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315 estórias

Monday, June 04, 2007

O Pirilampo Mágico


                         Camarada Choco
                                         Aventura 47

A notícia de que o Camarada Choco tinha atingido o topo da carreira de desaparafusado não fora novidade. As suas cuecas tinham-se metamorfoseado em pergaminhos, provas inequívocas de uma vida de sucesso. “Topo” significava que o Camarada Choco era o exemplo de uma vida dedicada à “diferença” e aos desprotegidos, ou seja, uma espécie de Robin Hood, que tirava aos ricos para encher a mochila. A consagração devia-se à importante intervenção do neurologista, que há meses andava a brincar com o conteúdo da tola do nosso herói, obrigando-o a ingerir todos os “drunfos” do mercado, principalmente aqueles que davam direito a viagens à volta do mundo. Enquanto o químico só dava para um fim-de-semana no Algarve para duas pessoas, o Choco passou meses a dar de caras com a Santinha, toda nua, querendo isto significar um estado de congelamento semelhante a um pacote de ervilhas do Continente, em promoção, tirado da arca dos faisões, protegidos, que o Pintor descobrira a voar por cima do espaço aéreo duma das reservas de caça do Alentejo. Demorava sempre meia-hora até regressar à temperatura ambiente!
Assim, quando os bilhetes do cruzeiro no majestoso paquete “O Elefante Branco” começaram a cair no Centro de Saúde, o senhor doutor chamou a família do Camarada Choco de urgência, facto que a mãe, mesmo desaparafusada, achou estranho, porque estava há vários meses a tentar encontrar o dito senhor, mas o raio do homem passava a vida em congressos nas ilhas Fidji. Ainda a progenitora mal tinha passado a porta do consultório e já a receita de dois contentores de “Tegretol GT 5500 Turbo” estavam nas suas mãos. Era desta que o Choco iria aparafusar de vez!
O “drunfo” do tamanho de um melão demorou a cruzar o esófago, mas graças a um piaçaba milagroso chegou ao seu destino. O primeiro sinal foram umas argolas de fumo que começaram a sair das orelhas. O segundo foi durante a primeira micção, em que o nosso herói levantou a perna e encharcou o cágado, que se preparava para ver a “Floribela”. O terceiro veio sobre a forma de um flato que apagou todas as luzes da casa. Aqui o Chefe da Família reagiu, pondo a mão no cinto de cabedal chinês e ameaçando fazer uma tatuagem na bilha do Camarada Choco. O quarto correspondeu a um arroto monumental, tipo trovoada, que rebentou com a energia do quarteirão, impossibilitando o chefe de família de ver o beijo carinhoso entre a Floribela e o Guarda Ricardo. A fúria do senhor Firmino foi tal que, com a pressa de tirar o cinto, deixou as calças, as cuecas e o conteúdo destas no sofá e despejou a energia em cima de um “abajour” chinês, pois confundiu a luz que o Choco emanava no topo da marmita, com o objecto mais caro da habitação, a Santa-Meteorológica, que mudava de cor conforme o clima. Quando as luzes regressaram à casa mais famosa da Venteira, já o Choco tinha desaparecido entre os lençóis, de cor de cartão, e piava agora baixinho.
- Respeitinho é muito bonito, - disse orgulhoso o Chefe Silva. – Lá por ser adulto, não faz o que quer.
O Jardel foi o único que compreendeu o dono, respondendo com um aceno da cauda. Entretanto, o fumo que se foi acumulando nas entranhas da cama do nosso herói, já colara os lençóis ao tecto.
Eram vinte e quatro horas quando as badaladas da torre da igreja coincidiram com o ladrar do relógio de cuco que o pai do Choco tinha comprado nesse dia, em promoção, na loja do senhor Koçá Ky Buda. Nem mais um segundo passou quando o efeito do Tegretol GT 5500 Turbo atingiu a fase do “redline”, ou seja, o Camarada Choco iniciou a ópera pimba ,“O Rebarbado de Sevilha”, com as cordas vocais ao máximo e o escape em “ponto-de-rebuçado”. Tudo vibrava, a Santa-Meteorológica não conseguia fixar a cor, o canídeo Jardel iniciou um uivo digno dos melhores lobos da Brandoa, a mana Bélinha vestiu a cara-de-cu que costumava levar para as colónias, e a mãe (por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher, e neste caso uns genes especiais) telefonou assustada para os tele-táxis da Guarda. Quanto ao chefe máximo da tribo, começou-se a notar uma comichão anormal do bigode, que alastrou para uma explosão de raiva que atacou o Choco com o cinturão de cabedal da Indonésia, só parando quando o nosso herói adormeceu à custa de tanta “bordoada”.
- Modernices, são só modernices. O doutor enche-me o miúdo de remédios, mas ele só adormece à maneira antiga, - disse orgulhoso, recolhendo aos aposentos.
Só alguns dias depois e vários concertos interrompidos, é que o doutor se apercebeu de que a dose destinada a parar com as “travadinhas” cerebrais , punha o nosso herói fresco que nem uma alface sem ter necessidade de passar pelas brasas. E isso o Firmino não tolerava!

Monday, April 23, 2007

Silêncio, ia-se cantar o fado !


                           Camarada Choco
                                          Aventura 46

- Mil?! O Salão Nobre dos Bombeiros só dá para mil ?! – Perguntou uma das afilhadas da tarde, a candidata número um ao lugar da Madrinha, a Afilhada Fotocópia.
- Chega ao décimo otário e as inscrições acabam – atirou a pequena, mas atenta, Lolita e afastou-se em passos em rápido.
- A única coisa que sei é que saíram da sala 15 pintos e 8 galinhas, e dinheiro nem vê-lo, - lamentou-se a Dona Pilca, atirando mais uma vez a agulha para cima de uma pobre galinha, feita com os restos das últimas cuecas do Choco.
- Mas eu estou aqui a falar de CULTURA e você a debitar assuntos do galinheiro. Mil lugares é pouco para a surpresa que estou a preparar para a Madrinha. E ainda por cima com caldo verde, chouriço do “Lidl”, Pão Torrado dos chineses e acima de tudo Couve da Brandoa, para dar um ar chique à festa. Vai ser o dia da minha consagração aos olhos do Poder, como angariadora número um para a nova mama….perdão…..a nova Unidade Hoteleira. A Nova Geração nunca me ultrapassará !
- Galinha, a Galinha, se chega à Madrinha, - disparou a Lolita, desaparecendo na sombra.
- Já estou a ouvir os sons das guitarras a ecoarem pelo Pavilhão Atlântico, o Caldo Verde a excitar as línguas dos ouvintes e as Couves da Brandoa a forrar as almas dos artistas.
- Gases, isso são é gases, - disse a Lolita, esfregando as mãos.
- Sou ou não sou um génio, Pilca ?
- Quinze pintos e dez galinhas, e a massa, nem vê-la ! – Queixou-se a senhora de meia idade, remexendo no caixote de lixo, não fosse algum garnizé ter fugido.
- Ó mulher, mas estou eu aqui a falar de Cultura e a senhora só se preocupa com ninharias ?!
- É melhor uma galinha na mão, do que dois fadistas a voar ! – Cuspiu a Lolita.
Mas o pensamento da Afilhada Fotocópia já estava noutra dimensão, ao nível duma alucinação visual, em que se via a agradecer à multidão, que enchia o Pavilhão Atlântico. Mas, numa olhadela mais atenta, todos tinham a cara do Cabo Pilas, o único otário que tinha pago o bilhete. A Afilhada Fotocópia corria então em direcção à caixa das esmolas e deparava-se com o dinheiro do militar, em escudos. E quando os olhos se viravam de novo para a assistência, os Pilas esfumavam-se, e ficava somente o original. Entrava então no palco o Pitrongas, acompanhado pelo Choco, com uma guitarra chinesa sem cordas, e começava a festa:
- Eu já fui ao…..e ele deu-me…..foram duas e três, todas duma vez.
Na plateia era servido o Caldo Verde, vindo directamente das entranhas do Monga mais chinês da Escola, tal como aconteceu na aventura número vinte e um. No exterior, junto ao povo, a Dona Pilca e a Menina Tatrícia vendiam alegremente as suas soberbas Galinhas e os seus Pintos atrevidos, tendo os bolsos a abarrotarem de euros, tendo junto a elas a Madrinha e dar-lhes beijinhos e a coçar-lhes as costas.

- NÃOOOOOOOOOOOOOOOOOO……….., isto não me pode estar a acontecer. Uma Doutora com Canudo não pode ser ultrapassada por meia dúzia de Pintos e umas tantas Galinhas?! Juro pela vida dos mongas que os fados vão ser cantados.

(Entretanto, algures numa habitação, uma utente acabava de terminar o curso e rumava agora para uma vida melhor.)

- São gases, - diagnosticou a Lolita , a única que conservava ainda o juízo que Deus lhe dera.

Tudo foi interrompido pela Doutora Sem Canudo que avisava pela chegada da televisão e pelo início das filmagens:
- Quero todos os trabalhos dos nossos queridos desaparafusados na Sala de Visita da minha Afilhada da Tarde, a número dois.
- Mas de momento só estão disponíveis as Galinhas e os Pintos da Dona Pilca e da Menina Tatrícia, - informou a Afilhada Fotocópia.
- É única coisa que há. O pessoal aparafusado é pouco e os desaparafusados estão todos reformados desde que nasceram - informou a Lolita.
- As senhoras da capoeira vão todas para a Sala das Porcas dar milho aos pombos e no local das filmagens só permanece o pessoal do canudo, - ordenou a Dra. Sem Canudo, compondo a mesa e iniciando o discurso. Todas estas aves foram feitas pelos desaparafusados, com o acompanhamento pedagógico das minhas queridas afilhadas…perdão…especializadas. Como podem ver, a criação é toda diferente, as Galinhas estão mais viradas para a Didáctica e os Pintos gostam muito de Pedagogia!

