O Comandante Guélas
Série "Malucos Anónimos"
5
“Claro
que és. Se não fosses maluca não estavas aqui.”
Gato
Cheshire no “Alice no País das Maravilhas” (Lewis Carroll)
Como
é que uma criança tão tímida se transformou num animal de rua? No momento em
que o Alice se convenceu de que todas as doenças o atacavam. Dizia ser a música
orquestral a paleta de timbres que o incentivava a plasmar os ódios, para onde
mergulhava a cabeça fria e o coração quente, pois sentia-se sempre a cumprir uma
função completa e exigente:
-
Há colegas que demoram tempo a morrer, são teimosos, - queixava-se sempre aos
juízes.
Viu
o pai morrer na cozinha, com 38 anos, sufocado no próprio vómito, após
empurrado pelo álcool. Havia uma desagregação dos laços afetivos e da miséria,
que marcou a vida da família. Era um paciente que adorava apertar os catos do
jardim, dizia que havia beleza nas coisas que picavam e acrescentava sempre:
-
Mais vale chegar atrasado a esta vida, do que cedo à próxima!
Numa
das suas deambulações pela quinta onde se inseria a “Associação
Mutualista dos Malucos de Sintra”, o Alice viu ao longe, no meio
do mato que rodeava os pinheiros velhos, três silhuetas em andamento. A brisa reflexava
folhas de árvores e de memórias de antigos residentes. Esfregou os olhos e elas
desapareceram numa nuvem de pó. Dois reapareceram cambaleantes e um
levantou-se.
-
Palhaço, - gritou quando reconheceu o Tagarelas, um antigo gestor de olhos
risonhos, ligeiramente inclinados e mal distinguíveis, afundados em órbitas
macias, cujo stress e ganância lhe queimaram de vez as juntas da cabeça, tendo
perdido para um vizinho saudável a mulher e os filhos.
O
trio tornou a juntar-se, e continuaram em direção a um amontoado mais denso de
árvores. O Tagarelas era um poeta que ainda sonhava com o futuro, mesmo sendo
uma casca vazia.
-
Quando sair daqui volto para casa, para junto dos meus pequenos e da minha
Maria.
O
Criolina saiu a correr em direção ao Alice, que dizia também chamar-se Cooper, polvorizando
ramos secos, que ficaram presos nas roupas e arranharam o rosto. A biografia do
Criolina iniciou-se na sua adolescência, quando desenvolveu uma obsessão pelo
Fernando Pessoa. Aos 22 anos, já com três personagens dentro de si, o Ricardo
Reis, que no caso dele se chamava Vaginas, optou por cortar o dedo mindinho da
mão esquerda em vez de violar a irmã. Seguiu-se o anelar para não ter de matar
a tia Anita Carapita, que lhe chamara “maricas”. O padre Januário, a quem ele
tratava por pai, mas não sabia que era verdade, convenceu-o a ir falar com um
médico amigo que trabalhava na “Associação Mutualista dos Malucos
de Sintra”.
-
Vai na tua mota todo janota.
No
dia 23 de dezembro de 1978 apareceu na consulta de psiquiatria, montado na sua
reluzente Zundapp, com fitinhas coloridas nos punhos, e muita brilhantina.
Bateu à porta, e quando ouviu “entre”, rodou a maçaneta e apresentou-se ao Dr.
Cambeiro, Zézinho Circunferência para os amigos:
-
Bom dia, o meu nome é Cavaco, sou trabalhador das Minas da Panasqueira, tenho 22
anos, e por isso não há maricas que me arreganhe o cu.
Acabara
de fazer um autodiagnóstico, que lhe colou um rótulo do qual nunca mais se
libertou, e que foi o “grito do Ipiranga” da família endinheirada, condição
essencial para ter direito a um quarto imediato, ou seria uma cela? Iria ser
uma mistura de insanidade e liberdade. Para complicar a situação, o Alberto
Caeiro, que se chamava Montanelas, apaixonou-se de imediato pela Tita dos Pés
Sujos, que para ele tinha um corpo sensual mesmo estando deformado pelos
distúrbios da mente:
-
Faz-me lembrar a Albertina das Mamas Grandes do “Dallas Cowboy”!
Mas
como ela já tinha dono, o Frank Moka, cortou o dedo mediano, para não ter que
matar o rival. Aproveitou o balanço sinestésico, na qual a mente é empurrada
para o convívio com os fenómenos primitivos, e convenceu o Álvaro de Campos,
Cavalo Malandro no seu caso, a cortar o indicador, para não ter de matar o
Octanas, que tinha bafo de gasolina, e assim ganhar o “Prémio Nobel da Paz”.
Sobrou o polegar, com o qual tirava o sebo das orelhas. E quando cortava os
dedos nem tugia, nem mugia, agarrava no pedaço e atirava-o para o caixote do
lixo mais próximo, gritando:
-
Nunca renunciarei a Satanás, que me perdoe o padre Januário.
Um
dia acordou a anunciar que D. João II, o “Príncipe Perfeito”, encarnara-o!

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