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315 estórias

Thursday, March 31, 2016

O Carro de Aluguer

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


O primeiro elemento do Gang a ter a carta de condução de veículos automóveis foi o Pilas, tirada na Escola de Condução do Cruz, lá para os lados do Campo Pequeno. E não foi preciso ir a nenhuma aula teórica e as práticas foram poucas. O padrinho Cruz confirmava as presenças antes de se marcarem os exames na DGV. Eram estas as condições por se ter morada na região mais importante da Península Ibérica, a encantada vila de Paço de Arcos, onde praticamente todos conduziam desde os 10 anos. O analfabruto do pai do João da Quinta nunca teve a carta mas isso não o impedia de fazer colecções de motas e carros. Até ao dia em que o filho lhe tirou um dos bólides da garagem, com a ajuda dos amigos, todos a empurrarem, tendo pegado engatado lá para os lados da vacaria. A viagem foi sempre a abrir até Caxias, tendo acabado abruptamente de encontro a um carro estacionado, depois do João da Quinta se ter distraído com uma moça de bigode que passeava atrevidamente, com os pêlos das pernas ao léu. O facto dele guiar em pé, para assim poder ver a estrada, também não ajudou muito. O Cocciolo, que ia no lugar do morto, bateu com os cornos no vidro, mas não teve lesões aparentes. Segundo o Graise, um expert na matéria, que estava sentadinho atrás do motorista e se apoiou na sua cabeça, para não ser projectado contra o seu cabelo oleoso e cheio de penas de galinha, “as consequências para a saúde mental do Cocciolo só se tornaram visíveis anos mais tarde, quando ele demonstrou enormes dificuldades em ultrapassar a adolescência”. Carro imobilizado, fuga imediata! Foram todos? Todos, não, restou o filho do proprietário do veículo, momentaneamente impossibilitado de se mover, porque o seu único neurónio estava atordoado devido ao impacto do Graise, sendo por isso incapaz de enviar uma ordem de jeito às pernas.
- Quando chocámos ainda o ouvi gritar, “mãe dá-me uma carcaça que eu estou cheio de traça”, – disse o Peidão para o Pontas durante a fuga em direcção à casa do Jorginho, que dava nessa noite uma festa, com a presença do irmão adoptivo, o Alice, que tinha vindo com a Descolonização e trouxera com ele os primeiros de muitos charros que iriam colonizar a vila e acelerar a ida para a cova a muitos.
Quando a populaça deitou a mão ao João da Quinta, ele ainda não tinha recuperado a consciência de si próprio e da coça que iria levar do pai. Dito e feito, foi obrigado a ir ao “pão por Deus”, cujos fundos iriam reverter para o arranjo do “Ford Taunus Carrinha Verde Alface”.
A carta de condução do Pilas dava direito a tudo. Até para alugar um carro marado numa agência clandestina, enchê-lo de amigos e de malas, e rumar ao Algarve prego a fundo, com o Botelho a mandar vir por causa da posição da mala: estava virada a Sul e ele queria que ela apontasse para o Norte Magnético. Enfim, cada maluco com a sua mania! Mas na véspera da viagem para sul, parte do gang deu de caras com o “xaço” do Mayer, que estava estacionado lá no alto, “meio-abandonado meio-com-dono”. Foi-lhe aplicada a lei de “barcos vazios no alto-mar” e a porta aberta contribuiu para a entrada, mas o volante trancado impossibilitava o passeio. O estudante Focas estava na máxima força, representava o produto final de uma mistura desportiva explosiva: Boxe e Karaté. O barulho de algo a torcer foi quebrado com o desmaio do volante e da direcção no colo do “Cassios Clay de Paço de Arcos”, acompanhado por um espectáculo de fogo pirotécnico que saia dos fios em curto-circuito. A corrida começou de imediato mal o travão-de-mão deixou de cumprir a sua função. Estavam no alto, não precisavam de motor para nada. O “xaço” atingiu a velocidade do som logo na recta e quando fez a primeira curva, todos se aperceberam que o Focas não fazia questão de usar os travões. Iria até à desintegração total. O Chico Sá abandonou de imediato o “Ferrari”, o Graise também, o Pontas “idem aspas aspas” e quanto ao Peidão, que ia no meio, não conseguiu sair, porque o estudante Focas já tinha encostado o carro a um muro e impossibilitou-lhe a fuga. Só se viam fagulhas a sair do bólide. E eis que, contra todas as expectativas, o motorista guinou o volante, obrigando o Renault a fazer um ângulo de 90º, ficando de frente para o muro do jardim dos senhores doutores vermelhos. O Focas saiu como se tivesse carregado num botão de ejecção automática e o Peidão escapuliu-se no limite, conseguindo ainda ver, do ar, o embate do carro no muro. Um levantou as quatro rodas e o outro abanou como uma bailarina. Durante uma fracção de segundos reinou o silêncio. A maioria estava borrada, apesar de estarem quase todos na fronteira para a idade adulta, e como tal responsáveis pelos seus actos. Mas como o período ainda era de revolução, poder-se-ia sempre dizer que tudo isto consistia num protesto contra os “chalés burgueses”, mesmo que todos habitassem em chalés, e este muro em questão pertencia a pessoal íntimo e amigo da “classe operária”. O mini-gang dispersou misteriosamente deixando o carrito onde estava, mas no dia seguinte o Renault estava a dormir profundamente dentro de um buraco de uma obra, lá para os lados das escadinhas da estação, com o rabinho para o ar e cercado de rudes trabalhadores, impossibilitados de cavar. Teria feito os últimos cem metros da vertiginosa descida por conta própria ou os meninos-ricos tinham-se reorganizado e acabado a tarefa a que se propuseram? Uma pergunta sem resposta, pois todos juravam que a sua participação nesta brincadeirinha de jovens recentemente libertados pelos Capitães de Abril, que os safaram de irem jogar às escondidas com os turras, tinha acabado no momento em que o “chaço” marrara contra o muro. No dia da partida rumo ao Sul os turistas