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315 estórias

Tuesday, October 21, 2008

O Submarino I

Comandante Guélas
Série Paço de Arcos 

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Estamos no ano dois mil e oito d.C. e os membros do Gang de Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos, que puseram o PREC à beira de um ataque de nervos, trocaram os “peidociclos” por iates à vela e não há regata no Tejo que não conte com estas tripulações de luxo. Mas antes disto os “cotas” tiveram de ir tirar a carta de “Patrão de Costa”, porque hoje tudo é muito diferente dos saudosos anos da revolução, em que bastava ter um palmo de altura para se saltar para os comandos de tudo o que mexesse, desde a Sesaltina, passando pela “Zundapp” do João da Quinta e parando no “cabinado” do Pierre-Pomme-de-Terre ou no potente quatro cavalos do Horta. E como a maioria dos Paço-arcoenses tinha optado pelas “Letras” no 6º ano do Curso Geral dos Liceus, o exame final foi um fiasco para alguns. O Vaca Prenhe apanhou com cálculos logarítmicos e enfiou com o barco virtual na Trafaria, em vez de Belém como pretendiam os examinadores. Esta é a história duma dessas tripulações, a do “Carapau Cocciolo”, um soberbo iate de cor cinzenta, mais conhecido como o “Submarino”, igual à cor das saudosas cuecas que o Bajoulo levava para Cascais nos tempos do PREC (Período Revolucionário Em Curso). A tripulação é constituída por quatro indomáveis gerontes Paço-arcoenses:
1 Velho Artista do Mar com 75% de desconto durante 10 anos, segundo documento oficial;
1 Velho Empresário das Lulas, com várias dioptrias e vestígios de ter sido no passado um loirinho irresistível;
1 Velho Cabeçudo que anda agora na Universidade para a Terceira Idade, porque não quer ir para a cova sem antes ter “Dr.” nos cheques;
1 Velho Homem do Leme e proprietário da embarcação, que faz a vez do “Balão” quando vai para a proa.
O Velho Peidão, o mais ajuizado de todos os tempos, já andava com a pulga atrás da orelha, porque de cada vez que se deslocava em passeio até à Marina de Oeiras, para cumprir o Circuito do Reumático, apercebia-se da ausência do “Carapau Cocciolo”. Soube toda a verdade quando deu de caras, na secção das frutas do shopping, com o tripulante dos 75% de desconto, que lhe contou a estrondosa vitória que tinham arrecadado na mítica regata “Patrão Lopes”, com partida na foz do Jamor e chegada na foz do esgoto da Praia Velha, e tudo isto graças a ele. A partir desse dia o Velho Homem do Leme pôs a tripulação em estágio, e obrigou-os a treinar diariamente. Daí o espaço vazio diário na marina! Sentaram-se calmamente no banco junto à frutaria e o 75% contou a aventura, com relato exclusivo no “Bord’água”.
- O marujo com desconto vai para um lugar de destaque, - ordenou o capitão do “Carapau Cocciolo”.
De imediato o Cabeçudo, de nome próprio Pontas, agarrou no ancião e amarrou-o à proa, não fosse ele cair devido a um golpe de vento traiçoeiro e atirar pela borda fora a vantagem de levarem um velho ao quadrado com 75% de desconto, que lhes permitia partirem vinte minutos antes. Mas para isso tiveram de colocar na popa um autocolante azul com o desenho de uma cadeira-de-rodas.
- Dá-lhe uma seca de história que ele adormece e não se mexerá muito, - avisou o experiente lobo do mar de nome Mac Macléu Ferreira, um homem com um contacto diário com lulas e especialista em mapas, onde a evolução da prova era seguida, sinalizada e decidida. Nestas alturas este cartógrafo deixava sempre as lunetas em casa e guiava-se pelo instinto, sinal do uso de tecnologias sedutoras.
- Das mesas às camas, das loiças às roupas, tudo foi passado a pente fino pelo exigente comandante do “Carapau Cocciolo”, também conhecido por “submarino”, com um rigor e uma autenticidade que fazia com que estes heróis paço-arcoenses regressarem ao tempo pós-25 de Abril, vivido sobre o abismo, - contou o 75% ao atento e responsável Velho Peidão, ao mesmo tempo que deglutia um gostoso “Bollicao”, acompanhado por “Pistachios” chineses.
Cada embarcação era obrigada a ostentar um pavilhão com a figura imponente da ex-miss praia Quitéria Barbuda, a ninfa do Jamor, e até nisto o “submarino” estava a milhas de distância, pois o seu proprietário, um homem sempre ligado a causas sociais, deixara o 75% hastear o desenho que fizera quando estava à espera que a Junta Médica lhe fizesse a inspecção. Na linha de partida alinharam-se os melhores veleiros da Costa do Estoril, com destaque para os dois representantes paço-arcoenses, o “Carapau Cocciolo” e o “Todos-os-Chatos”, este com lugar cativo no terceiro lugar em todas as provas com 3 concorrentes. Um minuto antes do flato do Pacheco, igual àquele que dera vinte anos antes em Espanha no meio de um grupo de meninas que tinha cercado o capitão do “Carapau Cocciolo”, tiro este que daria início à regata do “Patrão Lopes”, o “Submarino” foi autorizado a avançar 75 metros em virtude de ter um tripulante com o mesmo valor de desconto, seguindo o mesmo princípio da “MultiOpticas”. A tripulação sabe que nunca poderá usar o radar, pois os seus efeitos no colega 75% são equivalentes à “Kryptonita Verde” sobre o Super-Homem, e a última coisa que este quarteto deseja é ser capa do “24 Horas” a dizer “Racismo a bordo do Submarino”. E para terminar uma reflexão sobre o “Sub-Gang do Carapau Cocciolo”. Há uma vertigem libidinosa tão intensa nesta tripulação, centrada numa das questões mais em aberto na história desportiva paço-arcoense, a vitória. A tripulação do “Carapau Cocciolo”, também conhecido como “Submarino”, representa a humildade cívica, moral e intelectual da vila de Paço de Arcos, e o gang será sempre recordado como uma espécie de vanguarda estética cujos membros nunca couberam em categorias. Eles são, não os últimos moicanos, mas sim os últimos membros do Império Espiritual Português.

