Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
Série Paço de Arcos
Esta
é uma estória que trabalha de orelha em orelha, por isso de cada vez que o
Peidão pedia ao Graise para o ir buscar a casa, este fazia sempre a mesma
pergunta:
-
O teu avô está preso?
O
ano de 1975 foi pródigo em brincadeiras militares e Paço de Arcos não foi
exceção.O avô do Peidão e o pai do Bajoulo eram generais da “brigada do
reumático” e estiveram durante todo este ano de prevenção contra quaisquer
movimentações de indivíduos suspeitos, que incluía mulheres de bigode farto,
sovacões eufémicos e pintelheiras dinossáuricas, sinais revolucionários, que se
aproveitavam dos calhaus com olhos para dizer que os representavam, ou melhor,
para gamarem e ocuparem em seu nome. Quando se soube que um grupinho de
artistas vestidos com narizes vermelhos estava a preparar-se para fazer uma
visita de “cortesia” aos burgueses do alto da vila, uma vez que a Comissão de
Moradores de Paço de Arcos chumbara a proposta dos meninos ricos de alargar o
conceito de “chalé” às barracas da Pedreira, onde vivia o Ratinho Blanco, estes
dois militares da velha guarda prepararam-se para os receber condignamente.
Houve trocas de armas, capturadas uns anos antes aos turras, eletrificaram-se
as janelas, ou melhor, pintou-se o sinal de “Alta Tensão”, que bastava para
assustar aqueles portadores de neurónio único, as agulhetas das mangueiras
foram mudadas para melhorar o banho anual, e assim causar a confusão nas linhas
inimigas quando eles regressassem a casa com cheiro a burguês, os informadores
da PIDE, Polícia de Investigação e Defesa da Esquerda, o guarda noturno, o talhante,
o jardineiro e o vendedor de fruta, todos Josés, começaram a dar de caras com os
canhangulos dos militares da velha guarda. O primeiro era uma espécie de
profissional liberal, que só assaltava as casas dos que não lhe pagavam a
dízima, e não passava recibo. O segundo foi vítima de uma emboscada quando ia a
meio da escadaria e o militar de cachimbo o saudou com um revólver que mais
parecia um canhão, obrigando-o a abandonar os bifes e a só parar no colo do
patrão, o pai do João Gordo. O nascimento da lenda estava reservado para uma
tarde de Verão, quando o Zé jardineiro informou o avô do Peidão de que estavam
a assaltar a casa das duas alemãs, que só tinham pastores alemães com uma
mancha ariana na língua. O herói agarrou no pistolão, acendeu o cachimbo e rumou
em direção ao teatro de guerra. Deu de caras com um puto de fraldas a tentar arrombar, com uma enxada, um armário
cheio de caramelos, contrariando as ordens do pai, que queria ouro e dinheiro. Ao avistar
o cowboy da terceira idade o puto molhou as calças à frente e rendeu-se de
imediato, não se tendo nunca sabido se a pintura rupestre traseira tinha sido
causada pelos caramelos espanhóis fora de prazo, ou pelos efeitos fisiológicos
fora de controle. Foi visto por todos com os braços no ar, indo atrás de si o agora“General
sem Medo”. A notícia depressa se espalhou pela vila, e até o guarda noturno
deixou de ser visto por aquelas bandas, havendo quem dissesse que se tinha
reformado. Mas a história não ficou por aqui. O petiz ficou detido na casa do
militar enquanto este entregou à Palmira uma ordem de serviço para que ela
telefonasse ao Chefe Bigodes, enquanto fazia guarda ao perigoso malfeitor. A
uma certa altura o general, para ganhar mais pontos para a sua fama tenebrosa
disse, em voz alta, que pretendia dar um tiro na perna do petiz, para que ele
aprendesse a lição mais consistentemente. Nova mija, mas desta vez no sofá da
casa, obrigando à intervenção imediata da autoridade máxima do rés-do-chão, a
Milu, que deu ordem de marcha ao marido, porque caso o não fizesse o rapazito
ainda lhe sujaria a sala toda. Após isto ofereceu um lanche ao Zézinho do
Telhado e deixou-o voltar para casa, ainda a tempo de ver mais um episódio do
“Kimba”. Mas a estória não fica por aqui! O grande fornecedor de canhangulos
era o pai do Bajoulo, um guerreiro com a voz metálica, que num dos treinos diários
transformara um humilde pombo caseiro, que ousara descansar no seu telhado, num
monte de penas voadoras, cuja anilha bateu com violência no alcatrão da rua, só
parando aos pés do dono que o treinava para o campeonato nacional.
-
O que vai ser de mim sem o meu “Barão Vermelho”? – Gritou o proprietário.
-
Toma lá esta nota e compra um no Zé da Antónia, que ele tem lá muitos iguais a
esse! – Respondeu o general, descansando a arma no ombro esquerdo, e tirando as
penas que lhe sujavam o blusão de aviador.
O
Pacheco, o Focas, o Pontas e o Pilas gravaram para sempre nas suas almas o
encontro do 4º grau com esta lenda paçoarcoense. Foi numa noite escura e
chuvosa, quando tentavam desmontar um extintor na oficina da garagem do chalé
da família do amigo Peidão. Saído, nunca se soube de onde, no meio de um
nevoeiro cerrado feito de fumo de cigarros, apareceu-lhes a figura imponente do
“General sem Medo” de pistolão em riste, apontado aos corpos rijos dos amigos
do neto, que faziam as delícias do Capitão Porão, um oficial revolucionário que
vivia na parte de baixo de Paço de Arcos, que jogava noutro campeonato. Os
braços foram levantados tão depressa em sinal de rendição, que o Focas não
conseguiu esconder a crueza da violência sofrida deixando sair intempestivamente
um valente flato, que o Pacheco interpretou como um tiro, caindo assim
desamparado sobre um armário, de onde caiu uma caixa cheia de parafusos, tendo
ainda tempo para um último pensamento:
-
O velho vai-me por solas novas na alma!
Houve um instante eterno!
-
Ah, és tu! – Exclamou o colega do pai do Bajoulo olhando para o neto, e
guardando o pistolão nas calças, manifestando assim a sua efetiva presença na
comunidade.
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