Wednesday, March 21, 2007

No Reino do Leão





                         Camarada Choco
                                          Aventura 45
 

O convite chegou via fax, como já era habitual, mas quis o destino que  não fosse parar ao caixote do lixo, como era habitual. Mesmo vindo da Federação dos Pseudo-Deficientes (F.P.D.), os chamados “Meninos Desaparafusados da Linha”, que enchiam as escolas dos aparafusados, mas que muitas vezes eram recambiados para as cooperativas, para assim não chatearem os senhores professores da primeira classe do comboio do Ensino. E era com parte destes que o Estado se representava nas olimpíadas, abrindo os noticiários com a enchente de medalhas de ouro.
Mas desta vez a resposta foi “SIM”! De peito, ou costas erguidas, consoante o modelo do atleta, iríamos defrontar o Leão no seu Estádio. A Seleção começou de imediato a preparar-se para o embate. As Novas Tecnologias do Marketing foram postas em ação, tendo em vista arrasar com a concorrência. De “Ping Pong” só um entendia, o Brazuca, a nova aquisição da Cooperativa, descoberto numa obra, que tinha substituído a escola. E como era clandestino, talvez fazendo-se passar por desaparafusado conseguisse o tal visto milagroso. Era isso o que a simpática mãe esperava, para depois o tirar rapidamente dali, antes que a peste o contagiasse. O convite dos pseudo - clubes de desaparafusados, muitos dos quais mais aparafusados dos que os pseudo - aparafusados das escolas oficiais, às genuínas escolas de genuínos desaparafusados servia só para a estatística, porque em vez de meia dúzia de gatos pingados a fingir de deficientes, contariam com uma centena de desaparafusados de todos os calibres, daqueles que nenhuma entidade oficial convida, excepto se houver eleições. A nossa missão era vencer e convencer, mostrar que éramos os “Tubarões do Seixo”, nome mítico que levava sempre o “i” de cada vez que saiamos para o exterior. A tática tinha como elemento principal o Cascão, um superdesaparafusado que passava a maior parte dos dias a falar com as moscas. A chegada foi apoteótica, a cada “Tubarão do Seixo” aplicou-se uma camisola da loja dos trezentos com as palavras indicativas do local de origem: Venteira! Os primeiros leões foram de imediato informados pelo Stor Pobre de que iriam ser cilindrados e ao campeão de Portugal aconselhou-se a mudar de profissão. O Tubarão tinha vindo massacrar o Leão. Para o aquecimento foi destacado o Cascão, que começou de imediato a tentar acertar nas moscas com a raquete. Não precisava de bola ! O Brazuca foi mandado sentar, não precisava de aquecer, os anos de treino em casa com os primos eram suficientes. A prestação do superdesaparafusado provocava risos jocosos aos adversários, que viam esta prova como um passeio no parque.
- Mas eles são mesmo deficientes – desabafou um anão coxo com o Leão ao peito.
O Cascão continuava o seu aquecimento, tentando acertar nos insetos virtuais que ocupavam o seu espaço aéreo. Para impressionar o “inimigo” foi enviado para uma das mesas um par desaparafusados africanos da Brandoa, que de “Ping Pong” percebiam pouco…muito pouco…nada, absolutamente nada, mas mesmo assim eram melhores, muito melhores, que o Cascão. Chamavam-se Lali e a Vaisnessa ! O primeiro ainda tentou acertar na bola fantasma, materializada pelas informações que o olho maroto dava às poucas partes do cérebro que não tinham saído após a queda do penhasco na sua ilha, que lhe abrira o coco ao meio, e que tinham sido substituídas pelas poeiras que se acumularam durante o longo processo de cicatrização. Apareceu já assim, graças aos protocolos de saúde que davam a possibilidade de colocarem os feridos nos aviões com destino a Lisboa. E depois os professores e os outros técnicos é que se tinham de desenrascar, porque os médicos pouco ou nada informavam. Quanto à Vaisnessa, os dotes de jogadora também não eram grande coisa. Ao lado os felinos riam desamparados.
- Mas eles são mesmo deficientes, - tornou a dizer o anão coxo com o Leão ao peito.
A estratégia estava montada, os leões iriam cair que nem uns patinhos. Mais um par tomou de assalto o aquecimento: o Gorilão e o Monga Romeu. Acertaram cinco vezes em mil, o que não convenceu o anão coxo com o Leão ao peito:
- Mas eles são mesmo deficientes !

Primeiro Jogo

Leão versus Tubarão

A partir deste momento só o Brazuca nos representava, os outros não passavam de simples engodo. O primeiro representante do felino era o já célebre anão coxo, que se dirigiu para a arena com um sorriso de vencedor absoluto e bastaram poucos minutos para regressar à bancada ainda mais pequeno e duplamente coxo.
- Só isto ? – Perguntou o Brazuca, compondo a popa.
- Foi sorte de deficiente, - justificou-se o marreco zarolho, o próximo da lista. A eliminação do anão já tinha aberto uma brecha na jaula do Leão. O treinador observava agora com atenção o nosso Tubarão. O jogo demorou algum tempo, mas o marreco também foi com os burros. A situação estava grave. As luzes apontavam para o Brazuca. Foi a vez do Stor Pobre entrar em cena e arrasar com a concorrência. Alvalade não chegava aos calcanhares da Venteira. O treinador dos Tubarões colocou-se junto do treinador dos Leões e explicou toda a metodologia de treino.
- Está a ver aquele ali, - e apontou para o Cascão, o célebre caçador de moscas. – O Brazuca quando nos veio parar às mãos (dois dias antes), estava naquele nível.
- Espantoso ! – Admirou-se o representante dos felinos. – Que trabalho fantástico.
- Das 8 da manhã, às 8 da noite. O Stor Rico abre a porta e a Dona Pilca fecha-a. O Brazuca nem almoça, é só treino, só treino. O Cascão iniciou agora a sua carreira no “Ping Pong” e no final do ano estará ao nível do nosso campeão e para o ano virá aqui disputar a taça (caso houvesse algum milagre, pois estava assim desde que nascera há 14 anos, vindo diretamente da pipa que era a barriga da mãe, que no teste de amniocentese dera vinho tinto branco de Belas). Nos "Tubarões do Seixo" há centenas de mesas espalhadas pelos corredores, ocupadas durante todo o dia. A culpa é do Porres que, desde a chegada ao topo, Trabalho e Competência passaram a ser temas obrigatórios.
O Brazuca limpou tudo e obrigou o Leão a ficar de gatas, com o traseiro à disposição do Tubarão. A única foto oficial foi tirada debaixo da bandeira verde, com marcação incontestável na primeira página do jornal oficial de Alvalade.

Friday, March 02, 2007

As Lágrimas da Doutora



                          Camarada Choco
                                           Aventura 44

Habituados ao insólito, os “Cerciamos” (habitantes da Cooperativa de Reabilitação para Desaparafusados e Aparafusados) prepararam-se para o apocalipse, onde tudo daria lugar há insanidade e há loucura. Uns ainda se espantam (a minoria) porque não acreditam, outros porque estão cansados, outros porque receberam uma oferta melhor, talvez uma oferta que não pudessem recuar, ser afilhadas e, como consequência, mais prósperas e felizes. O abraço da ex-Doutora Sem Canudo à Dona Pilca e à Menina Tatrícia, fez transparecer um estado de alma, que criou uma vibração nas vozes de todos os presentes. Era o culminar de um amor caprichoso, tumultuoso, de encontros e desencontros, de desejo, sensualidade e ausências (o estado “santinha”, exclusivo desta Instituição). A um canto, discreta, estava a Dona Gilette, elemento cada vez mais raro nos colectivos dos desaparafusados. Atenta, paciente, formosa mas não segura, à espera da sua vez para vender o único produto possível da sua sala de quiabos: frasquinhos de compota de Baba e Borra de Monga, que lhe possibilitariam, segundo pensava a própria, comprar um talhão junto à Casa Forte da Madrinha.
As lágrimas da Doutora Madrinha eram ali ouvidas a tocar nos tacos, ao vivo e a cores, sem piano, em pequenas doses de crocodilo, repetidas tantas vezes quantas o montante entregue. A concentração, o esforço e a boa disposição imperavam na sala. Mas não em todos os cantos. O intrépido gaulês, o Senhor Pintor, denunciava a situação, propondo um novo olhar, que era sempre pessoal. Assim, estes jantares de Natal não serviam apenas para reconstruir novas alianças do passado, mas antes criar espaços para novas afilhadas. Foi o momento de um encontro privilegiado, onde se pressentiu o pulsar comum dum saco azul subterrâneo, por debaixo dumas saias, quase invisível, interior.
A geração de afilhadas é uma tendência que se tem vindo a desenvolver e a que todos devem estar atentos, por ser claramente favorável a quem desejar fazer umas colónias.
- No meu dia de anos nem um beijinho me deu, nem uma lágrima verteu. Só consegui os dez minutinhos finais da jorna – resmungou o Senhor Pintor, afastando, do fato comprado nos indianos da Praça de Espanha, um pêlo encaracolado. – Alguém haverá de ser responsabilizado por isto !
O ritmo alucinante do beija-mão era pontualmente interrompido por uma fotografia, enquanto que no corredor se tentavam adivinhar as prendas, não fosse alguém receber uma pega da Sala dos Têxteis. A Madrinha estava sempre presente, na forma como comíamos, nas palavras que usávamos, propositada ou inadvertidamente. Mas, com a Madrinha há sempre muitos “mas”…
- A “clave de Sol”, onde está a minha “clave de Sol”, que comprei nos chineses com o dinheiro dos vossos almoços….vossos não, meus almoços. Ninguém sai daqui se a “clave” não regressar há minha propriedade. Mas uma parte da plebe estava mais preocupada em guardar nas carteiras as velas, do que no discurso da “Madrinha de Algumas”. O jogo do arremesso dos porta-guardanapos foi bruscamente interrompido pela chegada, não programada, da companheira do Camarão.
- Estás proibido de jogar com a progenitora do Tremelga.
Era o segundo cartão amarelo da noite ! O jogo prometia aquecer, a Madrinha já não gritava só pela “clave de Sol”, mas também pelas “velas com a Santinha”. Nem os beijinhos das novas afilhadas conseguiam controlar a “baba de fúria”. E nestes momentos tudo vem à memória, até a garrafinha do vinho do Porto descoberta no armário da Psicóloga Loira. Mas o pior ainda estava para vir !
- A “Passarinha”, roubaram-me a “Passarinha”, - gritou a Dra. Madrinha Sem Canudo, deitando fumo pelas orelhas, sinal de que os segmentos estavam prestes a gritar.
- A “Passarinha” da madrinha ? – Perguntaram em coro as novas afilhadas, levantando-se com dificuldade da mesa de Natal. – Nós vamos investigar, já temos suspeitos. Acalme-se Madrinha que volta para casa coma sua “Passarinha”, a “Clave de Sol”, as “Velas com a Santinha” e todas as outras porcarias….
- Tatrícia – interrompeu a Dona Pilca, tentado abafar a última palavra da sua colega chinesa com um valente empurrão, que a atirou para cima do Cabo Pilas, que caiu desamparado no chão. – Queres dar cabo do posto que tanto nos custou a ganhar ?
E no meio disto tudo veio de novo à memória da Doutora Madrinha Sem Canudo a garrafa de vinho do Porto. Agora compreendia ela as razões de tanto “farróbadó” naquele gabinete. E escusava a Psicóloga Loira explicar que fora alguém que lhe pedira para guardar o produto e ela esquecera-se. As melhoras dos clientes não se deviam a palavras sábias, mas sim aos vapores do vinho do Porto. Era um tratamento fraude !
- Qualquer dia é o Nélinho a ser eleito Afilhado, - continuava a resmungar o Senhor Pintor. – Vou-me vingar em alguém ! – E levantou-se apressadamente da sala, desaparecendo nas entranhas do edifício.
Algum tempo depois ouviu-se um barulho metálico vindo do andar de baixo e para os lados do Bar. Todos se precipitaram escadas abaixo, pensando ser o Muro que apanhara de vez o Porres. Mas não, o arrastar de metal pelo chão era mais para lá. Pararam a escassos metros quando deram de caras com o Senhor Pintor a expulsar um armário do seu estabelecimento de pintura.
- Na Sala de Artes não se produzem sandes, sandoscas, croquetes, pastéis de bacalhau, mas sim telas com Nódis e outra bicharada – informou o Dr. Pintor, com o fato dos indianos já todo amachucado.
- O meu Sobrinho…o senhor Doutor Pintor Sem Canudo tem razão – confirmou a Dra. Madrinha Sem Canudo, tentado resolver a situação embaraçosa, recorrendo às palavras mágicas.
- Dá-me a impressão de tenho de acelerar a produção das minhas compotas, - atirou a Dona Gilette. – Ainda saio daqui hoje afilhada !
- Sobrinho ?!! Eu fui promovido a Sobrinho ?!! – gritou o Pintor, abraçando-se à Tia.
- E para provar a afeição que tenho por si, convido-o a acompanhar-me a um Curso de Formação de Power Point, que não me vai servir para nada, mas não dou o meu lugar a ninguém.

