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315 estórias

Tuesday, October 29, 2019

Paradoxos Colegiais







 Comandante Guélas

Série Colégio Militar



O almoço do curso de 1971/78 foi de confraternização, vinte e seis de outubro do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de dois mil e dezanove, sem direito a estacionamento dentro do recinto da Feitoria porque o Gordini recusara-se a pagar os cinquenta euros mais IVA que o sub exigia aos ex-alunos, e não aos generais, políticos e afins, e após uma refeição grumete muito original, caldo verde, amarelo e arroz doce, regada com líquidos mais uma vez identificáveis, como mandava a tradição, o 281 confessou:
- Dormi oito anos com vocês!
Olharam uns para os outros, e o 598 acrescentou:
- A frescura da juventude!
No Colégio Militar o ambiente nos anos setenta do século passado era propício ao desenvolvimento pecaminoso, por isso usava-se uma língua bicuda, cheia de ângulos retos e triângulos isósceles, estes Meninos da Luz tinham sempre algo para fazer, por isso recusavam o ócio como um pecado. O Colégio Militar era uma fogueira que não ardia, até que algo despertasse a chama. Por isso quando o Vinasse anunciou na camarata o “achamento” da entrada para o Túnel, o Santo Graal colegial, que ligava às Meninas de Odivelas, uma entrada direta para o inferno, após o consumo dum cigarro com bolor dado pelo 125, mal sabia dos acontecimentos que se iriam desencadear.

- Nem quis acreditar que o prémio Barretina que me querem dar intitula-se “Amor ao Colégio”, - confessou o Zacarias. – Amor??

O curso de 1971/78 mobilizara-se e mostrava porque é que alguém da “Geração de Oiro”, uma lavra irrepetível de génios e calões, merecia ganhar a “bola de oiro colegial”. Continuemos com as memórias despertadas pelo “Amor ao Colégio”!


Nessa noite o Horrível sonhou que estava no Instituto a «mordiscar ladrilhos de marmelada» com uma resma de fêmeas vestidas de castanho tentação, que o tinham recebido no mosteiro de S. Dinis, junto ao túmulo onde repousava o rei das barbas ruivas. Iria dar oito de seguida sem ver a luz da Lua, a contar com as mijas, mas mal desconfiava que as meninas também já escavavam há muitos anos, usando como ferramentas as pulseiras com o grupo sanguíneo, e estavam com vontade de chupar até ao tutano o primeiro Menino da Luz que lhes aparecesse pela frente, arriscando-se assim o 125 a deixar os ossos misturados com os do Lavrador. O primeiro sinal de que algo  mudara foi sentido pelas filhas do Galo, que todas as semanas montavam na pista de obstáculos, quando um dia ouviram durante toda a atividade um sonoro cacarejar de uma resma de Meninos da Luz, ao estilo Hitchcock , cujo som tinha origem no campo de futebol. No Laboratório de Línguas quando o professor se preparava para dar início ao “American Language Course”, com os rapazes já distribuídos pelas boxes tecnológicas, um “senhor aluno” gritou ao microfone:
- Óó Tabiii, chupa aquiiii”.
O docente tirou os auscultadores já com os olhos fora das órbitas e atacou com raiva o 224, que começara a grafitar a sua cabecinha, com olhos, nariz e boca, prometendo fazer um teatro com o fantoche quando entrasse num dos quartos. A Diolinda tinha um terror psicanalítico dos Meninos da Luz, via-os como a encarnação da «moral do prazer», o gene da atração fatal pelo espaço, cujo origem remontava ao tempos áureos de D. João V, o “freirático”.