levantaram-se cedo, atestaram o carro com a gasolina encontrada nos depósitos dos bólides que estavam aparentemente abandonados nos passeios na noite anterior, e foram todos buscar o Botelho a Nova-Oeiras, que tinha feito um pedido especial de entrada com descrição na rua onde morava, pois o pai andava muito traumatizado, porque o filho insistia em marrar com o Mini de cada vez que saia de casa para ir passear com os amigos, lá para os lados de Cascais. Uma semana antes tinha conseguido chegar ao destino sem qualquer precalço e quando se preparava para estacionar o carro num parque lá para os lados do “Senhor Balão”, assustou-se com a salva de palmas que os amigos lhe dedicaram e em vez de desengatar o carro, tirou o pé da embraiagem e marrou contra o muro. Por momentos ficou um silêncio sepulcral, mas depois as palmas continuaram, mas desta vez para aplaudir a tradição e não a excepção. A entrada do Pilas foi à Leão, o carro guinchava e fumegava por tudo o que era buraco, Nova-Oeiras veio toda às janelas.
- Obrigado Pilas, – agradeceu o Botelho colocando a mala na bagageira, viranda para Meca.
A viagem até ao Algarve correu sem incidentes, o carro foi sempre a ganir e os passageiros em farra permanente. O destino não contemplava nenhum acidente para estas datas, apesar de o estarem permanentemente a provocar. A primeira paragem foi na praia da Oura onde pernoitaram. O auto-gang agarrou nos sacos-camas e montou acampamento junto a uma falésia. Após as duas da manhã os meninos ricos de Paço de Arcos foram recolhendo aos aposentos à medida que iam chegando. O Pilas foi o último e, para manter a tradição, fez nova entrada à Leão. Vislumbrou uma fileira de sacos-camas, desatou numa correria e quando já estava perto, fez uma chamada a pés juntos e “aí vai alho” para cima dos turistas. As bejecas tinham-lhe toldado o sentido de orientação e enganou-se. Os amigos estavam na curva ao lado. Teve de acelerar e desaparecer na escuridão da praia, porque ia uma multidão atrás, pronta para lhe “fazerem a folha”. No dia seguinte a excursão rumou para a Torralta porque o Pilas, o único encartado, estava obcecado na procura da sua Olívia, uma dama da Linha, que tinha vindo para o Algarve com a família e deixara o namorado na capital. Mas o Graise não se conteve e gritou do banco de trás:
- Primeiros para a olívia!
Caiu tão mal na alma do Pilas, que ele largou o volante e veio pedir explicações ao violador. Valeu a pronta intervenção do Mac Macléu Ferreira que deitou as mãos ao leme, mesmo sem óculos, conseguindo manter o carro fora-de-mão, mas na estrada. O ofendido voltou à posição inicial quando lhe explicaram que o Graise tinha este nome de guerra por causa da travadinha que lhe dera durante um jogo de basquetebol familiar 5x5, e que a partir daí tinha sido sempre a descer, principalmente no que referia aos comportamentos. Ele tinha dito realmente “Olívia”, mas pensara no cágado com que namorara uns anos antes, na célebre festa onde proclamara aos amigos solteiros que aquela festa “era só para orientados”. A chegada às torres manteve o mesmo estilo, com o bólide a berrar e a deitar fumo dos sapatos, com acompanhamento das vozes de seis “meninos de coro” das boas famílias “Paçoarquianas”, que iam pendurados nas janelas. Respirava-se liberdade e a “liberdade” significava “balda total”. O carro ficou onde parou e o sentido era só um, praia. Ainda o “gang” não tinha arranjado espaço para montar o acampamento e já o Pilas descobrira uma sereia em cima duma plataforma que estava ao largo.
- Será a Olívia! – Pensou.
Tinha prometido a si próprio que só pararia quando encontrasse a sua musa e isso implicava todos os sacrifícios, até fazer os 50 metros que o separavam da jangada.
- Vamos nadar até ali, - gritou, correndo para água.
Todos acompanharam? Todos, não! O intrépido Botelho sentara-se na areia e recusava-se a acompanhar os amigos.
- Vou ficar aqui a ver as vistas, – exclamou com um olhar maroto, puxando a franja ensebada para o lado.
O Pilas nem queria acreditar quando, após aquele esforço hercúleo, deu de caras com um autóctone cheio de bexigas e cabelo oleoso a tocar nos ombros. Quando estavam prestes a regressar, chegou o garanhão.
- Então, afinal também vieste?
Como não tinha pescado nenhuma rola, resolvera vir tentar a sua sorte com o “Camarão da Torralta”. Mas não teve tempo para lhe ver o sexo, pois a ex-Olívia mergulhou na altura em que o Botelho trepou. E agora não tinha forças para persegui-la. Neste entretanto apareceram, vindos das profundezas, o senhor Pilas e o estudante Graise, que deram aviso de retirada aos amigos, excepto ao garanhão do cabelo ensebado. A chegada à praia foi um pouco mais lenta porque a maré estava a vazar. Quando se sentaram na areia foram informados pelos dois mergulhadores de que três dos cabos que prendiam a plataforma tinham sido soltos. Era por isso que o Botelho não passava de um ponto no horizonte. Só conseguiram reunir-se com o Sol já posto, pois foi nessa altura que o último dos “paço-arcoenses chegou a terra firme.
A próxima paragem ficou marcada para os lados de Lagos, mais propriamente na quinta familiar de uma amiga. Quando apareceram na cidade deram de caras com outros artistas, gerando-se uma confraternização espontânea num restaurante com uma sereia à porta, que debitava água para um lago que estava aos seus formosos pés. A festa durou pouco, muito pouco, pois o Bernardo Sá resolveu tirar um dos mamilos da ninfa com o alicate que o Bajoulo usava para gamar motas. O dono nem queria acreditar quando viu que a estátua de mármore, de quem sempre se lembrava quando brincava aos índios com a sua Maria de bigode, não passava agora de uma pobre deficiente que nem para fonte servia, muito menos de inspiração. A debandada foi geral, Burgau foi o nome escolhido para próxima capelinha e guardada para uma próxima aventura.


