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315 estórias

Monday, May 21, 2012

O Túnel da Luz


Comandante Guélas
Série Colégio Militar


Dizia a lenda que o Colégio Militar estava ligado ao Instituto de Odivelas por um túnel, que povoava a imaginação de todos aqueles jovens fardados de cotim com as hormonas aos saltos, por isso a descoberta da entrada do “El-Dourado” teria consequências incalculáveis no desempenho do batalhão, que passava parte do dia a martelar o alcatrão com os calcanhares, a tarde em esgalhações coletivas enquanto o Pequito debitava o verbo “Avoir” e grande parte da noite a fazer ranger as camas. Mas algo estava a acontecer! Na aula prática de química o Gordini distraiu-se com o pensando enredado nas saias das Meninas de Odivelas, despejou no alguidar do ajudante Morais, o Ruca, o Sódio e o Potássio da turma, provocando uma explosão que fez com que o Patronilha se descontrolasse momentaneamente na Java 125, e quase se enfiasse pelo pátio da Infia adentro com a sua bela Julia à pendura, onde, devido à deslocação do ar, o capitão Oscaralhinho desesperava em tapar apressadamente a careca, puxando o cabelo que tinha sido atirado com violência para cima da orelha direita.


- Nesta aula uns dormem de olhos fechados e outros de olhos abertos, - reagiu o engenheiro Grijó.


Na aula de equitação, quarenta e cinco minutos agonizantes a trote, onde a fruta batera com violência na sela, o ten-Coronel Dores (ex 120) ordenara à metade da turma, a outra estava na aula de esgrima, para irem secar os cavalos no exterior do picadeiro, deixando bem claro que só poderiam ir a passo, avisando o chefe de turma de que qualquer incidente seria da sua responsabilidade. Ao longe, os camaradas faziam combates no exterior. Foi dada a ordem de “alto,” e alinharam os animais. Os da esgrima prepararam-se para o embate, a loucura comprimida dos Meninos da Luz acabara de estar contida,  todos despejavam adrenalina em vez de suor. Não foi em passe, nem a trote, nem a galope, mas sim numa carga tão grande, por momentos todos queriam salvar as suas dulcineias imaginárias, a barreira de candidatos a mosqueteiros desfez-se, deixando passar os animais desembestados, que foram chicoteados com os floretes de aço, que os atiraram para o campo de obstáculos, onde o Peixinho saltou pendurado na sela.

