Aventura 38
De tempos a tempos o tema vem à superfície: o conceito de “normalidade”!
Quem estiver mais de cinco anos nesta actividade de tentar “reeducar” um destravado, irá aperceber-se, durante as muitas visitas ao shopping local, que há mais gente com os carretos gripados do que com as válvulas no sítio. Isto quer dizer que o Partido dos Desaparafusados tem maioria absoluta, e o direito constitucional à “normalidade”, passando nós, a minoria, a "totós". Sendo assim, porque é que um “desaparafusado” quererá ser um “tótó”? Só se for parvo! E parvo é coisa que os desaparafusados não são. Prova disso é estarem sempre na mesma, graças à parvoíce dos totós: a interrupção oficial nas férias, que faz com que ele recuperem o estado anterior!
Concluindo, os “normais” de ontem são os “mongas” de hoje, e assim se atingem os célebres Objectivos Gerais do Ensino, sem se ter mexido uma palha. A “reeducação” é mútua!
No meio de toda esta onda filosófica está de novo o nosso Nélinho, que ainda não encontrou o seu caminho e, por tentativa e erro, lá vai conseguindo sobreviver. Safou-se dos têxteis para ir cair direitinho nas garras da madame Castafiore, uma leoa de circo reformada, já com pouco pêlo nas costas e uns caninos em falta, mas com uma fome demolidora. Tudo começou assim:
Vinha o Nélinho aos pulinhos, na sua ingenuidade açoriana, a pedir colinho a todas as fêmeas que encontrava, excepto nos têxteis, quando foi localizado, ao longe, muito ao longe, pela ex-felina brazileira, que um dia quis ser domada pelo Castanheira.
- Oh meus Deus, um tenrinho no meu dia de anos? – E escondeu-se atrás de um dos vasos da terapeuta Zézé. – Ainda bem que trouxe uma camisola verde, o tenrinho vai pensar que sou uma palmeira e engulo-o de uma só vez, - e acariciou a planta.
- Trá-lá-lá, um cogumelo, trá-lá-la, - cantarolava, na sua inocência, à medida que se aproximava da panela.
- Ui, ui, ui, até já pingo – gritava baixinho a felina, ao mesmo tempo que fazia ao tronco da planta o mesmo que os cães fazem com as pernas dos donos. – Vem, vem aqui ter com a mamã, meu “mon chérri”.
Nisto!
- Nélinho – chamou uma voz com sinais de “alta monguice”.
Voltou-se e…
- Senhora Doutora Sem Canudo ??? O que é que eu fiz?
- Porra, tenho concorrência – barafustou baixinho a tigreza. – Mas ela nem pensa que vai mordiscar este pedaço de picanha, e ainda por cima açoriana, alimentada a erva.
- Não se assuste Nélinho, eu só quero dar-lhe os “bons-dias”. Pode continuar.
- Obrigado.
- Ai vem ele, é agora, é agora que lhe vou encher a boca toda.
E ajeitou as prateleiras para o poder receber condignamente.
- Nélinho – tornou a chamar a Doutora Sem Canudo. – Eu acompanho-o, também vou ao bar, mas encher o saco azul.
- Bolas – gritou baixinho a ex-brasileira de cabeça oxigenada. – Bolas queria eu, é porra, grande porra, eles vêm para aqui, tenho de me esconder.
E mergulhou para o vaso, que ficou estilo “Torre de Pisa”, com os fundilhos a apontarem para o tecto. Mas o volume era tal e a vegetação tão rasa, que o “bumbum” não coube. Quem safou a situação foram as calças verdes do Bazar Chinês.
O par aproximava-se e a pulsação da felina já era sentida nas bordas do olho. Teve sorte, porque a doutora topou algo, mas deixou o assunto para mais tarde, porque o problema agora era a conta do gás, e precisava do dinheiro das bicas. Ao passar pelo vaso, a “proprietária” do espaço só disse “olha uma abóbora, a terapeuta Zézé vai ter que me explicar este método de estimular mongas, porque de vegetais também eu percebo. Na minha altura usávamos paus de gelados para criar rabanetes”.
- A mim parece-me mais um cagueiro…perdão…a parte traseira de uma daquelas vacas que tenho no quintal, lá na ilha – disse timidamente o Nélinho.
- O quê? Se eu digo que é uma abóbora é uma abóbora e não se discute.
E seguiram viagem.
- Abóbora? – Resmungou a dona Castafiore. – Um miminho destes uma abóbora? Mas ela pensa o quê? Ganhaste uma batalha, mas não ganhaste a guerra. O Nélinho vai ser meu, custe o que custar, nem que seja à força.