Wednesday, November 29, 2006

A “Caixa do Choco”

                         Camarada Choco

                                          Aventura 43

A contagem decrescente para retirar algo ao Camarada Choco tinha começado e já estava a influenciar a Instituição de Reeducação para Clientes Desaparafusados.

24 horas antes
Na sala do senhor Pintor reinava a confusão. Havia tesouras, martelos, cadeiras, pregos e outros objectos pedagógicos, pelo ar. O espaço artístico tinha entrado em auto-gestão após a saída do chefe, para uma exposição de 5 pinturas rupestres feitas por mongas estrangeiros, oriundos da Azinhaga dos Besouros. A excursão levara uma carrada de desaparafusados, fundamentais para a estatística final, para uma visita de cortesia, mesmo com o gasóleo a preços proibitivos, mesmo para os mongas, a uma amostra feita por uma técnica com um currículo a roçar o terceiro mundo, mas com bons contactos na nossa querida e muito estimada Instituição de Solidariedade Duvidosa.
- O que vem a ser isto ? – Insurgiu-se o senhor Pintor ao entrar no seu espaço cultural e a dar de caras com o Betão de sapatão em punho, a ameaçar esmagar de vez o Kodac. – Ou paras já ou vais ter com a mana, - ameaçou, usando uma voz de trovão, igual à que usara no Ralys em 1975, durante o assalto dos comandos.
- Com a mana não, eu não sou monga !
- Sempre que saio daqui o caos toma conta do meu estabelecimento. E ainda por cima fui apanhar uma seca. Eu e todos os mongas.
20 Horas Antes
A voz da Dona Pilca ecoava, mais uma vez, pelo estabelecimento.
- Ó Faísca, tira a mão dos meus guardanapos.
- Mas eu só queria levar um para casa, - desculpou-se a funcionária destravada.
15 Horas Antes
- Porra, - gritou o Virgulino, ao testar o cartão Multibanco no relógio de ponto. – Estou liso, o meu dinheiro desapareceu todo.
Na secretária o som estridente de uma campainha chamava a atenção da Doutora Sem Canudo. No monitor do Pato Donald a imagem de um saco azul ocupava todo o écran.
- Estou rica, estou rica, já posso receber os subsídios de Directora auto-nomeada, de Descoordenadora de Coordenadores, e de tudo aquilo que eu quiser.
10 Horas Antes
Quando o Vira-Bicos entrou na Cerci, quase que chocou com a Dona Espatinha e a sua monstruosa abóbora e os vinte mongas que a carregavam, incluindo uma bica quentinha que levava à cabeça. Tinha catado a cadeira eléctrica do Bacalhau, aproveitando uma ida dele e do Pitrogas ao cagatório, e atrelado a resma de desaparafusados que se preparavam para descansava no seu bar, para darem uma ajuda ao motor que não aguentava com tamanho dinossauro.
- Sai da frente ó marmelo, que eu só para na Direcção, - gritou, fazendo estalar no ar um chicote de marmeleiro.
- Epá, mas o que vem a ser isto ? – Insurgiu-se o peão, abanando com a deslocação do ar.
- Vou a caminho dos “Pontos” !
- “Pontos”?!
- Então não sabe que foi criado o “Cartão Canudo”?
- “Cartão-Canudo”?!
- Quanto mais prendas se der à Auto-Directora, recebe pontos neste cartão, e é só descontá-los no C.A.A.G.T.. Com esta abóbora e com o cafezinho que trago à cabeça, levo para casa uma caixinha de “Bollicaus” que foram com o Pedro Álvares Cabral e regressaram.
- C.A.A.G.T. ?! O que é que quer dizer?
- Cadeia de Armazéns da Afilhada !
5 Horas Antes
No primeiro andar a fila estava compacta. Os mongas tinham sido abandonados à sua sorte, a peregrinação à Torre de Babel ( Sala Canudo) entupia o corredor. O Porres tinha mandado reforços para controlar o trânsito, o agente Pato Donald não parava de autuar.
- Trouxe-lhe uma almofada feita de restos de piúgas e uma pega tirada a ferros dumas cuecas pretas do Choco, com o buraco onde estava o emblema do Benfica. – Ofereceu a Dona Piulia.- O Mano manda este quadro do Noddy.
- 15 pontos !
- Tenho aqui um painel de azulejos a retratar a vida árdua dos nossos clientes, - ofereceu a Dona Pilca.
- Mas estão todos a dormir ? – Constatou a Doutora Sem Canudo.
- É por isso que eu disse “árdua” !
- 7 pontos !
4 Horas Antes
No novo gabinete de uma das Afilhadas da Tarde, a própria tentava explicar à Faísca as vantagens de se inscrever num curso pós-laboral para alforrecas, podendo assim ganhar um canudo novinho em folha.
- Não sei, não sei, já não sou capaz, a minha cabeça está sempre em curto-circuito, - queixava-se a funcionária. Qual é a vantagem ?
- A vantagem ? Verá quando for à terra. Deixará de ser a “Faísquinha das Ovelhas” e passará a ser a “Doutora Faísca” !
- Como a outra ?
- Sim, como a outra!
- Alto e pára o baile, - interveio a Doutora Sem Canudo, dando um “basta” no trabalho árduo dos “Sacos para Presentes”, mais uma parceria, desta vez entre Logistas e Desaparafusados. E como já era tradição, os Aparafusados (daqui para a frente chamados “Chineses”) realizavam o trabalho escravo durante as várias semanas que faltavam até ao Natal, e quem ficaria com os louros, como sempre, eram os desaparafusados, agora promovidos a clientes e a estatística para a Segurança Social. O subsídio nº 34 da Doutora para os presentes dos familiares estava assim garantido.
- Cara Afilhada da Tarde, a Dona Faísca não precisa de mais habilitações, a sua formação em ovelhas, cabras e galinhas é mais do que suficiente para tratar do nosso rebanho de quiabos. E assim poupamos dinheiro !
- Mas….
- Nem “mas”, nem “meio mas”, a ideia de dar formação às nossas chinesas está fora de questão. Vou até decretar uma “Fatwa” a proibir mais canudos na minha Instituição, mas primeiro tenho de voltar para o trono, porque o povo espera-me.
3 Horas Antes
- Tenho aqui dois garrafões de “Gerupiga” do meu avozinho, - ofereceu a Terapeuta Zézé, esticando os braços.
- 300 pontos, uma calculadora chinesa e um pacote de leite só com um mês de atraso. Seguinte !
- Tenho aqui uma caixa de pauzinhos de gelado, para poder fazer talas iguais às que fazia no século passado.
- Óptimo, óptimo, assim faço de conta que endireito os marrecos e poupo dinheiro. Dou-lhe 400 pontos !
- Quatrocentos ?! – Indignou-se a Zézé. – Dê-me de volta os garrafões que eu trago-lhe uns troncos de árvore para endireitar cabeçudos.
- Pronto, pronto, dou-lhe mais 100 pontos.
- O quê, o que é que estas pindéricas são a mais que eu ?! – Interrompeu a Dona Piulia, retirando as pegas.
- Ok, tome lá mais 200 pontos e desampare-me o trono. Veja lá se não mete baixa !
2 Horas Antes
A situação estava a começar a ficar fora do controlo. Todas as enteadas queriam passar ao estatuto de afilhadas, e até já ameaçavam derrubar o trono, comprado com o já lendário subsídio do ar-condicionado. Pediram-se reforços !
- Os pontos não são tudo na vida. Voltem amanhã, - gritou o Porres, tentando controlar a situação.
- Os pontos são tudo o que temos, o resto é trabalhar e ganhar como chinesas ! – Queixou-se a Dona Gillete, encostando à parede um quadro de um Santo Mongol, vindo directamente de uma loja chinesa da Brandoa profunda.
- Porres, venha imediatamente aqui, - ordenou a Doutora Sem Canudo, dando ordem de “Stop” às peregrinas. – Que ideia é essa de os pontos “não serem tudo na vida” ? Não vê que assim tenho as chinesas felizes e ainda me levam as porcarias que teimo em coleccionar. Já tive de dar um cartão amarelo às minhas afilhadas da tarde por causa da triste ideia da “Formação” e agora é o senhor ? Mande-as de regresso ao trabalho, porque os clientes já estão a dormir há muito tempo e assim não há cartões para o Natal.
1 Hora Antes
- Posso entrar ? – Perguntou o Vira-Bicos.
- Já não há pontos, - atirou de rajada a Doutora Sem Canudo.
- Trago uma ideia, é de borla, mas dar muita guita.
- Guita ?! – Perguntou a Mãe-Natal Sem Canudo, levantando-se e tocando com os olhos no peito sensual do artista do “palco-monga”. – Adoro clientes que cagam pepitas de ouro…perdão…perdão…dos coitadinhos dos desaparafusados. Faço tudo por eles !
- Tenho um projecto para uma Filarmónica-Monga, que irá tocar em todas as Festas de Natal, em todos os Centros Comerciais, desde as montras dos talhos até ao Palácio de Belém, o mesmo que toca a Filarmónica de Berlim, ou seja, “Let it Snow”.
- Posso ? – Interrompeu a afilhada, trazendo ao colo a sobrinha.
- Saiam todos, tenho de ir avaliar a bebé.
- Avaliar, tia?! Outra vez?!
- Avalio todos os bebés que apanhar pela frente, as vezes que forem necessárias. Não é por acaso que também sou Doutora em Intervenção de Prevenção.
- “Intervenção de Prevenção”?! Intervenção Precoce !
Mas a bebé já tinha memória e pirou-se da tia, fugindo para o único local da Cerci onde a Directora Auto-Nomeada ainda não ousava entrar: na sala da Chefe Bélinha!
- Então e a Filarmónica ? – Perguntou o Vira-Bicos, levantando a perna para deixar passar a criança em fuga.
- Sim, sim, mas também quero que toquem o “Adeste Filetes” daquele rei…
- O “Adeste Fideles”, do Dom João IV, - corrigiu o artista.
- Sim, sim, tirou-me as palavras da boca, e também o “Lengeri à l’éter de Bude”…
- O “Lovange à l’Étérnité de Jesus”, de Messiaen…
- …foi o que eu disse…e também quero a “Obratória da Páscoa”…
- …”Oratória de Natal”, de Bach…
- …e também o “Concerto de flatos pêra a notché du Natálio”…
- …”Concerto fatto per la notte di Natale”, de Corelli. Ainda falta muito ?
- Quero tudo isto para a Festa de Natal !
- Com tantas ideias, como já é tradição, quem vai acabar por tocar no palco é o Pai-Natal do Bar ! – Atirou o Vira-Bicos, já com fumo a sair das orelhas.
Mas a Doutora Sem Canudo estava noutra, preparava-se para montar uma emboscada à pequenita, colocando-se junto à porta da Chefe Bélinha. Mal sabia é que a pequena já tinha sido evacuada pela janela e ameaçara a tia de agressão, caso a trouxesse de novo para as mãos da Inquisição.
0 Horas
Mas o problema do dia não eram estas ninharias. O assunto era sério, o Camarada Choco tinha sido levado para o hospital, porque insistiam em separá-lo do seu sinal nas costas, em forma de santola. As interrogações existenciais eram muitas ! A Cerci estava, pela primeira vez na vida, suspensa num limbo angustiante. Será que na altura em que lhe puxassem a Santola, o Choco se comportaria como um frade das Caldas e ficaria com o cano em sentido ? Ou o sinal seria uma tampa que, depois de aberta, se revelaria uma autêntica “Caixa de Pandora”, de onde sairiam milhares de choquinhos, que tomariam de assalto a Cooperativa ? O Porres estava preocupado ! Os critérios para a sua selecção como Presidente estavam a anos-luz das qualidades de um Choco, quanto mais de mil. E se ao ser retirado, o sinal ganhasse vida e gritasse para o Choco, “papá” ?
Para o médico apenas representava retirar mais um carrapato a um marreco, mas para a Humanidade da Roque Gameiro talvez representasse a abertura da “Caixa do Choco”. Sairia de lá tudo o que ele amealhara ao longo da vida ? Haveria um ataque sangrento, estilo “Guerras dos Mundos”, mas em vez de máquinas seriam cuecas pretas com o símbolo do Benfica, que se colariam para sempre nas bacias de todos os Aparafusados e Desaparafusados; e atrás delas resmas de faluas vermelhas nº 50, que tomariam conta dos pés de todos, incluindo as patas das cadelas. Conseguiria o Arrasta-a-Pata deslocar-se com as barcaças ao longo dos vastos corredores ? E o Primo do Choco, reconciliar-se-ia com o Stor Rico, visto agora serem irmãos gémeos ? E o Stor-Rico passaria a fazer pisca com as faluas, de cada vez que trouxesse a trotinete ? O “suspense” adensava-se.
Na sala de cirurgias a equipa fora apanhada de surpresa pela visita inesperada da Santinha, que obrigara o Choco a mumificar-se junto à entrada do ar condicionado. Mas havia mais ! A identificação do paciente tinha sido feita por fotografia e eles não sabiam quem era a mãe, a filha ou o filho. O progenitor, o senhor Fininho, foi chamado de urgência, para lhes indicar a sua obra prima, mas até ele já estava com dificuldades.
- Da última vez que o vi chegava-me aos joelhos e agora já estão os três do mesmo tamanho. A culpa é dos “gémeos” “Tricas Cólicas”, - disse o pai, tentando impressionar a equipa médica, mostrando assim ser um empresário intelectual.
- O serralheiro destravado quis dizer genes do “Treacher-Collins”, - esclareceu baixinho a enfermeira. – A mãe tem, os filhos herdaram. É por isso que parecem todos uns chocos.
- Então, como é que vamos resolver isto ? – Perguntou o médico, olhando para o relógio.
Só havia uma solução: fazer uma amostra aos três.
- Mas isso é uma violação da varanda alheia, - indignou-se o Fininho, abrindo os braços e protegendo o cardume.
O ar frio do aparelho começara a ter efeitos no comportamento do paciente. O único gene congelara e começara a aparecer gelo nas orelhas.
- Nhi, nhi, - balbuciou o Choco.
Só o telefonema de um cliente conseguiu tirar o Virgulino do Bloco Operatório.
- Mas eu volto depois de fechar a varanda, - ameaçou.
Com as calças pelos joelhos foi fácil identificar o cobridor, através de uma estalactite torta e nervosa.
- É este. Ponham os outros lá fora e vamos despachar a operação, antes que o maluco volte.