No laboratório de línguas o Teatcher preparava-se para debitar mais uma aula do seu Americam Language Course, estando os alunos a ocupar individualmente as boxes com a panóplia de instrumentos, e no momento em que colocou os auscultadores no alto da sua mesa de comando, o 224 deu um berro tão grande ao microfone, pedindo-lhe que lhe chupasse uma parte do corpo, que todos viram o docente dar um salto na cadeira, abrir a boca e retirar apressadamente o que pusera nos ouvidos.
Quando o lusco fusco chegou havia movimentações inabituais lá para os lados do estaleiro de obras junto ao pavilhão de Ciências. O Horrível, o 191, o 120, e o 667 tinham acabado de encher uma lata de tinta com mijo, e do rijo, e não sabiam o que fazer com tão precioso líquido, até que um civil enfiado num fato azul cueca a deslocar-se calmamente em direcção à igreja da Luz lhes chamou à atenção. Apesar de ser tempo de verão, a chuva que caiu sobre o incauto cidadão foi tão repentina, que ele nem teve tempo de abrir o chapéu para a chuva, que não trazia. Alguns minutos depois foi visto a berrar com o Chico Porteiro na Porta de Armas.
A notícia correu depressa pelo pessoal, o Vinasse anunciara o “achamento” da entrada para o Túnel que ligava diretamente às Meninas de Odivelas, e tudo isto durante o consumo de um cigarro debaixo de uma árvore numa zona interdita virada para o Estádio do Glorioso. Ao princípio pensou que era do efeito do fumo, mas uma observação mais cuidada revelou um pedaço de azulejo antigo, que foi de imediato datado do tempo de D. Dinis. Escavou um pouco mais e apareceram outros, e mais outros, e mais…, o Horrível ficou eufórico, já se via a chegar clandestinamente ao Instituto em formato de “Desejado de Odivelas”, no meio de uma noite de nevoeiro, saindo de um alçapão secreto atrás do túmulo do rei de barbas ruivas, e por ser o maior auto intitulado predador do Largo da Luz, que dava sempre ao fim de semana oito de seguida sem ver a luz do sol, teria com toda a certeza um batalhão de meninas à sua espera. Escavou, escavou, até acabar com o resto das unhas roídas, e se aperceber que só fazendo apelo ao lema  “um por todos  e todos por um” poderia atingir as cuecas tão desejadas. Pediu reforços! Mas o Gordini, o Becas, o Peidão, o Xoxo, o Bétis e o Barrada, não foram suficientes. O buraco continuava dum tamanho miserável, e escadas nem vê-las. Veio a turma, mas precisaram de mais, muitos mais. E vieram, a recompensa era do outro mundo. Quando a cova já ameaçava desabar sobre grande parte dos militarzinhos imberbes, e enterrar para sempre muitos sonhos libidinosos, apareceu o Moca e o Meia-Lua, que acabaram com a festa à custa de paus e pedras, mais os berros incompreensíveis do primeiro.
Do outro lado do pecado também havia movimentações junto ao leito do monarca: "Chegámos a usar as nossas pulseiras de prata, daquelas com nó e grupo sanguíneo, em jeito de pêndulo, para descobrir a tal passagem” (Menina de Odivelas)!
 