Cantou-se o Zacatraz, mais potente que Viagra, ainda capaz de fazer levantar em sentido os ex- Meninos da Luz, com as cabecinhas a olhar para o céu, e as bocas escancaradas. Para trás ficara o trovadorismo amor cortês da altura em que o Instituto de Odivelas era uma referência nacional, e não o monte de ruínas da atualidade:
- As meninas de Odivelas / Pum, pum / As Meninas de Odivelas / Pum, pum / São umas pu / Tiro liro li / São umas pu / Tiro liro li / São umas pu / Tiro liro li / São umas pu…ras donzelas / As Meninas de Odivelas / Fazem bro…ca à janela / Os namorados dessas meninas / Dão o cu / Dão o cu/ Dão o coração por elas.
Para a Diolinda aqueles bardos fardados de cotim eram uma espécie de Bruxos Salemas, mas com tomates cheios, por isso a diretora não olhava a meios para afastar todas as tentações que pudessem conspurcar as almas puras das suas donzelas: mandara cortar as bananas às rodelas, proibira os espargos, as canetas de filtro grossas foram banidas das aulas de Desenho, as visitas de estudo às Caldas da Rainha expurgadas do plano pedagógico, tudo, tudo o que pudesse tresmalhar as Meninas de Odivelas para os lados da “liberdade de costumes”, afastando-as do colinho do Senhor. Mal sabia nessa noite que o 89, o 165 e o 376 estavam a caminho do mosteiro, não através do túnel, que ainda precisava de muita mão de obra para ser uma realidade, mas de táxi, decididos a invadir-lhe o espaço, com a cumplicidade de algumas discentes que tinham deixado estrategicamente algumas portas abertas. O Punhetas levava açaime, o estado em que se encontrava depois de ter sabido da descoberta do Vinasse aconselhava a medidas de proteção, e a um SOS extra, um frasco de clorofórmio gamado ao Valentim, e testado pelo 599 nas galinhas do pai da Rosa, que nestas noites pós “achamento” estava nos sonhos de toda a rapaziada.

- São tantas as recordações, as estórias, as cumplicidades, foi uma vida, - confidenciou o premiado.

E que vida:
- Meu tenente, daqui fala da portaria, - disse o Chico tão de rajada que o Ananás teve a sensação de apanhar com perdigotos.
- Calma homem, mas afinal o que é que se passa? Não me digas que o Caco está aí outra vez na portaria em cima duma Panhard, como no 25 de abril?
- No gabinete do sub está…..
- O que é que se passa no gabinete do sub a esta hora da noite? Estão lá alunos, foram fazer uma visita de cortesia?
O oficial ouviu uma voz, destoada e áspera, saíram clarões raros das profundezas do telefone.
- Chico, não digas que me vais obrigar a ir aí? Explica-te de uma vez por todas, – pediu o ex-aluno 78, agora no papel de cão.
- Vê-se tudo, a luz está acesa, - explicou o funcionário olhando para as janelas espelhadas, que de noite eram transparentes.
- Vê-se o quê?
- Uma senhora no gabinete…
- E??
- Está de cuecas…
- Cuecas? Uma senhora de cuecas no gabinete do sub a esta hora?
- …e de botas altas!
- Cuecas e botas altas?
- Só ela?
- Estão a correr…ele vai atrás dela. Vê-se tudo!
- Ele? Ele quem?
- O sub…está a brincar aos índios com uma senhora. Vê-se tudo!
Enquanto o subdiretor se divertia na Luz, em Odivelas o grito da Fernanda ao ver na sua janela um rapaz alto e espadaúdo, de olhos vivos, capazes de engolir o que viam, com um sorriso de marfim, e o número 147, foi o pingo que fez transbordar o copo. A pobre da Deolinda não aguentou a pressão dos demónios vindos da Luz, que já lhe tinham deixado na secretária um frade das Caldas com o dito em sentido, e deu o seu grito do Ipiranga:
- O Colégio Militar é persona non grata!
A Escolta a Cavalo estava proibida de fazer procissões até ao Instituto de Odivelas e eles não poderiam doravante assistir à grande seca da Abertura do Ano Letivo. Em 1964 o Comandante de Batalhão, o 8, tinha ido ajoelhar-se, em traje de gala, em frente à diretora do Instituto de Odivelas, pedindo desculpas pela invasão do ano anterior, vésperas da comunhão.
Por tudo isto e muito mais que isto, o “Amor ao Colégio” tinha de ser incondicional, para o bem e para o mal, e estava embrenhado bem fundo nas memórias de todos aqueles que um dia passaram pela Luz, especialmente estes que tinham lidado diariamente com a Rosa!

