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315 estórias

Sunday, November 23, 2025

Supertaça “Insiste, não Desiste”

 



Camarada Choco

Série Paço de Arcos

Futebol PA 78


Ia o tio Kiki calmamente a carregar a bilha de oxigénio da nova namorada, quando tropeçou no tubo da “jovem” e entrou de rompante no cesto dos vegetais de um cliente do Mercado da Pampilheira:

- Cuidado com as minhas laranjas e os meus rabanetes. Vens às compras bêbado, acabaste de sair do H2O? – Protestou o Platini, o único jogador do Futebol PA que fazia contra-ataques de costas.

- Rabanetes? Andas nesse vício agora? – Perguntou o tio Kiki abrindo a torneira à namorada, que estava estendida no chão estilo bacalhau.

- Estou a comprar laranjas e rabanetes, as alfaces só me dão energia para jogar ao sábado, com o Tony Ramos, no Futebol Brasileiro Adaptado. Para domingo preciso de muita vitamina C.

Neste dia 23 de novembro de 2025 houve dois tios que se evidenciaram, o Espalha, que defendeu melhor fora da baliza do que dentro dela. Parou a bola do adversário de frente, de lado, de costas, e de bumbum, mas ao contrário do saudoso Capitão Porão, das vezes que a boa lhe castigou o cu não fez eco; o outro foi o Peidão, marcou dois golos, dando a vitória à sua equipa, ultrapassando o recorde do Caveirinha, e colocando o Filipa à beira de um ataque de nervos tal, que se transmutou no Outro, saindo intempestivamente do campo a culpar alguém:

- A Bola!

Não ter consciência de estar em campo é grave, mas o Futebol PA permite este tipo de atletas, porque é inclusivo. O Filipa escolheu com o Al-Berto mas pôs condições:

- Não quero o Peidão e exijo o Zé das Cápsulas!

- Tens a certeza, os rankings não aconselham?

- O Peidão vai querer ir para o ataque, mas só sabe tirar cafés!

Um biqueiro reflexivo fez com que o Filipa marcasse um golo aos 30 minutos. E o resultado manteve-se até 15 minutos do final. Como o Fininho teve de sair mais cedo, houve necessidade de colocar um jogador adversário equivalente: o Zé das Cápsulas! O tio Kiki protestou, tinham acabado de juntar dois dos atletas mais entrosados do Futebol PA da atualidade: o Peidão lá à frente e o Zé das Cápsulas a distribuir-lhe jogo. O empate veio rapidamente, assim como a vitória. O resto foi uma questão de relógio e de fé no Cristo-Rei.


Thursday, November 20, 2025

Os Desassossegados

 


O Comandante Guélas

Série "Malucos Anónimos"

5


“Claro que és. Se não fosses maluca não estavas aqui.”

 

Gato Cheshire no “Alice no País das Maravilhas” (Lewis Carroll)

 

Como é que uma criança tão tímida se transformou num animal de rua? No momento em que o Alice se convenceu de que todas as doenças o atacavam. Dizia ser a música orquestral a paleta de timbres que o incentivava a plasmar os ódios, para onde mergulhava a cabeça fria e o coração quente, pois sentia-se sempre a cumprir uma função completa e exigente:

- Há colegas que demoram tempo a morrer, são teimosos, - queixava-se sempre aos juízes.

Viu o pai morrer na cozinha, com 38 anos, sufocado no próprio vómito, após empurrado pelo álcool. Havia uma desagregação dos laços afetivos e da miséria, que marcou a vida da família. Era um paciente que adorava apertar os catos do jardim, dizia que havia beleza nas coisas que picavam e acrescentava sempre:

- Mais vale chegar atrasado a esta vida, do que cedo à próxima!

Numa das suas deambulações pela quinta onde se inseria a “Associação Mutualista dos Malucos de Sintra”, o Alice viu ao longe, no meio do mato que rodeava os pinheiros velhos, três silhuetas em andamento. A brisa reflexava folhas de árvores e de memórias de antigos residentes. Esfregou os olhos e elas desapareceram numa nuvem de pó. Dois reapareceram cambaleantes e um levantou-se.

- Palhaço, - gritou quando reconheceu o Tagarelas, um antigo gestor de olhos risonhos, ligeiramente inclinados e mal distinguíveis, afundados em órbitas macias, cujo stress e ganância lhe queimaram de vez as juntas da cabeça, tendo perdido para um vizinho saudável a mulher e os filhos.

O trio tornou a juntar-se, e continuaram em direção a um amontoado mais denso de árvores. O Tagarelas era um poeta que ainda sonhava com o futuro, mesmo sendo uma casca vazia.

- Quando sair daqui volto para casa, para junto dos meus pequenos e da minha Maria.

O Criolina saiu a correr em direção ao Alice, que dizia também chamar-se Cooper, polvorizando ramos secos, que ficaram presos nas roupas e arranharam o rosto. A biografia do Criolina iniciou-se na sua adolescência, quando desenvolveu uma obsessão pelo Fernando Pessoa. Aos 22 anos, já com três personagens dentro de si, o Ricardo Reis, que no caso dele se chamava Vaginas, optou por cortar o dedo mindinho da mão esquerda em vez de violar a irmã. Seguiu-se o anelar para não ter de matar a tia Anita Carapita, que lhe chamara “maricas”. O padre Januário, a quem ele tratava por pai, mas não sabia que era verdade, convenceu-o a ir falar com um médico amigo que trabalhava na “Associação Mutualista dos Malucos de Sintra”.

- Vai na tua mota todo janota.

