshire no “Alice no País das Maravilhas” (Lewis Carroll)

 

Como é que uma criança tão tímida se transformou num animal de rua? No momento em que o Alice se convenceu de que todas as doenças o atacavam. Dizia ser a música orquestral a paleta de timbres que o incentivava a plasmar os ódios, para onde mergulhava a cabeça fria e o coração quente, pois sentia-se sempre a cumprir uma função completa e exigente:

- Há colegas que demoram tempo a morrer, são teimosos, - queixava-se sempre aos juízes.

Viu o pai morrer na cozinha, com 38 anos, sufocado no próprio vómito, após empurrado pelo álcool. Havia uma desagregação dos laços afetivos e da miséria, que marcou a vida da família. Era um paciente que adorava apertar os catos do jardim, dizia que havia beleza nas coisas que picavam e acrescentava sempre:

- Mais vale chegar atrasado a esta vida, do que cedo à próxima!

Numa das suas deambulações pela quinta onde se inseria a “Associação Mutualista dos Malucos de Sintra”, o Alice viu ao longe, no meio do mato que rodeava os pinheiros velhos, três silhuetas em andamento. A brisa reflexava folhas de árvores e de memórias de antigos residentes. Esfregou os olhos e elas desapareceram numa nuvem de pó. Dois reapareceram cambaleantes e um levantou-se.

- Palhaço, - gritou quando reconheceu o Tagarelas, um antigo gestor de olhos risonhos, ligeiramente inclinados e mal distinguíveis, afundados em órbitas macias, cujo stress e ganância lhe queimaram de vez as juntas da cabeça, tendo perdido para um vizinho saudável a mulher e os filhos.

O trio tornou a juntar-se, e continuaram em direção a um amontoado mais denso de árvores. O Tagarelas era um poeta que ainda sonhava com o futuro, mesmo sendo uma casca vazia.

- Quando sair daqui volto para casa, para junto dos meus pequenos e da minha Maria.

O Criolina saiu a correr em direção ao Alice, que dizia também chamar-se Cooper, polvorizando ramos secos, que ficaram presos nas roupas e arranharam o rosto. A biografia do Criolina iniciou-se na sua adolescência, quando desenvolveu uma obsessão pelo Fernando Pessoa. Aos 22 anos, já com três personagens dentro de si, o Ricardo Reis, que no caso dele se chamava Vaginas, optou por cortar o dedo mindinho da mão esquerda em vez de violar a irmã. Seguiu-se o anelar para não ter de matar a tia Anita Carapita, que lhe chamara “maricas”. O padre Januário, a quem ele tratava por pai, mas não sabia que era verdade, convenceu-o a ir falar com um médico amigo que trabalhava na “Associação Mutualista dos Malucos de Sintra”.

- Vai na tua mota todo janota.

No dia 23 de dezembro de 1978 apareceu na consulta de psiquiatria, montado na sua reluzente Zundapp, com fitinhas coloridas nos punhos, e muita brilhantina. Bateu à porta, e quando ouviu “entre”, rodou a maçaneta e apresentou-se ao Dr. Cambeiro, Zézinho Circunferência para os amigos:

- Bom dia, o meu nome é Cavaco, sou trabalhador das Minas da Panasqueira, tenho 22 anos, e por isso não há maricas que me arreganhe o cu.

Acabara de fazer um autodiagnóstico, que lhe colou um rótulo do qual nunca mais se libertou, e que foi o “grito do Ipiranga” da família endinheirada, condição essencial para ter direito a um quarto imediato, ou seria uma cela? Iria ser uma mistura de insanidade e liberdade. Para complicar a situação, o Alberto Caeiro, que se chamava Montanelas, apaixonou-se de imediato pela Tita dos Pés Sujos, que para ele tinha um corpo sensual mesmo estando deformado pelos distúrbios da mente:

- Faz-me lembrar a Albertina das Mamas Grandes do “Dallas Cowboy”!

Mas como ela já tinha dono, o Frank Moka, cortou o dedo mediano, para não ter que matar o rival. Aproveitou o balanço sinestésico, na qual a mente é empurrada para o convívio com os fenómenos primitivos, e convenceu o Álvaro de Campos, Cavalo Malandro no seu caso, a cortar o indicador, para não ter de matar o Octanas, que tinha bafo de gasolina, e assim ganhar o “Prémio Nobel da Paz”. Sobrou o polegar, com o qual tirava o sebo das orelhas. E quando cortava os dedos nem tugia, nem mugia, agarrava no pedaço e atirava-o para o caixote do lixo mais próximo, gritando:

- Nunca renunciarei a Satanás, que me perdoe o padre Januário.

Um dia acordou a anunciar que D. João II, o “Príncipe Perfeito”, encarnara-o!

 

 

 

 

 

 

 

 


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