Sunday, July 28, 2019

Charles Ganzas




Série Camarada Choco

Aventura 98


Charles Ganzas



A TVI tem destas coisas, quando as audiências são poucas obriga os empregados a fazerem das tripas coração, e foi por isso que Queluz reinventou a biografia do trissómico mais mafioso da Brandoa, que nascera geneticamente entupido ao nível do hardware, com uma mentira sem limites, descaracterizado, normalizaram a sua família fraudulenta, afogaram-no em mentiras, um pobre coitado nas mãos de gentalha em roda livre, atolados nos seus próprios complexos. Uns dias antes a Fininha dos Serviços Administrativos atendera o telefone, e dera de caras com a mamã do Kodac, que lhe deixava um inusitado, e urgente, recado:

- Diga ao meu filho que quero saber onde é que ele escondeu o saco com as doses de erva do sobrinho, porque o miúdo tem de ir trabalhar.

Dizia-se que o mano do Kodac tinha ficado farto das estadias periódicas em Vale dos Judeus e emigrara para a Alemanha, deixando o rebento na Brandoa a gerir o negócio familiar. O Kodac era o bem-amado da zona, os brós idolatravam-no alimentando-lhe piedosamente o vício do tabaco e do sumo de cevada. Mas havia pré-condições, um pacote com vários maços em troca de algumas doses catadas ao sobrinho. Nesta família tão atenta, teve logo de amadurecer a partir do primeiro mês, porque caso o não fizesse não iria longe. E aprendeu que o cromossoma extra no par 21 não iria ser uma desvantagem na Brandoa, mas sim um passaporte para a impunidade, seria o rei da zona, com uma espiritualidade no andar, que brotava diretamente dos próprios pés, que exalavam um permanente cheiro a queijo indiano, e tudo graças a uma mistura explosiva de unhas encravadas, calos jurássicos, fungos locais, alcagoitas familiares, razão suficiente para a mãe nunca ter atendido aos pedidos desesperados da escola para que fosse mostrar os cascos do filho a um especialista. O Kodac apercebeu-se dos poucos neurónios da entrevistadora, por isso deixou a mãe enfeitiçar a pateta da jornalista com fake news:

- O meu filho é esperto, podia ter ido muito longe, mas só encontrou obstáculos na vida. O último sujeitou-o a um trabalho escravo no hospital, oito horas diárias para ganhar uns míseros 136 euros. Despediu-se!

- E fez muito bem, - respondeu a Poeiras.

Mas a verdade era outra, trabalhava três vezes por semana, quatro horas, o resto do tempo que deveria ser na Escola para Desaparafusados da Venteira, era cumprido no hospital a catar nas carteiras dos colegas, dinheiro esse que mantinha vivo outro vício diário, as raspadinhas. Entrava às nove horas, fumava no balneário, catava dinheiro aos colegas, tomava o pequeno-almoço às dez, desviava mais euros da caixa registadora, e fingia que trabalhava no restante.

- Passava todo o tempo a andar, - queixou-se a “extremosa” mamã, que dizia agora estar sempre sentado na escola, a fazer de segurança na portaria.

Desculparam-no durante anos por ter um extra no vinte e um, mas acabou por ir para a rua, despedido. Até para um monga havia limites! Os manos eram assim verdadeiras obras-primas da Natureza e da mão humana, um com três no vinte um, o outro com várias estadias em Vale de Judeus. Quanto ao pai, nunca reconhecera o filho, não se sabe se por não se rever na cara do rebento, e por isso ter pensado que um carteiro chinês tocara três vezes à porta, ou por consumir diariamente sumo de cevada que dava para um batalhão, mas por precaução o petiz estava proibido de fumar na sua presença, não fosse o papá explodir. A tia do Kodac não se conformou com o que lhe tinham explicado, que o rapaz não iria longe, tinha um cromossoma a mais no par 21, e por isso arranjou a morada de um médico “que até marrecos cura, e tudo com um limão”, como lhe explicara a amiga Laurinda, que fazia bordados para fora. Quando o doutor viu o trissómico da Venteira deu a receita:

- Eduque-o como ao outro!

