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315 estórias

Monday, December 16, 2013

A Nossa Luz


Comandante Guélas

Série Colégio Militar


Vale a pena contar os acontecimentos da vida dos Meninos da Luz, porque se reconhece neles um significado decisivo e profundo. No século XIX por causa de um artista com um Q.I. igual ao do Alguidar, o colégio foi momentaneamente extinto. Por isso é preciso ir resgatar ao passado as palavras adequadas ao momento:

- “Verticalidade, meus meninos, é o que se exige, quanto mais se dobra a espinha mais o rabo fica a jeito!”

São detalhes tão delicados e preciosos que nos preenchem o encantamento que sentimos por este espaço. O lendário estabelecimento militar junto ao Largo da Luz era uma instituição sui generis, onde os alunos eram conhecidos pelos números, e os cães e os cavalos pelos nomes. Mas havia mais excentricidades!

- O Colégio Militar é o único local do país que canta o hino nacional a 6 vozes, - dizia com orgulho o meia-leca do professor de música narigudo e com careca avantajada, encostado ao órgão, em cima dum estrado, que fazia a vez de tacões.

O Carioca não estava com toda a certeza a pensar no 324, que tinha grande dificuldade na despalatização, e que nunca conseguira retirar a humidade das camaratas das cordas vocais, encravando com regularidade a língua no “entre as brumas da memória”, cantando “entre as brumas da mimória”, levando sempre o docente, atento a coisas mínimas, a um esbugalhar de olhos, um vociferar para dentro, seguido de uma fúria tão grande que levava o padre a pecar de imediato, com dois chapadões à maneira.

- Pior do que tu só aquele tenente-coronel pequenino, escuro e enrugado, que só faz merda, - desabafou um dia.

Mal ele sabia que este gesto inconsequente iria ter repercussões para toda a vida do sub-Diretor, pois este acabara de entrar no panteão das alcunhas: Olho-do-Cu!

Por isso, só uma minoria servia para aves canoras, estando as canas rachadas arrumadas, a excentricidade maior, no Canto Coral, que no resto do país significava elite.

- Encontrámos um cavalo na serra de Monsanto, e pensamos que vos pertence, - informou o guarda da GNR quando o Oficial de Dia atendeu o telefone.

E era verdade. Havia sempre confusão de cada vez que os cavalos eram levados para as aulas de equitação. No Largo da Luz seguiam em procissão bichos com os carretos gripados, em direção à Azinhaga da Fonte, no fundo da qual entravam no colégio e no respetivo picadeiro. Davam coices nos soldados, nos colegas e faziam riscos nos carros. Por isso às vezes extraviavam-se!

Só um colégio com o lema “Mente Sã em Corpo São” é que foi capaz de dar ao país adultos com tanta qualidade como o Gordini, o Peidão, o Escalope, o Zacarias, o Cão, o Leitão, o Pitosga, o Beterraba, o Six, o Maneli, o Coiote, e tantos, tantos outros que “por obras valorosas “ merecem pertencer à “Ínclita Geração”.

- Não se mexam, - gritou o enfermeiro Valério à medida que espetava as agulhas nos Meninos da Luz alinhados.

Seguia-se o colega Valentim com uma seringa atestadinha de produto, distribuindo uma dose a cada rapaz. De novo o Valentim para recuperar o material e desinfectar, com o mesmo algodão, a zona de penetração. Por isso uma das provas de admissão consistia em inspecionar a fruta dos petizes, para ver se era normalizada, uma modernice que se estendeu às leguminosas do país muitas décadas depois.

- Ó puto, julgas que eu estou aqui porque quero? – Perguntou ao futuro 191 o soldado ajoelhado à sua frente, com um tomate em cada mão, quando ouviu o riso do candidato. 

O 601 levava tão a peito o parágrafo oitavo do “Código de Honra”, “ser generoso na prática do bem” que, em vez de requisitar egoisticamente solarina “Coração” para dar brilho aos botões enfiados na Tala, instrumento que os separava do pano da farda, para não a manchar, escreveu na folha “Camisas de Vénus”, possivelmente para distribuir pelos colegas. O senhor Manuel é que não compreendeu o gesto e por isso saltou o balcão e correu atrás do artista, disposto a fazer-lhe a folha. E um dia até requisitou a Rosa!

Quando o padre Castelão chegou à aula de Religião e Moral, já com atraso, deu de caras com o 78 a fazer a vez de professor, sentado na secretária, e a abanar algo para os camaradas:
- Estas são a chaves do Céu!
Acabou o dia na barbearia com uma carecada.

Dizer a verdade e não mentir era um mandamento sagrado e incondicional do Colégio Militar. Não havia nenhuma circunstância, nenhum pretexto, nenhuma conveniência, nenhuma motivação para mentir. Mentir implicava a rejeição da dignidade da Luz. Foi com os olhos postos nos 10 mandamentos que o 413, actualmente a residir no Algarve em formato hippie, arriou com tanta força no 191, que “até me doeu”, disse mais tarde o 120. Felizmente o  mandamento nove estava suspenso desde a fundação, tal qual como o quinto mandamento do Moisés, e por isso todos os procedimentos tinham decorrido dentro da lei. Uns minutos antes a algazarra na camarata era tanta, que obrigara o graduado a medidas extraordinárias. Acendeu as luzes e com o mandamento cinco (“ser verdadeiro e leal, assumindo sempre a responsabilidade dos seus atos”) no pensamento, gritou:
- Quem não está a falar, lá para fora.
Saíram vários, incluindo o 31, que estava a decorar a matéria em voz alta, e que segundo as suas convicções safava-se graças ao quatro, “dedicar à sua formação todo o seu esforço e inteligência”, que o excluía da categoria de ruído. Felizmente nem todos iriam ter direito a ceia, duas estaladas bem aviadas por desrespeito à corneta, que já declarara há mais de meia hora que o tempo era de silêncio. Na semana anterior não fora assim, por causa de um artista que se deitara de cuecas, um desrespeito aos procedimentos militares, todos tinham tido direito a uma dose. E foi durante o ritual de preparação para a festa que o 191 fez uma pergunta, por gestos, ao 120, que lhe respondeu na mesma linguagem. Azar, o 413 estava raivoso e interveio de imediato:
- Estás a falar, apresenta-te, - sinal de que iria ter direito a uma entrada.
O 191 lembrou-se do mandamento dois, “dignificar a farda que enverga”, no caso o pijama, e interveio, assumindo as responsabilidades, fora ele o responsável pelo gesto ruidoso do colega.

Circulava a informação de que o vinho das refeições, outra excentricidade, além de água também continha cânfora, destinada a açaimar o íntimo. Mas não é isso o que a literatura da especialidade diz! Talvez esteja aqui encontrada a explicação do porquê das “Ginas” terem estado durante longos anos no top das preferências, mesmo com a concorrência feroz do livro de estudo de português que dizia “piscis conas funderunt”, sinal de que ensinar línguas mortas neste espaço educativo desenvolvia tudo menos o intelecto.
Nestes tempos marchava-se para todo o lado, o “esquerdo direito, op dois, esquerdo” era o que mais se ouvia, seguido de continências o dia todo. E como de início a confusão de fardas e patentes era uma constante, o 502 e vários colegas saudaram um dia com aprumo um inspector da carris que entrou no eléctrico impecavelmente fardado para pedir os bilhetes aos passageiros.
 

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