No dia 23 de dezembro de 1978 apareceu na consulta de psiquiatria, montado na sua reluzente Zundapp, com fitinhas coloridas nos punhos, e muita brilhantina. Bateu à porta, e quando ouviu “entre”, rodou a maçaneta e apresentou-se ao Dr. Cambeiro, Zézinho Circunferência para os amigos:

- Bom dia, o meu nome é Cavaco, sou trabalhador das Minas da Panasqueira, tenho 22 anos, e por isso não há maricas que me arreganhe o cu.

Acabara de fazer um autodiagnóstico, que lhe colou um rótulo do qual nunca mais se libertou, e que foi o “grito do Ipiranga” da família endinheirada, condição essencial para ter direito a um quarto imediato, ou seria uma cela? Iria ser uma mistura de insanidade e liberdade. Para complicar a situação, o Alberto Caeiro, que se chamava Montanelas, apaixonou-se de imediato pela Tita dos Pés Sujos, que para ele tinha um corpo sensual mesmo estando deformado pelos distúrbios da mente:

- Faz-me lembrar a Albertina das Mamas Grandes do “Dallas Cowboy”!

Mas como ela já tinha dono, o Frank Moka, cortou o dedo mediano, para não ter que matar o rival. Aproveitou o balanço sinestésico, na qual a mente é empurrada para o convívio com os fenómenos primitivos, e convenceu o Álvaro de Campos, Cavalo Malandro no seu caso, a cortar o indicador, para não ter de matar o Octanas, que tinha bafo de gasolina, e assim ganhar o “Prémio Nobel da Paz”. Sobrou o polegar, com o qual tirava o sebo das orelhas. E quando cortava os dedos nem tugia, nem mugia, agarrava no pedaço e atirava-o para o caixote do lixo mais próximo, gritando:

- Nunca renunciarei a Satanás, que me perdoe o padre Januário.

Um dia acordou a anunciar que D. João II, o “Príncipe Perfeito”, encarnara-o!

 

 

 

 

 

 

 

 


Wednesday, November 12, 2025

O Comboio Humano

 


O Comandante Guélas

Série "Malucos Anónimos"

4

A Humanidade contém muitas anomalias inexplicáveis. O guinchar dos travões do comboio quando o avistava, eram a banda sonora dos dias do Chora na Penca. Qual seria o seu destino, estaria à procura de um caminho para casa? Por causa da doença viu desaparecer familiares, amigos, amantes, apenas lhe restou o vazio, o silêncio. Começou por trancar-se no quarto, calando aflições e dores, abandonos e vácuos, sem esperança de melhorar. Punha-se em causa, descontraia-se, refazia-se, reinventava-se, sem autocomiseração. Esvaziou os afetos, o corpo fragilizou-se, as memórias tumultuaram-se. Para a mente amputada não havia qualquer tipo de prótese. Como não gostava dele próprio não podia amar os outros, apesar de não querer deixar de amar. Tinha mirrado na demência que lhe desfizera o pensar e o agir. Passava a maior parte do dia numa ausência da realidade, por isso perpassava nas vidas de todos, mesmo sem fazer nada. Discutia consigo próprio muitas vezes, via auras estranhas sobre os cabelos:

- Vou dar milho aos espíritos santos! – Dizia num fio de voz, coçando a extremidade do nariz, um vértice desmedido numa cabeça enorme numa face doentia e óssea, em cima de pernas pouco sólidas.

Os seus sonhos estavam cheios de monstros e fantasmas. Caminhava no meio de uma neblina leve de gotículas frias. As ressonâncias que o Chora na Penca recebia do convívio com os colegas, flatos, arrotos, palavrões, gritos, convulsões e agressões, eram de tal modo ensurdecedoras, que começou a imaginar que estava a desaparecer, que estavam a apropriar-se de pedaços de si, por isso começou a coxear. Um dia entrou de rompante a gritar pelo gabinete do diretor:

- Gamaram-me o pé, ficou um coto.

- Rouba o pé a outro! – Respondeu o psiquiatra de serviço, que tinha sido acordado, empurrando-o para fora do espaço.

Saiu apressado do edifício, passou por vários mortos-vivos, e ainda ouviu os queixumes habituais do Cara de Apito, um utente solitário, que estava cada vez mais ensimesmado:

- Namoro com a minha esquerda, que não me dá descanso, já tenho a piroca em carne viva. Tentei chegar a ela com a boca, mas os bicos de papagaio não deixaram. Por isso peido-me sempre que quero transmitir ideias e sentimentos.  

O Chora na Penca era artista, criava desenhos raspados à unha nas paredes do quarto, por isso nele imperava sempre o óxido da dúvida:

- Maluco ou não maluco, eis a questão, mas agora pó, só o dos móveis.

Gostava de sentir a luz nos olhos, não tinha vergonha de ser triste, por isso fumava cigarros a condizer. Os demónios da vida que o tinham desembraiado deixara-os para trás, apesar de continuarem a persegui-lo. Tinha um pessimismo intransigente em relação ao futuro:

- Sinto o sabor a cinzas na boca – sinal de que transmutava a banalidade da loucura numa loucura sã. – Por isso sei falar enoquiano!

Mas como sintonizava sempre mal a comunicação, em vez de falar com os anjos, recebia instruções de demónios. Um dia, quando o seu colega de quarto e protetor, o Labumba, estava a urinar contra um pinheiro, resolveu fugir. O Chora na Penca sabia que depois de se começar uma mija, era difícil parar a meio. E até parar era difícil correr. Mas contra todas as probabilidades o seu meio-irmão correu, com a dita de fora e a despejar. Quando passaram em frente à janela do refeitório do pessoal, as luzes vermelhas acenderam-se, e eles soltaram o Caça Malucos, um enfermeiro com dois metros e 10 centímetros, e 130 Kg de peso, que tinha tiques de rico num corpo de pobre, e que quase levitava abraçado a sonhos grandiosos.