Foi a sorte dele, na Brandoa não havia coincidências, tudo acontecia quando tinha de acontecer, na altura certa e no lugar certo, por isso agora na idade adulta aos fins de semana, sem variações, o Kodac não chega a casa, fica sempre estatelado num qualquer passeio da Brandoa, de braços estendidos, fitando os céus num movimento de translação onde, devido à mistura de erva e cevada dada pelos brós, uma estrela se transforma invariavelmente na amada Barbuda, que lhe expõe, sem preconceitos, a abundante turfa, que nasce nos pés e acaba nas beiças.

Saturday, July 06, 2019

Charles Love






Série Camarada Choco

Aventura 97


Não sei por onde hei-de começar esta estória. Talvez pelo princípio: o Pintor, o único licenciado de baixa densidade da Porcalhota com a força de uma epifania, acabou o mandato pedagógico na Escola para Desaparafusados da Venteira, reformando-se! Mas eu sabia que ele não iria deixar-se consumir pela bisca-lambida e milho aos pombos no Parque Central, era um velho capaz de responder às novas tendências sociais, proporcionando um conjunto de bens e serviços suficientemente latos, capazes de responder aos diversos anseios de cada consumidora, ávida por uma visita sua à cave. Por isso, estava eu calmamente a curtir uma “santinha”, epilepsia exclusiva da minha família pela parte da mãe, que se começou a manifestar após a morte da pastorinha com cara trissómica, que resolveu aparecer-me nos canos do balneário para machos da piscina que frequentava, com a saia levantada e as cuecas nos joelhos, quando fui repescado à realidade por alguém com um sotaque da Brandoa profunda. No écran da televisão estava, não o Dartacão como inicialmente pensei, mas sim o hilariante Pintor, com uma legenda de Formador Principal, que tentava a todo o custo convidar para o pecado, usando o seu mítico savoir faire, uma formosa, mas não segura, tia do Bolhão:

- Sou filho de alguém que morreu por amor!

Amor ao Moscatel sem limites, à cachaça ao pequeno almoço, ao meio-gordo à taça, enfim, uma panóplia ilimitada de químicos capazes de transformar em iscas qualquer fígado com pergaminhos. Mas felizmente deixou à Humanidade uma figura singular, uma ostra única, um fidalgo com marca própria: Charles Love!

Um reformado com um estilo romântico próprio, promissor, capaz de preservar o património local:

- Fui candidato ao Festival da Canção!

 Da televisão muda, que mesmo assim o rejeitou mal o viu!

- Eram só cunhas, como é que se podia recusar uma figurazinha destas? – Explicou um dia fazendo uma auto massagem.

E continuou:

- Contracenei com a Marreca de Monsanto na longa metragem “Pinceladas para que te quero”.

E continuou:

- No sítio onde exerço a minha profissão de Forrador, perdão, Formador Principal, dirijo um Atelier imponente, decorado ao estilo romântico, como eu.

Soube mais tarde por uma fonte credível, ele próprio, que, graças à performance do Pintor, o canal televisivo recuperou o top das audiências:

- Desde esse momento o telemóvel nunca mais parou de tocar, eram fêmeas dos seis continentes, incluindo a Atlântida.

E de Formador Principal passou a Doutor num abrir e fechar da boca, apesar do sinal vermelho que a tia do Bolhão lhe deu, sem apelo nem agravo.

- Arrependeu-se, telefonou-me a confidenciar-me que tinha deitado para o lixo o bilhete premiado do Euromilhões, com a terminação da Lotaria.