Tuesday, October 17, 2006

Dias de Mérito

                           Camarada Choco


                                            Aventura 42

À porta da Escola para Desaparafusados & Afins, dez pirilampos de cor azul e com o tamanho do Arrasta-a-perna…perdão….Supervisor de Manutenção, intimidavam os trabalhadores, que iam lentamente chegando para mais um dia de trabalho.
- Hoje é o Grande Dia da entrega das estatuetas com os “Dias de Mérito”, - informava a afilhada da Dra. Sem Canudo, trajando o fato do casamento, já realizado.
Os critérios de selecção eram rigorosos, não fosse essa a imagem da gestão do Estabelecimento de Reeducação. O tapete vermelho estendia-se em direcção ao novo Espaço Desportivo, local de distribuição das comendas. O povo estava nervoso ! Na parede destacava-se um aviso: “é obrigatório o uso de identificação. Não é autorizada a presença de elementos estranhos neste “estaminé”. A segurança actuará em caso de desobediência”. E a força bruta não olhava a meios para estancar os intrusos: o Pato Donald barrava a entrada aos prevaricadores. De vez enquanto, tal qual um alarme de supermercado, lá se ouvia o barulho de uma corneta de feira, alertando para a passagem de um infractor. Entrava então en cena o Supervisor de Manutenção, que tentava deter o indocumentado, caso a perna permitisse a perseguição, o que não se passava a maior parte das vezes. Mas nem tudo eram espinhos ! A cultura tinha chegado aos desaparafusados: estava agora a descoberto uma zona pré-histórica, constituída por um conjunto giríssimo de calhaus. Teriam vivido nesta zona homens das cavernas ? Mongas cavernosos ? Porres e Virgulinos com uma tanguinha e um osso na cabeça ? Todos olhavam desconfiados para o primo do Choco.
- Parece um “crómanhôn”, - disse o Vira-Bicos, escrevendo a ideia no caderninho de planeamento de espectáculos. – Vou pô-lo no palco neste Natal, junto aos manos.
No bar a Dona Piulia explicava às colegas as razões para a sua esperada vitória.
- Vejam bem, “mérito” vem do latim, que significa “médico”. Ora a que tem mais “curriculum” para os “Dias de Médico”, sou eu. E já me doem as costas. Espero que não atrasem a festa, porque senão ainda meto a centésima baixa do ano.
Nos Serviços Administrativos o Porres esclarecia os seus assalariados que as suas ausências permanentes aos fins-de-semana, apesar de ganhar um extra para estar presente, não entravam nos critérios de selecção para o “mérito da Venteira”.
- Um homem com estas qualidades todas, Supervisor de Manutenção, Motorista Semanal e de Fim-de-Semana e Presidente, será sempre um vencedor, - dizia, com o peito inchado e a pata torta.
O Cabo ultimava a saída dos “Chips”, tentando que não se repetisse a cena das célebres “Folhas de Pagamento”.
- Ou eles saem depressa, ou o Pato Donald vai passar o dia a tocar a corneta.
O programa não era informático, tinha-se optado pelo modelo tradicional, mas muito mais fiável: o Pintor e o seu Bando ! Os B.I.P.R.I (Bilhete de Identificação Para Reeducadores de Inadaptados) silenciaram o pato e trouxeram um pouco de calma à zona da entrada.
- Estava a ver que tinha de ir a casa buscar a caçadeira e apagar o pato, - desabafou o Pintor. – Depois dava-o ao Stror Rico que o transformaria no melhor arroz da Península Ibérica.
Tirando o Choco, que congelara junto a uma das estátuas da entrada, tudo estava nos conformes. Tudo ?! Tudo não ! O Kodac tinha atribuído ao Pintor a profissão de Pintor e ele queria mais.
- Pintor, só Pintor ?! O meu grau académico é Pintor Formador Cobridor……enganei-me, foi a emoção….escreve só Formador, e enquanto o cargo não estiver oficializado no Cartão de Utente da Escola, não pincelo. Palavra de Escultor !
- Escultor ? – Interrompeu a Dra. Sem Canudo, agora convertida em Directora Geral de Mongas & Acompanhantes (D.G.M.A.).
- Escultor?! Eu disse Escultor ?! Queria dizer Formador, - emendou o senhor Pintor, de nome próprio igual ao do pai do Pitrongas, o que causava uma certa confusão na cabeça do pobre do Cliente-Monga (Climongas), levando-o muitas vezes a chamar pai ao Pintor e a dar-lhe os bons-dias em grego.
- Na minha LEI (Lei Geral Acanucada) não há lugar para “Formadores”, excepto se a minha afilhada o necessitar. O senhor mantém-se exclusivamente “Pintor”, e daí não sai, - ordenou a Dona do Espaço, conhecida entre os Mongas (Educativa) e Clientes (CAO) como a Dra. Sem Canudo.
Mas o Pintor era um homem feito com barro do século passado, tinha genes do Viriato e ripostou:
- Aqui , na Lei da República, eu sou “Pintor- Formador”.
- “Lei da República” ?! Essa eu também já comprei e não diz respeito aos mongas.
- Então, diz respeito a quem ?
- Amanhã, amanhã respondo….Kodac põe lá o “Formador”….”Lei da República”….disparate….a Lei sou EU. Tenho rapidamente de alterar os Estatutos, porque senão perco o tacho para sempre e vou ser obrigada a trabalhar na profissão que já deixei há vinte anos.
A monotonia foi interrompida por algo transcendental. O Porres entrou a andar normalmente no corredor de acesso ao novo Pavilhão Desportivo.
- Então agora já não mancas, ó coxo ? – Perguntou o Betão, a nova “cocluxe” da Cerci, com um volume de voz igual à da sua alma gémea, o Stor Pobre. Tinha entrado como Cliente, era mano da Piulia, mas muito melhor que a irmã, que ocupava um cargo de Supervisora de pegas e tapetes de Arraiolos inacabados, e sem data marcada, porque no turno da manhã começavam a montá-los e no turno da tarde era precisamente o inverso, tudo isto tendo como base filosófica o “Grande Livro Pedagógico da Doutora Sem Canudo”.
- Esqueceu-se que é coxo, - disse a Dona Gillete à sua colega mais nova.
- Eu bem te dizia que ele era coxo da cabeça – retorquiu a Dona Tosta, erguendo os braços em sinal de triunfo.
Seria este um segredo que se escondia atrás de muitos outros ? A passagem repentina de Condutor de Mulas para Supervisor de Manutenção, após a vitória numas eleições, introduzira na Cooperativa de Solidariedade o fantástico e trouxera o género lúdico contagiante que era apanágio de todas as outras “Escolas Para Desaparafusados”, o célebre “fui o primeiro a chegar, só saio dentro de uma caixa e deixo cá a família”. Entretanto, a proprietária massacrava, mais uma vez, a cabeça da Chefe Bélinha.
- Os teus subordinados andam a fazer as coisas fora do penico. À roda do cesto de papéis, que comprei a peso de ouro com o célebre subsídio para o ar condicionado, está cheio de papéis acastanhados com grainhas de uvas e caroços de azeitonas. Na minha secção isto é impensável, pois registo tudo em vídeo.
A conversa é interrompida por um sonoro flato, seguido de uma tosse forçada.
- Este deixou rasto ! – Gritou a Lolita, saindo detrás duma coluna.
- O que é que fazes aqui, Lolita ? – Perguntou exaltada a Directora auto-eleita, virando-se para a cliente.
A folga nas válvulas do Supervisor de Manutenção já era tema de conversa entre os mongas, agora chamados clientes com a Reforma da Segurança Social, e incluía também os que não falavam.
- Espero que a culpa agora não seja minha, não fui eu que o contratei – disse a Chefe Bélinha.
- Todos somos responsáveis pelo Supervisor. Por este andar qualquer dia passa para Cliente.
No andar em baixo ouviu-se de novo o som de uma corneta. Era o Stor Rico, vindo directamente do “Café Central”, a coxear. Nova corneta, novo coxo, desta vez a Terapeuta Zézé:
- Esqueci-me da identificação no “Condor”. O senhor Segurança Pato Donald pode esperar um pouco, porque eu vou perguntar ao Nélinho se já trouxe as malas da nossa magnífica excursão ao Algarve com os Mongas. Ficava naquele barco para sempre, depois de atirar pela borda fora todos os clientes.
- Mas para a próxima vez não tentes imitar a cena do “Titanic”, e ir abrir os braços para a proa. Tive de trazer mais um deficiente, desta vez uma coxa, - disse o Nélinho.
- Este Nélinho é tão insinuante que me faz acreditar no improvável, e desejar que seja real. Vou já meter uma baixa !
Na parede junto à Sala dos Têxteis, um cartaz do Departamento do Saco-Azul, situado na área do Treino Social, anunciava uma novidade:

“Aforro – Monga, se ainda acreditas que tens futuro aqui, investe numa poupança feita à imagem deste local, com garantias de retorno em mini-tijolos para barragens e tubos de ensaio para casamentos. E caso haja funerais, os nossos mongas estão aptos para tudo, são uma autêntica mina de ouro. Não há petróleo no Beato, mas em compensação a Venteira está cheia dele. A qualidade do produto é garantida pelo trabalho escravo dos funcionários e o descanso permanente das pepitas. Com os seus investimentos estão a garantir a Família e os seus Descendentes”.

Um pouco mais à frente outra novidade!

“Vá ao Parque Aventura da Bolacha, junto ao Bar Azul. Veja a magestosa videira do Virgulino; toque no pinheiro do Vira Bicos; sinta a frescura da erva daninha do Porres; prove um croquete da Duna; e muitas outras surpresas”.

Na porta de entrada o Choco continuava entregue às delícias da Santinha, que se apresentava, como de costume, em trajes menores, ou melhor, completamente pelada, influenciando assim os humores da cabecinha. Estes encontros libidinosos tinham sempre acontecido no balneário da piscina, quando ele tentava calçar as meias, que teimavam em entrar pelas orelhas; queria vestir as cuecas, amarelas à frente e castanhas atrás, como mandava a tradição, mas o nariz não deixava. A Santinha toldava-lhe a razão, ou melhor, os vestígios dela, e arremessava-o contra os prazeres da carne, neste caso um chouriço mal amanhado, com bolor, e torto, muito torto. A única parte do corpo mumificado que se movia eram os olhos, que seguiam o “show” da Santa, deixando-o numa posição convidativa: de cu para o ar ! Os glóbulos oculares estavam agora na nuca, porque a atrevida fugira para a pala, e acenava ao Choco com algo da Noruega. Estas cenas tinham sempre hora marcada quando estava no balneário, que coincidia com a presença de um velhote dotado de um fabuloso par de tomates. O reformado bem tentava chegar à roupa, mas o fato de treino estava sempre mais perto do nosso herói e ele temia ser atacado. Das poucas vezes que conseguiu alcançar as cuecas, vesti-as rapidamente, mas era tarde quando se apercebia que eram as do Choco, as pretas do Benfica. Nestas alturas já a carrinha ia longe.
Noutro canto o Pintor fazia contas ao prejuízo. De todos os “Noddys” e “Autoretratos” encomendados, foram poucos os que lhe tinham pago o serviço, sendo a mais caloteira a Patinho. Mas o sucesso era tanto, que houve quem quisesse uma pintura recatada, ou pelo menos era o que o artista tinha pensado. Felizmente que não tinha caído no conto do vigário dos pôr-do-sol africanos !
A afilhada tentava mostrar serviço, vendo nisto uma hipótese de promoção.
- É obrigatório o uso do Cartão do Cliente.
- Cliente ?! –Interveio a madrinha, - de Trabalhador da Doutora !
- Era o que eu queria dizer, de Trabalhador da Doutora.
No WC mais perto o Stor Rico olhava desesperado para o nascimento da sua careca.
- Não, não, logo agora que estou um tubarão-martelo. Se fosse há meio século atrás ninguém me agarrava, o cabelo estava pelos ombros, o bigode batia-me na testa, ia e vinha às Berlengas a nado, e ainda trazia um carapau com 30 Kg entre os dentes, depois de ter subido a Serra da Estrela dez vezes com a bicicleta do João da Fruta, e ter martelado várias suecas pelo caminho. Agora o meu ritmo é igual ao da Vespa.
Enquanto isso o Stor Pobre tinha acabado de levar com um cartão amarelo da Chefe Bélinha, por ter chamado coxo ao Porres.
- Eu não quero faltas de respeito para com o Arasta-a-Pata, - disse com autoridade.
Entretanto, as reclamações chegavam à mesa do Cabo Pilas. A afilhada da tarde, que só aceitava a Dra. Sem Canudo como madrinha quando todos saiam, reclamava:
- Então elas não são Especializadas e no cartão diz que sim. Eu não andei dois anos a comprar a Farinha “Pensal”, para agora estar ao mesmo nível das oxigenadas. Gastei um dinheirão até me sair o diploma.
- A mim saiu-me na “Cerelac”, - picou a Abelha Maia. – Ontem fui pela milésima vez ao Ministério e elas fazem poucas horas. Vou massacrar a Chefe.
O dia da Chefe Bélinha tinha nascido torto. Ela bem tentava atirar água em todas as direcções, mas os focos de incêndio iam reacendendo: o Stor Rico tinha um cano roto, a Abelha Maia mongas a mais e as colegas minutos a menos e o Stor Pobre tinha acordado com a carga toda e não largava os calcanhares ao Coxo….ao Arrasta-a-Pata…ao Deixa-que-eu-Chuto….
Finalmente ouviu-se uma corneta a sério, era o Castanheira a anunciar o início da festa de entrega dos “Dias de Mérito”. No vasto Recinto Desportivo, com capacidade para sete Mongas de 50 centímetros e dois Clientes de 1 metro e trinta centímetros e não mais do que 45 quilos e trezentos gramas, coube toda a Escola. No espaldar, a Dra. Sem Canudo anunciou os contemplados: Dona Piulia, o Supervisor de Manutenção e ela própria. Quanto aos restantes, aconselhou-os a esforçarem-se mais e a verem neles um exemplo a seguir.

Thursday, September 14, 2006

Director’s Cut

                        


Camarada Choco

                      (parte 3 da triologia "O Cabo das Tormentas" - O regresso do Cabo)
                                                     Que foi censurada na Europa

                                      Aventura 41

- Mas não era com isto que contávamos ? – Perguntava indignada a Menina Tatrícia à sua própria sombra, ao tomar conhecimento de que o Cabo pilas se tinha apresentado ao trabalho. – O homem, além de não ter dado o berro, mudou a cor para roxo. Tenho de ir avisar a Pilca.
A entrada na Sala das Roscas foi tão repentina, que passou por cima da educadora, dando-lhe uma panada no penico onde borbulhava a cera, que foi aterrar na cabeça do novo elemento, o Canivete Suíço 2, que ameaçou ir chamar o pai e o seu Mercedes, comprado com o saco azul que faz parte do fardamento dos fiscais de obras da Câmara Municipal. Um dos pingos continuou viagem e aterrou nas calças do primo do Choco, o motorista militar, que ameaçou de imediato o culpado com o pau que tinha dentro do carro:
- Deve ter sido um dos doutores ou doutoras, invejosos da minha grande afinidade com o camarada.
Aquele de quem o primo do Choco desconfiava estava longe, muito longe, a tomar o pequeno almoço, desde as oito da manhã, altura em que abriu a porta da Cerci à Dona Pilca, no sítio mais recatado da Venteira, o “Café Central”, na companhia da sua misteriosa companheira.
- O que é que queres ò mulher ? – Perguntou a Dona Pilca, assustada com a entrada intempestiva da colega.
- Nem imaginas quem é que voltou?
- Desembucha, que eu ainda tenho de pintar vinte azulejos para a Cremesse da Doutora e quinze tubos de ensaio para o Casamento Real da Afilhada.
- O Crómio!
- O dos “Morangos com Açúcar”?
- Qual “Morangos com Açúcar”, o Cabo, o Pilas, o maldito.
- O Pilas?
- Sim, o Sapo!
- Não te assustes, tenho tudo controlado e pronto para caso ele sobrevivesse, - disse calmamente a Senhora das Roscas, levantando-se e abrindo o armário, de onde tirou um boneco. – Preparei-me para este dia com o “Curso Intensivo de Magia”. – E mostrou um boneco de palha. – Apresento-te o Gonorreias!
- Bruxaria? Vê lá o que é que vais fazer.
A Dona Pilca afastou as revistas, deitou de barriga para baixo (decúbito ventral) o Gonorreias e enfiou-lhe, com todo o prazer estampado no rosto, uma agulha pelo “olho” dentro.
- AIIIIIIIIIIIIII – gritou o convalescente, lançando uma mão desesperada ao cagueiro, passando a coçar-se sofregamente.
- O que é que se passa, Kodac? – Perguntou a Psicóloga morena, aparecendo pelas costas do Cabo.
- São as cruzes, são as cruzes – respondeu a vítima, voltando-se para a colega.
- Chico?? Enganas-me sempre de cada vez que te vejo de costas. Mas estás com dores aí? O Coração é lá em cima.
- Se substituíres o “o” pelo “u”, vais ver que em mim não notas as diferenças, - tentou acalmar a colega.