Wednesday, May 16, 2012

A Revolução



Comandante Guélas
Série Colégio Militar


Se quisermos traçar um retrato do tema desta aventura, é necessário descrevê-lo de múltiplos ângulos simultaneamente, porque falar do 25 de abril de 1974 é muito denso e complexo. O Colégio Militar é a prova de que o passado existe e o presente não é tudo o que há, e o que se fez de bom e de mau nos momentos posteriores é importante para se sentir os tempos de exceção. Deram-nos tudo, inclusive o amanhã. A vida no Colégio Militar dos anos 70 era dura, desprovida de sentimentos éticos, com pouca solidariedade, mas muita amizade. Reinava a tradicional "apresentação à alvorada", o castigo preferido dos sádicos que obrigava os subordinados a vestirem-se com a farda de pano mal tocasse a corneta, apresentarem-se ao carrasco, voltarem à origem e vestirem-se de cotim, irem de novo ao encontro do graduado, correrem para a cama para se fardarem outra vez de pano, e apresentarem-se pela última vez. Findo este ritual voltavam à farda de cotim, faziam a cama, sem vincos no lençol, e teriam de chegar a tempo à formatura, cujo toque era vinte minutos depois do da alvorada. E a maioria falhava! Teriam de passar pelo Comandante de Companhia aluno que, de uma maneira geral, também sentia prazer em fazer sofrer os “camaradas”, e por isso lhe enfiava um par de abrunhos, uma espécie de pequeno-almoço adiantado. O domingo à noite era o regresso ao Colégio Militar, no "Ricochete" havia sempre uma atividade frenética na casa de banho, trocavam-se as calças à boca de sino, as camisas com golas em forma de asas e os sapatos de tacão, pela farda cor de pinhão. A próxima ordem de soltura seria no sábado à tarde seguinte, altura em que alguns voltariam a visitar a família, enquanto outros permaneceriam meses e meses à guarda da instituição, uns com os pais longe nas Províncias Ultramarinas e outros já sem pais por terem tombado na sua defesa. A Porta de Armas esperava-os até às onze da noite, hora a partir da qual teria de haver uma explicação plausível para o atraso, senão arriscavam-se a ficar “detidos” no fim-de-semana seguinte, com uma carecada aos ombros. Na zona da enfermaria havia a tradicional emboscada, da responsabilidade dos graduados, que faziam do colégio a sua coutada, o seu clube privado, e que de uma maneira geral nacionalizavam a bolama. Mas houve uma quinta-feira única: O Escalope foi o primeiro Menino da Luz a aperceber-se da revolução dos cravos! E tudo por causa dum ataque de meteorismo intestinal que, para não levar os colegas a pensar ser o toque da corneta da alvorada, o obrigou a ir soltar os gases para os lados das latrinas. Aí deu de caras com o Elefante a ouvir num rádio azul a música “E depois do adeus”.
- Cheira-me a senha!
O 305 foi assim o primeiro aluno do Colégio militar a saber que tudo iria ser diferente a partir desse dia. Até o Diretor, que até essa data era o ”homem invisível”, foi visto a tomar o pequeno-almoço no Corpo de Alunos. A refeição decorreu dentro da normalidade, de tempos a tempos ouvia-se um copo a despedaçar-se de encontro ao chão, seguido de um grito em uníssono de metade do batalhão, “Paga já”, que obrigava o Zé Pereira a deslocar-se em passo de corrida com um bloco na mão até ao prevaricador, obrigando-o a assinar uma nota de pagamento, que seria depois entregue ao encarregado de educação. Mas de uma maneira geral eram precisas mais notas de pagamento porque o lema do Colégio Militar, “um por todos, todos por um” tinha sempre um sentido prático, e neste dia do mês de abril de 1974 a amizade foi levada ao extremo: 180 alunos estavam dispostos a suportar o prejuízo, “1/180 avos de um copo”.  