E saiu de traseira, visto ser impossível fazer inversão de marcha.
- Olé – gritou o Castanheira, desviando – se do pesado, - por pouco a madame atracava como o Pitrongas, de popa.
- Contigo atraco de qualquer maneira, meu motorista maroto. Até arrotavas.
- Cuidado com a língua, que eu agora tenho responsabilidades – avisou o Castanheira, desviando – se de mais uma marcha atrás.
- Ainda te puxo o travão-de-mão, tigrão – rosnou a sex(o)genária, mostrando os dentes, os que tinha e os que não tinha.
- Mas afinal o que é que a senhora está aqui a fazer, atrás do vaso e de cócoras?
- Estou à caça de um pitéuzinho que circula por aí. Se ele passar junto a mim dou-lhe uma dentada na maçaroca.
Foi o instinto que fez com que o Castanheira protegesse com as mãos as partes baixas.
- Tem calma meu motorista maroto, que eu agora já não quero chouriço rançoso. Quero é salpicão rijo.
- Oh minha senhora, estamos num local público cheio de desaparafusados e esses comportamentos não são dignos de uma idosa como a senhora. Se a sua filha a vê nestes preparos, o que é que irá pensar?
- Nada, ela é das mais desaparafusadas e é por isso que ouve o milho rei o dia todo.
- Já vi que não lhe posso dar um pouco de juízo. Vem aí o Porres.
- O Porres? Não gosto de cacete velho, é só côdea.
O Castanheira não queria encontrar-se com o chefe, porque senão cravava-lhe logo para fazer a outra volta, e por isso abandonou o local. Preferia a companhia dos desaparafusados genuínos.
O Porres vinha mais inclinado do que era habitual e em excesso de velocidade (talvez duas vezes a barreira do caracol). A posição dava-lhe uma panorâmica do chão e toldava-lhe a visão frontal. O choque foi inevitável. Deu-se um encontro de titãs!
- Ui,ui,uiiiiiiiiii – gritou a matrafona, agarrando-se freneticamente ao presidente. – Se não consigo petiscar um açor, sirvo-me de um torresmo.
- Porres – gritou a Doutora Sem Canudo, que estava de regresso com os bolsos cheios e com o Nélinho. – O que é faz aqui deitado? Deu-lhe um treco?
No meio da confusão que se seguiu à colisão, a tigresa tinha-se escapulido de novo para o vaso, e permanecia agora quietinha, tentando passar despercebida. E conseguira! No chão estava o homem que se intitulava o mais poderoso da Roque Gameiro, com o bigode colado ao chão e a perna marota no ar.
- Caiu uma das pedras, o muro está a colapsar, fujam – gritou.
- Nélinho, ajude o seu chefe que eu tenho de ir esconder o dinheiro na gaveta. Se o veêm exigem-me o dinheiro das refeições. Depois diga à terapeuta Zézé para me explicar a razão desta abóbora, - e tocou no enchumaço – e ainda por cima está podre. Ela precisa da aprovação de uma especialista em arranjos de vasos para desaparafusados, ou seja, EU.
- Canalha, outra vez a chamar abóbora a este bem-bom – resmungou baixinho a felina do “Circo Xunga”, tentando encolher a cintura pélvica.
Mas a uma acção há sempre uma reacção, e ao recolher a bunda, os músculos abdominais contraíram-se, apertaram os intestinos salientes e um som seco ecoou pelo corredor. O Porres, que já estava na vertical, atirou-se ao chão e gritou:
- Vêm aí mais calhaus.
- Nélinho, francamente, eu sei que lá nas ilhas vocês ainda vão atrás das vacas, mas aqui há muitas casas de banho – gritou a Doutora Sem Canudo.
- Mas eu…
- Nem “eu”, nem “mas”, recolha imediatamente ao refeitório e sente-se junto aos seus colegas, até nova ordem.
Num instante tudo voltou ao normal e o silêncio voltou ao corredor do tanque, excepto ao vaso, que abanava freneticamente. E não era por acaso. A predadora estava entalada entre os ramos e estava com dificuldade em meter a marcha-para-trás. Não foi graças a Deus mas sim ao Pitrogas, que estava de passagem, e deu-lhe uma ajuda, tendo ainda tempo para transmitir um “bons-dias” em grego.
- Cumprimentas mais uma vez e o prometido passa a ser devido.
Mas não houve tempo! A matrafona acelerou para o refeitório e, sem perder tempo, atirou-se ao Nélinho, gritando:
- Vou-te ENCHER A BOCA TODA!
Do Nélinho só se ouvia "haêga, haêga". Só dois baldes de água é que conseguiram acabar com a refeição.
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