Entretanto na Sala das Roscas.
- Mas isso funciona! – Exclamou sorridente a Menina Tatrícia, tirando da caixinha outro alfinete, espetando-o de imediato na parte frontal da bacia do Gonorreias.
O Pilas tirou as mãos do cagueiro e lançou-as sofregamente à fruta, dando uma cabeçada no vidro da secretaria, que assustou o Pato Donald, que foi a correr em pânico para o colo da assistente da Dona Sãozinha, obrigando-a a ficar com o telemóvel colada à vista esquerda.
- Digam-lhe que eu não estou cá, e só volto amanhã – gritou o Porres escondendo-se debaixo da secretária. - Assim, talvez ele se vá embora e só volte para a semana.
- Quando ele se misturar com os utentes nem vão notar, -exclamou a pupila da Dona Sãozinha, atirando o Pato para dentro do armário. – O Porres por arrastar uma perna e a cabeça foi logo para motorista. Isto está a ficar lindo! E não nos podemos esquecer que a Sem-Canudo está agora ao leme principal.
- Não tarda nada o barco encalha – respondeu o Porres, espreitando pelo vidro.
O Pilas estava parado, sem convulsões, e preparava-se para bater à porta.
- Vocês são indecentes – protestou a Pirosa. – Eu não quero meter-me nas vossas jogadas, mas o que estão a fazer ao senhor Cabo Pilas é desumano. A natureza já lhe deu aquele ar sapudo, o Coração atraiçoou-o, tiraram-lhe a sala, e agora vocês querem o quê?
- Sete palmos abaixo da terra – respondeu firme e com convicção a Senhora das roscas, tirando o Gonorreias das mãos da protestante e cravando-lhe uma tesoura na barriga.
A reacção do visado foi dada pelos intestinos, que soltaram um sonoro flato, que fez estremecer a porta dos serviços administrativos. O Pato Donald, que saia calmamente dos arquivos, deu um sonoro berro tipo corneta e foi enfiar-se na trincheira do Porres. Mas houve mais consequências. A orquestra sinfónica dos “Mongas com Açúcar” deixou de tocar o “Milho Verde”, a Doutora Sem Canudo riscou o cheque azul e a psicóloga morena ficou com o cabelo estilo carapinha, que levou o Gorila da Educativa a chamar-lhe “mana”.
- Epá, temos aqui um cavalo ! – Zurrou o primo do Choco, coçando a fruta.
- Devem ser os efeitos secundários dos remédios. Eles falavam em pequena flatulência.
- Pequena flatulência, Kodac ….Pilas, Pilas? – Perguntou indignada a Psicóloga Africana. – Penso que o colega não está nas melhores condições para se apresentar ao trabalho. Isso que o Cabo largou já está ao nível de um atentado suicida.
- Pôs-me em frangalhos as cuecas, - queixou-se o Pilas, desapertando o primeiro botão da braguilha.
- Eu não quero saber das suas intimidades – protestou a Psicóloga Morena Africana.
Mas nisto entra, sem aviso, a Psicóloga Loira e o Virabicos e acende um isqueiro….
- Não…….não……- ainda alertou a Assistente Social ,-cuidado com o Metano…..
A explosão foi tremenda!
No átrio só ficou de pé o Pilas, rijo que nem um chouriço nervoso. Façamos a descrição dos restantes elementos presentes:
- O cabelo da Psicóloga Loira foi parar à cabeça do Vira-Bicos, que passou a Cozinheiro – Sueco.
- A Psicóloga Morena, que já tinha sido vítima do primeiro flato do Cabo pilas, que a transformara em Psicóloga africana, herdou o bigode do Porres e passou à condição de Identidade Indefinida.
- Uma das tias que passava naquele momento, vinda directamente de um cabeleireiro, com um penteado tipo abajour, levou com as ondas de choque e ficou estilo hippie.
- A Senhora dos Têxteis saiu do estado letárgico e disse: “pode entrar”!
O Porres levantou-se e tomou uma atitude:
- Tirem o anãozinho mágico daqui antes que ele destrua o edifício.
Na Sala das roscas a Pirosa tentava separar as colegas e alcançar o Gonorreias.
- Parem, parem com essas maldades, coitado do Sapudo.
- Coitado? – Gritou indignada a Dona Pilca. – Coitada é de mim que sou uma vítima desse maldito sapo.
E novo ataque, agora um prego de aço, que penetrou no boneco de palha e furou-o de lado a lado. Parecia a partida de um Grande Prémio. O Pilas arrancou com o rabo a arrastar pelo chão, em direcção às entranhas da Cerci, deixando rasto no chão como o caracol. Quando o Porres se levantou já o Cabo não constava.
- Respeitinho é muito bonito. Eu sou o Presidente!
Pelo caminho atropelou a Dona Piulia, que meteu de imediato baixa.
- Não, não, não, - tornou a gritar a Pirosa, tirando de novo o Gonorreias das mãos das piranhas. – Vocês ainda o vão matar. Não viram que o pigmeu já ia a deitar fumo negro do escape?
- Cala-te ó mulher, não venhas para a minha sala dar-me lições de moral – impôs-se a Senhora das Roscas tirando o boneco de palha das mãos da beata, e arremessando-o contra a parede.
O arroto que o Cabo Pilas deu no bar foi tão grande, que atirou ao chão todos os noddys da sala do Pintor. Até o Lampreia enfiou vários murros na perna esquerda, preparando-se para um remate.
- Ouviste o urro do pequenote ? – Perguntou em desespero a Pirosa, agarrando no Gonorreias e atirando-o para fora da sala. – Eu não quero ter como amigas duas assassinas. É meu dever tirar-vos do caminho do Mal.
O anãozinho mágico de palha aterrou aos pés da Dona Piulia, que olhou para ele e disse:
- Olha uma pega. O que é que ela faz aqui no corredor? – Pegou nele e guardou-o na Bata.
A um bolso de uma bata chegam sempre os odores de quem a usa.
- Eu queria um pastelinho de bacalhau ? – Pediu o Cabo Pilas à Dona Espatinha.
- Um pastel de bacalhau?!
- Cheira a bacalhau. Como é daqui que se enche o maior saco azul da Doutora, pensei que tivessem aumentado a oferta.
- Francamente senhor Cabo, isto aqui ainda não é uma taberna. Tem de ir ao médico ver o que é que se passa com o seu olfacto.
Mas o Pilas estava noutra! Tinha o nariz apontado para o ar, à procura de um novo odor. Na outra ponta do corredor a Dona Piulia tinha-se escapulido, com o sinal de emergência ligado, para um canto do exterior.
- Mas aposto que está a cozinhar couves e feijão preto ? – Insistiu o Cabo Pilas.
- Couves e Feijão?! Francamente senhor Cabo, eu penso que o senhor deveria continuar com a baixa.
- Onde está o Gonorreias, Pirosa? – Perguntava desesperada a Dona Pilca, removendo todos os caixotes do lixo.
- Não sei, mas mesmo que soubesse não te dizia, bruxa malvada.
- Se não vai a bem vai a mal – gritou a Senhora das Roscas agarrando numa tesoura e correndo para a porta da sala. – Onde é que pára o Cabo Maldito?
Por vezes os céus estão atentos. Quem parou a marcha da Dona Pilca foi a ex-loiraça do Castanheira, que levou um encontrão tão grande, que foi projectada contra um dos móveis que a Doutora mandou trazer dum contentor junto à Azinhaga dos Besouros, para o Pintor o transformar à imagem desta Cooperativa de (in)sucesso.
- Vou tratar de ti, minha pequenina, - gritou a Pirosa, arrastando a Dona Pilca para a sala.
Entretanto…
- Trá-lá-la, trá-lá-lá – cantava o Nélinho no momento em que passava ingenuamente junto ao pesado amarelado que se encontrava tombado a obstruir a entrada da Sala das Roscas.
Mas nesse momento a ex do Castanheira acordou e fixou o açoriano.
- Ah então foste tu que me abalroas-te, meu bombom das ilhas. É agora que te vou encher a boca toda!
O resto são cenas íntimas, que nada têm a ver com o nosso querido Cabo Pilas.

Thursday, August 03, 2006

I Have a Dream!

                          Camarada Choco
                                                              Aventura 40