No regresso do refeitório havia soldados a montarem metralhadoras em tripés na parada, e a posicionarem-se, e os alunos foram informados de que não havia aulas e teriam de se manter naquele espaço. Colocaram televisões no geral das companhias onde o Balsinha, que mais tarde iria perseguir os colegas do canal com uma pistola, fazia o relato do jogo. Por volta das 19H30 deu-se o acontecimento mais marcante do dia, o ex-33, o general que usava um fundo de garrafa num dos olhos, que seguia num Peugeot preto de matrícula IC-52-69, escoltado pelo chaimite “Bula” em direção à Pontinha, deu ordens para pararem, saiu do carro e com uma continência cumprimentou os camaradas. O êxtase dos meninos da Luz só teve equivalência ao dos pastorinhos de Fátima quando deram de caras com a madona na azinheira, e todos se precipitaram para o exterior das companhias em direção ao Zimbório. Nem o Moca conseguiu parar a turba, apesar de ter acertado em vários com o pau, no Escalope, no Coiote, no Judy, no Peida-Gorda, no Elefante, no Gordini, no Peidão, no Micróbio, com que costumava abrir as janelas após o Toque da Alvorada, um som de uma corneta engasgada, ao mesmo tempo que gritava ordens numa língua que só ele compreendia.
- Até tu Duque, - exclamou o Comandante do Corpo de Alunos para um Menino da Luz com uma overdose de adrenalina.
- Cuidado jovens, cuidado, pois estão uns homens maus a atacar Lisboa – avisou o padre Baldomijo.
Nos claustros alguns correram pelas escadas acima e saudaram o Spínola na varanda da sala por cima da do Diretor. Ainda houve algumas escaramuças, um grupo meteu-se com soldados que iam para o refeitório, cujo jantar foi croquetes com arroz branco e salsichas, e foi admoestado pelo oficial de dia:
- Energúmenos fascistas!
O 332 e os amigos foram obrigados a irem pedir desculpa aos magalas. Os ideais revolucionários contaminaram muitos alunos, o Teta sugeriu ao Escalope um 25 de abril lá para os lados do pavilhão de ciências:
- Vamos soltar os ratos!
Houve momentos de camaradagem, o 608 chorou baixinho junto à Infia por temer pela vida do pai, ministro do antigo regime, e os amigos consolaram-no. A primeira vítima da nova era foi um capitão, e tudo porque um Che Guevara de geração espontânea entrou pelo seu gabinete e, em vez de seguir o protocolo e pedir “Sua Excelência dá licença que entre”, trocou o verbo e gritou, “Sua Excelência dá licença que penetre”, e penetrou de imediato, a frio. O oficial sentiu um vento e uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do interior obscuro , e quando se preparava para responder ao pedido com um abrunho entre os olhos do indisciplinado, este desatou a correr para as camaratas, levando colado ao seu traseiro alguém à beira de um ataque de nervos, que nunca o conseguiu alcançar. Noutra ponta do colégio a fava calhou ao Didi, professor de inglês, que se encontrava numa situação invulgar, ao verificar que no fim da aula, e já no exterior, os alunos tinham formado duas fileiras, para ele passar pelo meio. Seria uma nova forma de festejar a liberdade? E porque é que os militarzinhos tinham nas mãos dicionários da disciplina? Puxou a franja para o lado e avançou, primeiro cautelosamente, mas quando sentiu um livro a tocar-lhe nas costas, acelerou escadaria abaixo, com a biblioteca no seu encalço. A partir daqui o Colégio Militar entrou em autogestão, formaturas nem vê-las, as “apresentações à alvorada” eram coisas dos “dias negros do fascismo”, muitos começaram a fumar, os cigarros deixaram de ser de uso exclusivo dos mais velhos e o Ramalho deixou de ter clientes. Um dia apareceu, numa das raras formaturas da Terceira Companhia, um oficial com uma monstruosa tabuleta ao peito a dizer “COPCON”. Trazia nos sacos várias calças, blusões e uma coleção de sapatos. Informou então os presentes de que, devido à restauração da balda…perdão, da liberdade, o povo da Luz iria ter direito a decidir o seu próprio destino, a começar por aquilo que queria vestir. A decisão foi tomada por unanimidade: calças à boca de sino, blusão slim e sapatos de tacão alto! O militar do Otelo olhou demoradamente para a escolha do povo, e imaginou-o a marchar para o seu chefe em estilo Parada Gay, viu-o a rir-se, arrumou apressadamente a tralha e foi-se embora, gritando:
- Estão a brincar com a Democracia!