Mas como nunca aceitou mudar o que a Natureza lhe dera, um esgalhador sem limites, foi para o veículo da repescagem à procura da fêmea perfeita, uma teenager de encher com o pipo por baixo do sovaco esquerdo, uma Eva da Repimpa, e saiu-lhe uma reformada oxigenada sem apetite para velhos, levando de imediato mais uma luz vermelha, e uma admoestação do Conselho de Sábios:

- Nós a pensar que tínhamos um Rodolfo Valentino com cheiro a rosas, e saiu-nos um canastrão marreco com bafo de bode!

Por isso foi com enorme satisfação que soube do regresso, na 2ª Temporada, do sexagenário Charles Love, agora na versão de candidato ao altar, mas com pré-condições inegociáveis:

- Não quero uma velha de 60 anos, exigi uma fêmea que esteja disponível para engravidar nas Ilhas do Seixal, - explicou o Pintor Principal, e Formador no lado oculto do espectro moral nas horas vagas.

A SIC sabia que a personagem era muito forte, e com o desenrolar iria tornar-se cada vez melhor, a Ferreirinha que se cuidasse, a Casa da Cristina arriscava-se a ser substituída pela Casa do Pintarolas. Mas como só teremos televisão à séria em Setembro, e já havia muitas pessoas ansiosas, pus-me a imaginar. Alucinei uma estreia, vi, aparecendo numa manhã de nevoeiro na Praia do Trancão, o Desejado, um gato com um olhar desconfiado, postura traquina e provocadora, expressão hipnótica de desprezo, bafo a maré vazia, olhos de águia, que gentilmente disponibilizava aos milhares de fêmeas a possibilidade de saborearem aquela forma de arte humana, um cisne depenado, que só a tecnologia podia proporcionar penas. Ainda a fêmea não se apresentara e já ele a namoriscava, havia algo de mercurial, sensual, perigoso, provocante, arrogante, mal educado, que tinha a capacidade de engravidar qualquer uma só com o olhar, de qualquer idade, sem que ela desse por isso. O segundo episódio, e já com eles mais vazios, e cheios de bolhas, a baterem, tal qual badalos num sino, nos joelhos, era uma cena de chuva à porta do Louvre, uma taberna na Brandoa, com o nosso macho a mastigar um pastel de bacalhau e a perguntar a uma candidata:

- A que horas abres?

E dá-lhe uma martelada sensual com o alho porro.

- Já vou ser pai-avô!

No terceiro capítulo, e já com as audiências a baterem recordes estratosféricos, aparece montado na sua Harley-Charleston a sentir o cheiro a bacalhau da candidata, que mal cabe entre a mala e a marreca do condutor, e ressona com a boca aberta.

- Quando chegarmos à praia do Jamor vou-te mostrar a facilidade com que pego no pincel, sinal de que das minhas mãos sai sempre uma obra de arte, como prometi à produção.

Charles Love era o único macho com direitos meteorológicos exclusivos, nas suas veias sentia-se  a inconfundível inconstância do Badaró, por isso abandonou as filmagens e fugiu para o Luxemburgo atrás de uma das suas musas. 