O primeiro sinal chegou pela manhã e fez-se silêncio absoluto na sala principal da Cooperativa: a impressora oferecida por um benemérito que fizera uma limpeza ao sótão de sua casa (e pensava que assim iria ter um lugar aprazível lá em cima ), mas que fora paga, e bem paga, por um projecto de apoio aos marrecos sem marrecas da câmara, debitava as célebres folhas de pagamentos, que durante muitos anos tinham sido feitas pelas saudosas mãos da sempre presente Dona Sãozinha, sem erros, e que foram depois substituídas, após a entrada da Doutora Sem Canudo, por um programa informático para traineiras da Somália.
Rostos ansiosos e corpos inquietos pelo sufoco da constante mongalhice contabilística, davam o tom a um ambiente de drama anunciado, criado pela necessidade absoluta de suprir dificuldades na atribuição de subsídios africanos: 10% do ordenado para não vir passear ao fim de semana com os mongas; 80% para quando se atingir a coordenação da própria coordenação descoordenada.
E finalmente a Folha de Pagamento debitou a categoria da funcionária contemplada: Paquete, com farda e tudo!
A notícia depressa se espalhou, a função passava a ser despejar os cinzeiros, os cheios e os vazios, e entregar bicas nas salas, com um horário de cinquenta horas semanais.
A ditadura acabara, a revolução dos cravos finalmente chegara à Cooperativa, 30 anos depois da outra. A contemplada tentava, desesperada e usando os mesmos modos de expressão da Papoila, a careca da sala do Milho Verde, voltar à posição anterior, mas a situação fugia-lhe ao controle. A máquina oferecida, mas comprada com um chorudo subsídio, que sustentava os 10% e os 80%, confirmava o veredicto.
- E ainda vou ter que comprar a farda, porque aqui as manias da Direcção são pagas pelos funcionários.
Tentou ainda uma última manobra:
- Eu é que mando, eu sou a proprietária deste espaço, a super-coordenadora de mim própria e dona de vocês todos - e ameaçou dar ordem à máquina para mudar a categoria de todos os insubordinados.
Mas o poder estava nos corredores e a contra-revolução não tinha apoios. Tentou fazer um apelo ao Presidente, mas este estava a tentar desentalar o filho da retrete e a meditar sobre a sua nova categoria: de Super-Intendente passara a apanha-croquetes. Lá se iam os 10% para não fazer nada ao fim-de-semana.
- Decreto que tudo o que aquela máquina debitar é ilegal, - tentou, mas o povo não deixou. – Isto é tudo culpa daquela contabilista que fui buscar de borla à Mitra, mas é ela a única que consegue manter o meu subsídio de super-dotada para descoordenar. Não posso mandá-la embora porque senão ainda acabo no Tarrafal.
Tentou reagrupar as tropas no Bar, mas a situação piorou quando deu de caras com 4 Noddys e uma Musa Pelada num sofá de pele de zebra, na sala do Pintor.
- Pornografia na minha quinta?
- Mas com que direito é que uma simples paquete ousa entrar por este espaço cultural, sem pedir licença? - Levantou-se o senhor Pintor, um ex-candidato ao Festival da Canção da Casa do Gaiato, agora promovido a Maioral da Roque Gameiro pela máquina marada. – Finalmente a justiça aos cinquenta anos, não andei todos estes anos a estudar e a pincelar damas para ganhar menos que o analfabeto do Presidente & Companhia. Vá imediatamente despejar os cinzeiros, sua pirosa armada em galo, os cheios e os vazios, senão apanha com um processo disciplinar por desobediência ao Maioral, senhora ex-doutora Sem Canudo, actual funcionária da categoria Paquete com Farda!
A Lei era a Lei, mesma para quem pensava que estava acima dela. A nova trabalhadora não teve outro remédio senão ir limpar as conchas e as tampas dos frascos de compota. Quanto ao ex-Pintor, escoltou-a até ao contentor, montado no cavalo da sala 4 da Educativa. Ainda pôde ver a contabilista estrábica a entrar de rompante na Secretaria, para tentar substituir o software africano por um chinês, ambos pagos a peso de ouro por um projecto para dar ar condicionado aos mongas.
- Depressa, restaure-me a categoria – gritou desesperada a Paquete com Farda mas Sem Canudo, enquanto abria a tampa verde e se cruzava com o Apanha Croquetes. – Temos de reconquistar o Poder.
- A culpa é sua, está sempre com esquemas marados.
- Não se esqueça que foi com “esquemas marados” que passou de “Instrutor de Mulas Coxas” a “Supervisor de Mongas e de Tudo o que Não Mexe”. Veja lá se quer retornar à profissão que deveria ser de toda uma vida, mas que graças a mim, e à minha astúcia, se transformou numa Lotaria.
- Acalme-se, acalme-se, estava só a brincar – acautelou-se o “apanha croquetes”, pensando no futuro. – Para condutor de mulas não volto!
Entretanto noutro canto da Escola o Cabo Pilas acabara de saber que tinha sido promovido a ajudante da cabeleireira na Sala das Roscas.
- Vais começar por derreter a cera com o bafo, ouviste anãozinho reformado, - ordenou-lhe a agora Madre Superior, a implacável Dona Pilca.
- Mas eu já não tenho bafo para apagar as velas, sou um deficiente das Forças Armadas, - lamentou-se o ex-militar, apoiando-se no ombro da Senhora dos Pincéis.
- Tira daqui o coto, ó meia-leca, e toca a trabalhar. Nesta sala és igual aos teus colegas das roscas. Tens dez minutos para preparar a cera. Já há clientes na sala de espera.
- Mas como é que isto aconteceu, ainda ontem era o Doutor Cabo Pilas e hoje sou o Chico da Cera?
- Cala-te pigmeu e toca a trabalhar!
Por cima deles, a funcionária da lavandaria, a Dona Tremelga, acabava de saber que estava aos comandos do barco e tinha rapidamente de dar um rumo à Instituição de pouca Solidariedade e de muitas cunhas.
- Eu? Porra, mas a P_ _ A da Dra. Agora é paquete e eu é que tenho de tomar conta desta M _ _ _ A ? F _ _ _ - SE o raio do azar. Ao menos vou deixar de lavar as cuecas do P _ _ _ _ _ _ _ O do Porres !
A anarquia instalava-se lentamente, até os têxteis tinham mudado de mãos. Agora era o Vira-Bicos que fazia rendas para fora e pegas para dentro e o Nelinho estava aos comandos da máquina de cozer. Quando à Dona Piúlia era a única que continuava mais para lá do que para cá, mas agora nos Serviços Administrativos a tirar fotocópias em branco.

TRIM, TRIM, TRIM,
tocou o despertador na casa da Doutora!
- Que pesadelo, chiça. Ter tantos tachos está a dar cabo de mim!

Friday, April 28, 2006

O Cabo das Tormentas (Triologia) - III



                                                   Camarada Choco
                          Triologia - O Cabo das Tormentas
Parte 3 - O regresso do cabo 
                                                    

A bonança tinha regressado e a Dona Pilca deitara a beatice para trás das costas e entregava-se agora à luxúria dos parafusos; a sua colega de martírio, a Menina Tatrícia, enterrara para sempre os remorsos e dedicava-se agora ao fabrico e exportação de sabonetes. A vida corria calma, para trás ficaram os dias loucos dos remorsos.
Mas a sorte ia mudar!
Algures na Escola de Reeducação de Desaparafusados, a psicóloga da área educativa estava ao telefone com uma encarregada de educação desaparafusada de um desaparafusado, tentando convencê-la que o cabelo do filho já não cabia na carrinha e que o cheiro atingira a redline, enquanto a mãe esclarecia que o marido, enquanto estava sóbrio, era um pai muito atento à educação do filho, tal como ela, que fora incomodada só para lhe dizerem isso. Ameaçou deixar de receber os subsídios se tornassem a acorda-la às onze da manhã.
Trim, trim…
Levantou os olhos do telefone e procurou a assistente da dona Sãozinha. Não estava.
- Que maçada, vou ter que ser eu a abrir a porta – refilou, arrastando-se até ao visor.
- Kodac? A esta hora da manhã? – Pensou, - que grande balda, entra às horas que quer – e carregou no botão.
Pouco depois um pequeno vulto compacto espreitou pelo vidro.
- Kodac, isto são horas de chegar à escola? – Perguntou de rajada a assistente da assistente da dona Sãozinha, levantando os olhos para o recém-chegado.
Ficou muda, abriu os olhos, recuou, deixou cair o telefone e, após um longo silêncio, cumprimentou:
- Bom dia Cabo Pilas, bem-vindo ao lar, doce lar.
O regresso do Cabo foi efusivamente recebido pelos alunos profundos da Educativa, e por dois coices da Papoila no armário da Dona Gillete, que deu um berro tão acústico que fez abanar as roscas da Dona Pilca e derreter os sabonetes da Menina Tatrícia.
- Meus Deus, senti um frio a subir-me pela espinha – resmungou a ex-beata Pilca.
- Epá, que grande arrepio – exclamou a ex-beata Tatrícia, rasgando a folha da revista “Maria”.
- …on…ia – respondeu, finalmente, o ex-ausente.
- Então, estás melhor?
- …elhor…que…unca!
- Estou a ver, estou a ver. Se me permites, Kodac…perdão…Pilas, vou continuar a falar com esta mãe.
- …ou…umprimentar..o…essoal.
Ao longe a Dona Pilca começou a pincelar a mesa e a coçar freneticamente a cabeça.
- Pilca, acalma-te – gritou a própria. – Que estranho, mas o que é que se está a passar? Estava tão bem.
Noutra sala..
- Estás a comer o sabonete, Tatrícia – avisou a assistente.
Toc, Toc,Toc – bateu o cabo na primeira porta do CAO.
Nada!
Resolveu abrir a porta e…
- …on…ia – cumprimentou.
- Bom-dia, bom-dia, bom-dia – respondeu uma das destravadas, abanando o corpo e trincando os dedos.
A Dona Gilette levantou a cabeça e avisou:
- Kodac, o que é que fazes aqui? Devias estar a pintar um Noddy.
Quando as lentes do bazar chinês finalmente conseguiram focar-se na cara do intruso, a senhora deu um pulo:
- Cabo Pilas? O senhor por aqui?
- …á…tou…om, ….do….melhor. Só….eria…dar os…ons….dias.
- Bom-dia também para si.
- Bom-dia, bom-dia, bom-dia, repetiu novamente a destravada.
Não houve tempo para outros cumprimentos, porque o Cabo seguiu viagem para a porta ao lado.
- Hoje não acerto com nenhum sabonete – queixou-se a Menina Tatrícia. – Não sei o que é que se passou comigo. Estava tão bem, se calhar é a “síndrome da santinha”, do Choco.
Quando o Cabo chegou aos têxteis, ouviu o berro da Dona Pilca.
- Mas o que é que se passa comigo? Nem consigo pôr uma rosca…e estes calores…este tremor – barafustava
- …on…ia – saudou os desaparafusados dos Arraiolos.
Ninguém se mexeu. Estavam todos mais para lá do que para cá, como do costume.
- …mas..o…que é que se passa? Estão…odos…alucos?
Seguiu viagem. O berro da Dona Pilca fez com que a Menina Tatrícia se precipitasse em ajuda à sua amiga de martírio. Assim, quando chegou à sala dos sabonetes, a assistente, que estava tão absorvida nos novos sapatos de pele de sapo desaparafusado, nem levantou os olhos, e limitou-se a responder-lhe ao cumprimento:
- Bom-dia Kodac.
Entretanto…
- Então, o que é que te aconteceu ó mulher? - Perguntou a Menina Tatrícia, entrando de rompante na Sala dos Parafusos.
- Estou com calores, muitos calores.
- Menopausa?
- Devo estar a ficar mais desaparafusada. Isto pega-se!
- Eu hoje também não ando a bater bem. – Confessou a Menina Tatrícia, sentando-se ao colo da Tininha.
Faltavam três metros para o Pilas atingir a porta da Sala dos Parafusos!
- Há qualquer coisa que não bate certo. Eu pressinto algo!
Toc, Toc, Toc, ouviu-se na Sala das Roscas. Ninguém ligou. Os comportamentos da Dona Pilca tinham-se agravado. De gatas no chão, coçava a orelha com a perna esquerda.
- Ó mulher, comporta-te, - gritava desesperada a Menina Tatrícia, tentando trazer à realidade a colega de infortúnio. – Eu já te tinha dito para não abusares das tintas chinesas. Agora deu nisto, o que é que te irá acontecer mais?
O destino por vezes é “madrasto”, e quando no passado há uma mancha negra, neste caso um Cabo, a vingança dos céus poderá ser terrível. Nem várias idas a Fátima atenuarão a ira celestial.
TOC, TOC, TOC, insistiu o ex-militar, não de Abril, mas de outro mês qualquer.
A orelha da Dona Pilca já deitava fumo, e um bigode republicano cobria-lhe a face.
- Outra vez esse sinal – gritou agora a Menina Tatrícia, um pouco assustada. – O “mustache” só aparece quando…
- Ele anda aí, ele anda aí – berrou a senhora da Sala das Porcas, pondo-se em pé em cima de uma das mesas e dando um biqueiro num dos alguidares, que continha o trabalho matinal das operárias.
- Ele anda aí, o fantasma do pequenote regressou para nos atormentar.
A Menina Tatrícia tinha-se sentado e, com a mão na testa, lamentava-se:
- O bigode republicano da Pilca não deixa dúvidas, é um sinal dos céus. É como o algodão, não engana. O Cabo regressou!
Lembrou-se então que, na Zambujeira do Mar, durante a peregrinação a Fátima, uma voz, vinda de um bode, lhe dissera:
“Se à Pilca um “Mustache” republicano lhe aparecer, é sinal do retorno do meia-leca.”
TOC, TOC, TOC, insistiu o retornado e prosseguiu:
- …ão …sur…dos…
- Entre – autorizou a Dona Pilca, já recomposta.
- …on…ia..
- Kodec? O que fazes aqui? – Perguntou a educadora.
- É ele, é o Belzebu Minorca! – Gritou a Dona Pilca, agarrando-se à Menina Tatrícia que, com o encosto, engoliu um sabonete de canela.
Quanto ao Cabo, desistiu de cumprimentar os colegas, e foi-se apresentar à proprietária do espaço, a especialista das especialistas, que o colocou no primeiro andar, longe dos pecados terrenos do rés-do-chão!