Sunday, March 27, 2016

Simplesmente Balbina

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


As estórias do Gangue dos Meninos Caucasianos de Famílias de Bem de Paço de Arcos (GMCFBPA) escrevem‑se devagarinho, umas páginas aqui, outras ali, por vezes volta‑se, porque elas são o resultado de uma estranha e intensa relação cercada por prisões afetivas. Através delas podemos ouvir, cheirar, saborear, palpar, são extraídas das memórias pessoais e das memórias de pessoas com quem crescemos, calcorreamos os territórios  da adolescência, revivemos momentos inquietantes, sentimos todos os sentimentos. Somos do tempo que fazer férias em Sagres significava acampar no parque selvagem junto à praia mais “in” da localidade e ir jantar ao mini-restaurante do Gordo Caixa de Óculos, proprietário de uma discoteca cujo nome era “Solemente para Amigos”, e onde os meninos e meninas de Paço de Arcos tinham entrada exclusiva. Uma espécie de “Kadoc”! Mas os sem-abrigo podiam sempre contar com a casa do Cocas, onde um Eterno-Noivo costumava estacionar a roulote com a noiva do momento. Sagres parecia um acampamento da ONU, ouviam-se todas as línguas. E a confusão era tão grande, que podiam dar de caras, a meio da noite, dentro da suas tendas, com alguma estrangeira bêbada a cheirar a estrume. Mas num dos anos foram presenteados com uma artista do Porto, de nome Balbina. Todos os dias levava para a tenda um namorado novo, que era obrigado a deixar os sapatos à entrada, e pelo tamanho das faluas, tentava-se adivinhar a altura do franguito. A senhora Balbina como portuguesa falava várias línguas, e tinha um volume de voz que se ouvia à distância, usando a língua pátria nas alturas em que desejava insultar a "comida":
-  O teu coq est parfumé à mort, javardo!
Foi uma espécie de novela, a “Simplesmente Balbina”, que animou as noites de Sagres durante quinze dias! 
- Das ist es, boche. Fosga-se!
Uma noite rondou a tenda do irmão do Chinoca, e este manteve-se em silêncio com recheio de ser chupado até ao tutano.
- Juro que o vi a entrar!
No dia anterior encontrara uma alemã a ressonar lá dentro, tinha-se enganado na porta. Mas houve mais!
A tenda do paço-arcoense mais ajuizado, e de nome Peidão, também fazia parte do acampamento da ONU, e era a mais pequena habitação da zona, porque o citado adolescente “não quis gastar muito dinheiro na altura da aquisição”, segundo palavras do Pontas. E, portanto, ele e a namorada tinham de entrar de gatas. Numa das noites de Sagres muito ventosas, o Graise foi pedir lume ao Peidão e teve de acender o cigarro com a cabeça dentro da habitação.
- Cuidado, que isto é de “nylon” e arde rapidamente, – disse o fumador, sem se aperceber que o aviso tinha acabado de acender o rastilho de acesso aos neurónios do Peidão.
Quando a noite ainda ia a meio, o proprietário da barraca minorca, em sono profundo, sonhou com um incêndio e só acordou quando já estava meio de fora, a olhar para o café que nunca conseguia ver, e com os farrapos da tenda a balançarem ao vento. Tinha saído pelas traseiras.    