Tuesday, October 07, 2008

Operação “Solaris”





O Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

A História fala muito da guerra química que dizimou as trincheiras da Flandres, mas nunca mencionou o cogumelo de fumo que ficou para sempre gravado nas memórias dos adolescentes de Paço de Arcos no longínquo Verão Quente de 1975. Foi neste dia que Paço de Arcos ficou para sempre ligada a Andrei Tarkovsky.
  
Vivia-se uma espécie de epidemia mental sob a forma de pensamento único universal, a época era a do PREC, os camaradas Durão Barroso, Nuno Crato e pandilha eram donos e senhores das ruas, e tentavam substituir-se ao ministério na reeducação do povo. Mas havia concorrência! No Cine-Teatro de Paço de Arcos os pupilos do Barreirinhas oferecerem um dia às massas o filme russo rival do americano "2001 Odisseia no Espaço", que tinha um título que mais parecia a marca de um bronzeador:  “Solaris “. A juventude paçoarcoense compareceu em massa ao evento cultural, devidamente apetrechada com um argumento que não iria deixar chegar ao fim o filme feito por uma sociedade cujos promotores diziam ser "o paraíso na Terra". Ainda não tinham decorrido cinco minutos de projeção e já o Graise e o Peidão despejavam sobre o pó, de nome "Litopone", comprado no Zé da Antónia, uma garrafa de Ácido Muriático. Formou-se de imediato uma nuvem esbranquiçada que saiu direitinha, e em formato de cogumelo, para os lados do balcão. O Chico Sá, que tinha acabado de entrar, fugiu em debandada, assim como o Focas, que já estava a dormir, e que passou por cima do único preto que havia em Paço de Arcos, e que acabara de adormecer encostado ao ombro do Conan Vargas. Cinco minutos depois foi o Marreco, o responsável pela projeção, e atrás dele todo o cine-teatro, incluindo os camaradas. Os responsáveis pelo evento cultural depressa acusaram a “reação” de ser a responsável por tão vil atentado, que punha em causa a balda, perdão, a liberdade! O Todo-Boneco nem teve tempo para gritar a sua famosa frase, “espera aí que já cospes”, porque não houve  cenas com beijocas, cujas revolucionárias tinham bigode, com língua e tudo, uma oferta da revolução . O Milhas, a partir desta noite, ficou para a História como o espetador que permaneceu sentado, impávido e sereno, à espera  do recomeço da projeção. O Álhi, o bombeiro de serviço, ainda tentou apagar o fumo com a sua mangueira pessoal, mas fugiu a tempo, o cheiro intenso a merda superava o odor da sua nova companheira, e a isso ele não estava habituado. Na rua acusava-se o MIRN, e tentavam descobrir os autores de tão vil ataque químico. Foram chamadas as autoridades, representadas pelo Cabeça-de-Giz e o Chefe Bigodes, inimigo juramentado do Mac Macléu Ferreira, que iniciou de imediato a investigação, dirigindo-se ao local onde os organizadores do evento juraram terem-se refugiado os "meninos do MIRN", o restaurante “O Tino”, situado num daqueles sítios onde iam aqueles que não podiam ir a outro sítio, e onde o frio de fora juntava-se ao frio de dentro, numa casa de pasto que tinha como missão destronar o seu vizinho galego, dono do restaurante "Os Arcos". Quando entraram no estabelecimento comercial deram início ao inquérito, dirigindo-se ao primeiro suspeito, o senhor Carlos Ponta, que estava a fingir que jogava, numa máquina de “flipers” desligada. O interrogatório foi acutilante, outra coisa não se poderia esperar da tão famosa dupla:
- O senhor estava no cinema? – Perguntaram, com um olhar penetrante, do alto dos seus galões.
- Sim, senhor guarda.
- E o que foi lá fazer?
- Ver o filme, - respondeu o adolescente tirando um tremoço dum prato de alumínio amolgado, onde abundavam pequenos pêlos encaracolados.
Fim do Inquérito!
A projeção recomeçou uma hora depois, no meio de um enorme cheiro a esgoto, em que os únicos espetadores foram obrigados a assistir por ordem do Comité Central. Ao lado deles estava o Milhas que, como se disse atrás, fora o único otário a contribuir para o partido.