Sunday, April 23, 2006

Enchia-te a Boca

                                                     Camarada Choco
                                           Aventura 38

De tempos a tempos o tema vem à superfície: o conceito de “normalidade”!
Quem estiver mais de cinco anos nesta actividade de tentar “reeducar” um destravado, irá aperceber-se, durante as muitas visitas ao shopping local, que há mais gente com os carretos gripados do que com as válvulas no sítio. Isto quer dizer que o Partido dos Desaparafusados tem maioria absoluta, e o direito constitucional à “normalidade”, passando nós, a minoria, a "totós". Sendo assim, porque é que um “desaparafusado” quererá ser um “tótó”? Só se for parvo! E parvo é coisa que os desaparafusados não são. Prova disso é estarem sempre na mesma, graças à parvoíce dos totós: a interrupção oficial nas férias, que faz com que ele recuperem o estado anterior!
Concluindo, os “normais” de ontem são os “mongas” de hoje, e assim se atingem os célebres Objectivos Gerais do Ensino, sem se ter mexido uma palha. A “reeducação” é mútua!
No meio de toda esta onda filosófica está de novo o nosso Nélinho, que ainda não encontrou o seu caminho e, por tentativa e erro, lá vai conseguindo sobreviver. Safou-se dos têxteis para ir cair direitinho nas garras da madame Castafiore, uma leoa de circo reformada, já com pouco pêlo nas costas e uns caninos em falta, mas com uma fome demolidora. Tudo começou assim:
Vinha o Nélinho aos pulinhos, na sua ingenuidade açoriana, a pedir colinho a todas as fêmeas que encontrava, excepto nos têxteis, quando foi localizado, ao longe, muito ao longe, pela ex-felina brazileira, que um dia quis ser domada pelo Castanheira.
- Oh meus Deus, um tenrinho no meu dia de anos? – E escondeu-se atrás de um dos vasos da terapeuta Zézé. – Ainda bem que trouxe uma camisola verde, o tenrinho vai pensar que sou uma palmeira e engulo-o de uma só vez, - e acariciou a planta.
- Trá-lá-lá, um cogumelo, trá-lá-la, - cantarolava, na sua inocência, à medida que se aproximava da panela.
- Ui, ui, ui, até já pingo – gritava baixinho a felina, ao mesmo tempo que fazia ao tronco da planta o mesmo que os cães fazem com as pernas dos donos. – Vem, vem aqui ter com a mamã, meu “mon chérri”.
Nisto!
- Nélinho – chamou uma voz com sinais de “alta monguice”.
Voltou-se e…
- Senhora Doutora Sem Canudo ??? O que é que eu fiz?
- Porra, tenho concorrência – barafustou baixinho a tigreza. – Mas ela nem pensa que vai mordiscar este pedaço de picanha, e ainda por cima açoriana, alimentada a erva.
- Não se assuste Nélinho, eu só quero dar-lhe os “bons-dias”. Pode continuar.
- Obrigado.
- Ai vem ele, é agora, é agora que lhe vou encher a boca toda.
E ajeitou as prateleiras para o poder receber condignamente.
- Nélinho – tornou a chamar a Doutora Sem Canudo. – Eu acompanho-o, também vou ao bar, mas encher o saco azul.
- Bolas – gritou baixinho a ex-brasileira de cabeça oxigenada. – Bolas queria eu, é porra, grande porra, eles vêm para aqui, tenho de me esconder.
E mergulhou para o vaso, que ficou estilo “Torre de Pisa”, com os fundilhos a apontarem para o tecto. Mas o volume era tal e a vegetação tão rasa, que o “bumbum” não coube. Quem safou a situação foram as calças verdes do Bazar Chinês.
O par aproximava-se e a pulsação da felina já era sentida nas bordas do olho. Teve sorte, porque a doutora topou algo, mas deixou o assunto para mais tarde, porque o problema agora era a conta do gás, e precisava do dinheiro das bicas. Ao passar pelo vaso, a “proprietária” do espaço só disse “olha uma abóbora, a terapeuta Zézé vai ter que me explicar este método de estimular mongas, porque de vegetais também eu percebo. Na minha altura usávamos paus de gelados para criar rabanetes”.
- A mim parece-me mais um cagueiro…perdão…a parte traseira de uma daquelas vacas que tenho no quintal, lá na ilha – disse timidamente o Nélinho.
- O quê? Se eu digo que é uma abóbora é uma abóbora e não se discute.
E seguiram viagem.
- Abóbora? – Resmungou a dona Castafiore. – Um miminho destes uma abóbora? Mas ela pensa o quê? Ganhaste uma batalha, mas não ganhaste a guerra. O Nélinho vai ser meu, custe o que custar, nem que seja à força.
E saiu de traseira, visto ser impossível fazer inversão de marcha.
- Olé – gritou o Castanheira, desviando – se do pesado, - por pouco a madame atracava como o Pitrongas, de popa.
- Contigo atraco de qualquer maneira, meu motorista maroto. Até arrotavas.
- Cuidado com a língua, que eu agora tenho responsabilidades – avisou o Castanheira, desviando – se de mais uma marcha atrás.
- Ainda te puxo o travão-de-mão, tigrão – rosnou a sex(o)genária, mostrando os dentes, os que tinha e os que não tinha.
- Mas afinal o que é que a senhora está aqui a fazer, atrás do vaso e de cócoras?
- Estou à caça de um pitéuzinho que circula por aí. Se ele passar junto a mim dou-lhe uma dentada na maçaroca.
Foi o instinto que fez com que o Castanheira protegesse com as mãos as partes baixas.
- Tem calma meu motorista maroto, que eu agora já não quero chouriço rançoso. Quero é salpicão rijo.
- Oh minha senhora, estamos num local público cheio de desaparafusados e esses comportamentos não são dignos de uma idosa como a senhora. Se a sua filha a vê nestes preparos, o que é que irá pensar?
- Nada, ela é das mais desaparafusadas e é por isso que ouve o milho rei o dia todo.
- Já vi que não lhe posso dar um pouco de juízo. Vem aí o Porres.
- O Porres? Não gosto de cacete velho, é só côdea.
O Castanheira não queria encontrar-se com o chefe, porque senão cravava-lhe logo para fazer a outra volta, e por isso abandonou o local. Preferia a companhia dos desaparafusados genuínos.
O Porres vinha mais inclinado do que era habitual e em excesso de velocidade (talvez duas vezes a barreira do caracol). A posição dava-lhe uma panorâmica do chão e toldava-lhe a visão frontal. O choque foi inevitável. Deu-se um encontro de titãs!
- Ui,ui,uiiiiiiiiii – gritou a matrafona, agarrando-se freneticamente ao presidente. – Se não consigo petiscar um açor, sirvo-me de um torresmo.
- Porres – gritou a Doutora Sem Canudo, que estava de regresso com os bolsos cheios e com o Nélinho. – O que é faz aqui deitado? Deu-lhe um treco?
No meio da confusão que se seguiu à colisão, a tigresa tinha-se escapulido de novo para o vaso, e permanecia agora quietinha, tentando passar despercebida. E conseguira! No chão estava o homem que se intitulava o mais poderoso da Roque Gameiro, com o bigode colado ao chão e a perna marota no ar.
- Caiu uma das pedras, o muro está a colapsar, fujam – gritou.
- Nélinho, ajude o seu chefe que eu tenho de ir esconder o dinheiro na gaveta. Se o veêm exigem-me o dinheiro das refeições. Depois diga à terapeuta Zézé para me explicar a razão desta abóbora, - e tocou no enchumaço – e ainda por cima está podre. Ela precisa da aprovação de uma especialista em arranjos de vasos para desaparafusados, ou seja, EU.
- Canalha, outra vez a chamar abóbora a este bem-bom – resmungou baixinho a felina do “Circo Xunga”, tentando encolher a cintura pélvica.
Mas a uma acção há sempre uma reacção, e ao recolher a bunda, os músculos abdominais contraíram-se, apertaram os intestinos salientes e um som seco ecoou pelo corredor. O Porres, que já estava na vertical, atirou-se ao chão e gritou:
- Vêm aí mais calhaus.
- Nélinho, francamente, eu sei que lá nas ilhas vocês ainda vão atrás das vacas, mas aqui há muitas casas de banho – gritou a Doutora Sem Canudo.
- Mas eu…
- Nem “eu”, nem “mas”, recolha imediatamente ao refeitório e sente-se junto aos seus colegas, até nova ordem.
Num instante tudo voltou ao normal e o silêncio voltou ao corredor do tanque, excepto ao vaso, que abanava freneticamente. E não era por acaso. A predadora estava entalada entre os ramos e estava com dificuldade em meter a marcha-para-trás. Não foi graças a Deus mas sim ao Pitrogas, que estava de passagem, e deu-lhe uma ajuda, tendo ainda tempo para transmitir um “bons-dias” em grego.
- Cumprimentas mais uma vez e o prometido passa a ser devido.
Mas não houve tempo! A matrafona acelerou para o refeitório e, sem perder tempo, atirou-se ao Nélinho, gritando:
- Vou-te ENCHER A BOCA TODA!
Do Nélinho só se ouvia "haêga, haêga". Só dois baldes de água é que conseguiram acabar com a refeição.