Friday, March 25, 2016

A derradeira festa do Cavaleiro

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


O Cavaleiro preparava-se para dar mais uma festa grandiosa e insistia em não convidar os adeptos do Comandante Guélas. Mas como era tradição, o Gang já sabia e aprontava-se para mais uma noite bem passada. A casa estava dentro de uma quinta, situava-se no topo e pelo meio morava o Zé Preto. E nessa noite o Botelho iria levar o primo, tendo como obrigação protegê-lo de todos os perigos. Foi por isso que o Mac Macléu quando lhe deu boleia, na sua Zundapp, pôs o petiz no meio, para não cair. Eram nove e meia da noite quando o G.M.R.C.P.A. se apresentou à porta da casa onde se ia desenrolar o evento. Desta vez foram recebidos por cinco seguranças adolescentes, todos vestidos de preto, incluindo luvas, e com um ar muito mau.
- Só entra quem foi convidado, – informaram, com vozes de trovãozinhos, os terríveis seguranças imberbes.
O Charlot rosnou, mas não o deixaram avançar. Foi o Pilas. Mas depressa o convenceram de que esses não eram os métodos adequados à situação. De todas as outras vezes tinham conseguido entrar, sem usarem a violência, que fazia parte do espírito do “Guélanismo”. Pediram para falar com a mãe do Cavaleiro. Tinham de esperar! Lembraram-se da primeira festa das suas vidas, no Alto de Paço de Arcos, e de terem dado de caras com o Graise à porta, agarrado à sua primeira namorada, a miúda mais feia da Costa do Estoril, um cágado com bigode:
- Esta festa é só para orientados, – disse apertando a anã.
A frase ficou para sempre na memória de todos os paço-arcoenses pertencentes ao Gang dos Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos.
A um dado momento passou um adulto pela parte de dentro da casa, que foi detectado pelos penetras:
- Tia, tia, – chamaram com uma voz doce os seguidores do Comandante Guélas.
Todos sabiam que a senhora já estava mais para lá do que para cá, devido aos efeitos do sumo de cevada, e ao tamanho do decote, impróprio para rapazinhos na puberdade.
- Olá, olá, – respondeu a proprietária do imóvel, tentando recordar-se do nome daquelas caras desconhecidas.
Mas a técnica era essa. Ela nunca iria dar parte fraca.
- O Zé convidou-nos, mas ele está lá em cima e os seguranças não nos querem deixar entrar, – queixou-se o Velhinho, dando um beijo à tia.
- Mas que disparate, eles podem entrar, são amigos do Zé.
Os imberbes de preto abriram alas e os membros do G.M.R.C.P.A. treparam até ao sótão. Quando passou pelo tenebroso homem de preto que chefiava a equipa, o Pilas deitou-lhe a língua de fora e o Charlot rosnou-lhe aos ouvidos. Lá em cima a festa estava animada e bem organizada. Dançava-se num lado e compravam-se bebidas no outro. Compravam-se?!! Sim “compravam-se”, passado! O proprietário ausentara-se devido a uma necessidade fisiológica e, entre amigos, não havia necessidade de fechar o estabelecimento comercial. Mas por alguma razão o G.M.R.C.P.A. não tinha sido, mais uma vez, convidado e, mais uma vez, entrara. E o João Sá, mais uma vez, prontificou-se a tomar conta da ocorrência. Declarou “Bar Aberto”, e começou abastecer de “bejecas” o grupo de meninos ricos de Paço de Arcos. Quando o Cavaleiro chegou o Bar era do povo, a população abastecia-se de borla, amigos e inimigos. Um acontecimento destes não sucedia em todas as festas. A única solução era encerrar temporariamente para balanço, apesar de toda a gente saber que era negativo, negativíssimo! O João Sá ainda não tinha acendido o cigarro e já estava no olho da rua, encostado à porta do bar, que se fechara. Mas como era de madeira não resistiu aos dois biqueiros que levou. Abriu-se então um grande buraco na parte de baixo, que foi por onde passou a cabeça, para pedir lume ao patrão.