Monday, February 18, 2019

O Galo





O Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Estas estórias devem ser mantidas debaixo de olho, o que elas são e o que têm para contar, estórias de rapazes que se cumpliciaram para lá dos silêncios. O Colégio Militar condensou e engrandeceu a nossa experiência de vida, para o bem e para o mal!
Façanhas extraordinárias marcaram para sempre o lugar, ninguém consegue ficar indiferente a feitos quase impossíveis, a feitos extremos que desafiaram os limites da condição humana: saltos da 1ª Companhia para colchões empilhados junto do canhão, tunnings com o carro do capitão Caetano, rally no bólide do chulógrafo, ataques de cavalaria contra o pessoal da esgrima, pôr capotes na cruz do zimbório, visitas de cortesia às Meninas de Odivelas. Numa sala do primeiro andar dos claustros um tenente-Coronel armado em peru, dava início ao teste de geografia, após ter avisado os discentes de que não toleraria cabulanços, não fosse ele um ex-aluno conhecedor de todas as técnicas extras de auxílio da memória. Ainda teve tempo de abrir uma janela e falar com alguém:
- Ó ordenança, o meu cavalo já está arreado?
Felizmente não ouviu o Esperma:
- Eu montava era as tuas filhas!
O Colégio Militar representava um estabelecimento de ensino sobrevivente a 214 anos de instabilidade crónica, num país dirigido por gente que “não se governam, nem se deixam governar”, onde estudavam rapazes especiais. O 205/1897 dizia que quando entrou para a Luz era moda entre os alunos serem do contra, o galifão tinha a admiração dos camaradas, quanto mais dias de prisão apanhava melhor, porque ao domingo ia à missa escoltado por dois alunos armados, e isso dava estilo.
Nestes anos setenta do século passado o Galo andava instável, a Rosa tinha sido atacada numa noite escura lá para os lados do ginásio, e todos os Meninos da Luz eram suspeitos, e ainda por cima as suas galitas costumavam acompanhá-lo na atividade na Pista de Obstáculos, observadas sempre à distância por um rebanho de meninos rebarbados fardados de cotim, que cacarejavam sem interrupção, tentando sentir o cheiro a maresia nos momentos do trote, que tinha um efeito no comportamento noturno dos imberbes.
A alguns o colégio desaparafusou-os para sempre, não se sabe se por ter dado um empurrão nos genes, ou por circunstâncias do envolvimento cultural, pinturas, firmezas, mocada, apresentações à alvorada, flatetes, biqueiros, murros, estaladas e muitos outros feedbacks que se diziam pedagógicos, que o diga o diretor que um dia discursava com eloquência para o curso de ex-alunos que visitava com “saudade” o Colégio Militar, quando as portas do Salão Nobre se abriram de rompante e, tal como um dos Gafanhotos do Dario, o Girafa entrou às cambalhotas. A miudagem tinha comportamentos exclusivos, por isso ao jantar havia muitas vezes, algures numa mesa perdida no vasto refeitório, uma atividade cultural clandestina, o jantar  pré-histórico, em que era proibido usar os membros superiores, havendo por isso alguma dificuldade em apanhar as lulas com os dentes, e quando as apanhavam alguns arremessavam-nas de imediato, ao estilo lançamento do martelo. O Selvagem, o 202 de 1901, quando se apanhou com estrelas nos ombros, divertia-se a amarrar os ratas a um tronco de uma árvore, onde os suspendia de cabeça para baixo. Eram os psicopatas de serviço!
Noutra ponta dos claustros a aula do Falcão no primeiro andar não tinha deixado saudades, a única positiva, um “suficiente”, fora para o 157, que lhe foi pedir explicações, tendo como resposta uma ordem de saída, ou pela porta ou pela janela:
- Vou pela janela, - disse o aluno correndo para ela e atirando-se.
O Falcão ficou branco, mas desconhecia que este Menino da Luz fazia parte do Grupo Especial do professor Dario, e por isso após o salto agarrou-se à borda da janela e assentou os pés no parapeito exterior. Houve retaliações na escadaria, o Cascão quando viu que o docente já estava a uma distância de segurança, atirou-lhe com o dicionário de português do Cão, que acertou em cheio no coco do professor.
O Galo ganhara a alcunha na Escola do Exército por usar um bivaque que dava a impressão de uma crista, uma espécie de militar freak! Esteve durante todo o tempo a fazer uma marcha marcial pela sala, com as botas altas a marcarem o ritmo, enquanto os Meninos da Luz copiavam à fartazana graças aos tampos transparentes, com excepção do 69, o número mais vergonhoso do Colégio Militar!
À tarde o Ramalho impressionara a malta com um mortal à retaguarda, com a bata vestida e os bolsos cheios de tesouras e pentes, após a insistência de vários “senhores alunos”. O Madiura dera de caras com o tenente-Coronel, quando este entrava no colégio, na altura em que apalpava a santa, que há muito contemplava com orgulho o Largo da Luz.