- Mãe, maeeeeeeeee, -gritou o Zé, descendo apressadamente as escadas, ao mesmo tempo que a turba, de amigos e inimigos, lhe invadia o Bar pela segunda, e definitiva, vez.
A mamã veio a correr, com o chefe da segurança atrás, e entrou no Salão de Dança para botar discurso. A música parou e a tia deu a entender aos sobrinhos que estava muito magoada com eles. Tinham-lhe partido a bilha toda…perdão…a porta do Bar e isso era muito feio. Como se esperava, todos negaram o acto! Mas eis que a porta se fechou, deixando-os todos trancados no Sótão.
- Abram, é uma ordem, – gritou a dona da casa.
Ninguém respondeu!
- Eu sei que está aí alguém do lado de fora. Se não abrir a porta expulso-o de minha casa.
Só se ouviram palavras obscenas que foram dirigidas à tia. Quanto à porta, continuou fechada até ser arrombada. Do outro lado não estava viva alma. Teria sido um fantasma? A festa continuou porque todos os que estavam ali eram filhos de “boas famílias” e juraram, por escrito, que não tinham feito nada. Aliás, como ficara provado, o responsável por tudo aquilo tinha sido aquele que momentos antes havia vilipendiado a tia escondendo-se, talvez por vergonha, atrás da porta. Para garantir que o que tinham prometido era cumprido, a proprietária do imóvel ordenou ao único segurança que tinha tido a coragem de a acompanhar ao reduto, porque sabia que junto a ela estava seguro, para ficar a tomar conta dos primos. Foi uma má decisão. O Pilas aproximou-se do garanhão e rosnou-lhe. Não houve qualquer tipo de reacção. Entrou então em cena, contra todas as expectativas, o irmão do Zé Pincel que queria já ali ajustar contas com aquele que horas antes lhe tinha barrado a entrada e que agora ele sabia estar em minoria. Foi barrado pelo “paçoarquiano” Peidão, o único com algum juízo, que o virou ao contrário e o deixou cair, deixando-o abananado e a cuspir fininho junto a uma janela, não fosse faltar-lhe o ar. E nesse momento os fusíveis foram, pela décima vez, propositadamente abaixo, o que levou à precipitação dos acontecimentos. O homem de negro foi selvaticamente atacado e quando a luz voltou estava prostrado no chão, a queixar-se de falta de ar e das duas dentadas que tinha recebido no peito, apesar de não haver nenhum cão por perto. Não era preciso um animal desses para haver dentadas, o Charlot estava lá, e tinha andado em roda-viva durante as trevas. A festa continuou no andar de baixo com o ferido à espera da ambulância. Após a remoção do corpo a tia deu por encerrada esta noite louca, que iria ser a última. Todos se despediram da dona da casa e o Gang de Paço de Arcos montou nos seus “peidociclos” e foram colina abaixo. Mais uma vez o priminho do Botelho foi arrumado na Zundapp do Mac-Cléu , a meio. Mas faltava cumprir a tradição! A tia tinha a decorar o jardim uma monstruosa roda de carroça que ia sempre montanha abaixo no final das festas, para que no dia seguinte o primo Cavaleiro, com a ajuda das irmãs, fosse visto a empurrar o mastodonte para o local que lhe competia, tal como o seu antepassado Sísifo. Ainda os motoqueiros não tinham atingido o meio do caminho e já a roda se cruzava com eles, tendo o Botelho apanhado o maior cagaço do mundo, por ter imaginado que ela poderia ter colidido a meio da mota. Mas o destino foi outro. Nunca mais trouxe o priminho para Paço de Arcos! A roda só parou no quarto dos caseiros, junto à cama deles, e vinda do tecto. Como as relações entre a patroa e os empregados não eram das melhores, isto deu origem a um processo em tribunal, segundo reza a lenda.

Wednesday, March 23, 2016

Pó para Todos

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

Quando os cafés encerravam a actividade tornava-se febril. O Gang dos Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos funcionava por sazonalidades e uma delas consistia em valorizar a região e colocar a Costa do Estoril na rota dos grandes destinos de férias de qualidade. Entretenimento também era cultura e neste aspecto o grupo era muito criativo. A operação “Pó para todos” teve início no pólo cultural da moda, a Estalagem do Farol, e mais uma vez graças ao Max (o porteiro), que barrou a entrada ao Gang, junto a um extintor. Enquanto se esgrimiam as vantagens e desvantagens de permitir a entrada de 25 gandulos, de boas famílias, na discoteca, parte deles desmontou o garrafão de “Pó ABC” e todos juntos saíram do espaço de diversão com o extintor ao colo e a cantar os “parabéns a você”. O aplauso foi geral, do Max que conseguiu ver-se livre daquelas melgas que lhe infernizavam a vida e do Rodrigues (o dono) que estava na fase sentimental da bebedeira:
- Vê-se mesmo que são filhos de boas famílias, tão ordeiros, - disse, limpando uma lágrima ao canto do olho. – Levam o aniversariante ao colo.
Mal ele sabia que o amigo era um extintor de 10Kg, e não tinha por nome Peidão, porque o agente propulsor da botija era o nitrogénio, enquanto que este andava a metano. O Pacheco levou seis no carro e do lugar do morto era quem levava o brinquedo. O primeiro aviso foi dado logo ao sair do parque:

BROOM

E ficou uma nuvem branca na noite escura. Estava operacional, mesmo caducado. Contra todas as probabilidades, visto ser uma raridade na Costa do Estoril, habitat de queques, o carro parou junto a um par de pretos, que se aproximaram todos solícitos quando o Pilas os chamou delicadamente, tratando-os por “patrão”:
- Ó preto, queres ficar branco?

BROOOOOOOOOOOOOOOOOOM

A nuvem que se formou parecia um cogumelo, mas por estranho que pareça os clientes não saíram de dentro dela, tendo-se limitado a sacudir o pó, à procura de ar. Enfim, maneiras diferentes de reagir perante imprevistos. A próxima paragem foi em Oeiras, junto à taberna que era paredes-meias com a esquadra da polícia. Mais tarde este local de venda de meio-gordo branco modernizou-se e tornou-se numa agência bancária, cujos funcionários trocaram os aventais com desenhos de pipas por fatos com gravata, mas a qualidade de atendimento diminuiu grandemente, assim como o número de clientes. O Pilas carregou no gatilho e só o largou muitos minutos depois, quando o pó acabou. Ninguém reagiu. Uma nuvem branca saia em fúria do estabelecimento, mas da Associação dos Amigos do Tintól não havia viva alma. Só dez minutos depois é que saiu um cliente a cambalear. Mas foi só 1! O que é que terá acontecido aos restantes sócios? Ficou tudo no segredo dos deuses porque o “Correio da Manhã” ainda não passava de uma intenção.