Sunday, May 13, 2012

O Brinquedo

Comandante Guélas

Série Colégio Militar




O Peidão, o Azias, o Pani, o Teta, o Madiura, o Zacarias eram, por altura da Revolução, Meninos da Luz e como tal estavam a ser preparados para a defesa da pátria, que estava em debandada das Províncias Ultramarinas. Na Parada junto ao edifício do Geral das Companhias, que eram quatro, havia vestígios de outras guerras, dois canhões do primeiro conflito mundial, que serviam para o senhor Delgado tirar as fotografias da praxe, enviando depois a conta exorbitante diretamente para os encarregados de educação, por isso era mais conhecido como o Chulógrafo; um tanque da Segunda Grande Guerra, por baixo do qual todos os ratas eram obrigados a passar e, acabada de chegar, vinda diretamente de África, uma soberba Panhard. O batalhão estava formado no pátio quando o brinquedo e o oficial maneta que o trazia estacionou. Depressa a auto metralhadora ligeira foi despojada de todos os acessórios, sofreu mais nas mãos destes meninos do que nos vários anos em combate contra os turras. Numa bela noite de verão uma mão cheia de adolescentes danados para a brincadeira, e com insónias, e um oficial malandro, foram protagonistas de uma aventura digna do major Alvega, o herói desta geração. O tenente era pequenino mas a tabuleta que usava no braço esquerdo, com a inscrição de “COMANDOS” dava-lhe um ar cruel e implacável. O Bico, o Galinha, o Cavalo, o Coiote, o Pitosga, o Gordini, o Cão, o Morena, o Peixinho, o Xicaca, o Mijón, o Horrível, o Vinesse, o Escalope, o Cabedo, o Pejó, o Judi, o Minhoca, o Sorridente, o Peida Gorda, o Loira, o Cu-de-Senhora, o Barrada, o Bétis, o Xoxo, o Six, o Bicuda, o Elefante, o Vaca, o Leitão, o Camélia, o Pencas, o Bina, o China, o Peugeot, o Brumi, o Barbas, o Labras, o Fiasco, o Jóia, o Picanço e mais os outros artistas do início, pegaram no brinquedo blindado e empurraram-no até ao ginásio, no topo do colégio. Por essa altura o tenente estava a entrar no seu Mini branco estacionado junto às bombas de gasolina, dando início à ronda. O blindado já estava pronto para a partida mas faltava ainda arranjar lugar para uma mão cheia de soldadinhos, que não faziam questão de vir a pé. O Horrível sentou-se no lugar do condutor e avisou os passageiros de que não era aconselhável permanecerem parados durante muito tempo, pois o Xavier, o Celestino, o Moca, e outros vigilantes poderiam andar pela zona. Avisou também  que o checklist tinha detetado a ausência do travão de pé.
- O travão de mão basta, - disse o Peidão.
Quando o monte de meninos se pôs em movimento, o pequeno “COMANDO” já vinha a entrar no pátio em marcha lenta, não fosse estar alguém a evadir-se por alguma das janelas da sala de leitura da quarta companhia. O blindado, tapado com uma mão cheia de garotinhos fardados de cotim cruzou-se com o funcionário careca da cozinha, o Meia-Lua, e a deslocação de ar quase o atirou para o chão. Só faltava uma reta seguida de uma curva para a esquerda, que se abria depois num vasto pátio onde o batalhão costumava desfilar antes do almoço, caso o oficial de dia fosse daqueles que adorava ter 600 meninos, desde tenrinhos a peludos, a marchar só para ele. Quando o tenente pequenino com uma tabuleta no braço direito a dizer “COMANDOS” em letras maiúsculas e a bolt fez a curva que o levava para os lados do ginásio, deu de caras com um blindado a transbordar de alunos. Um reflexo inesperado fê-lo galgar o passeio e salvou-lhe a vida, uma vez que o 125 não fazia questão de puxar pelo travão-de-mão, mas sim passar a ferro o Mini branco. A Auto Metralhadora entrou pelo pátio a alta velocidade e acabou a viagem sozinha, pois os garotinhos evaporaram-se como éter, cada um para a sua caminha.









Saturday, April 28, 2012

Prevenção Rodoviária

Comandante Guélas
Série Paço de Arcos

Quando o Cabeça de Ananás, nickname posto pelo próprio pai da criança, que durante algum tempo também lhe chamou “Dois Cus”, nasceu, o avô Mene tornou-se no bisavô mais babado da Costa do Estoril, e depressa tomou em mãos a responsabilidade de, finalmente, conseguir educar com bons princípios morais este novo neto, uma vez que em relação aos outros tinha sido uma desgraça. Vivia sem esperança de continuidade, o “Quadro das Lamentações” , onde dava explicações de matemática e física aos netos, que acabavam sempre aos gritos e insultos, e com a intervenção musculada da Milu, estava ameaçado de extinção porque os neurónios do Peidão tinham atingido a redline. A esperança residia agora no Cabeça de Ananás, ou Dois Cus, como preferirem, que era um puto dotado de mais neurónios que os pais e os tios todos juntos, que passava o dia todo na garagem a brincar com o bisavô. Mas houve um dia, no meio de muitos outros, que o tempo ia parando! O avô Mene estava equipado a rigor, um soberbo penico da segunda guerra cobria-lhe a cabeça, apito colado aos beiços, com uma corrente de tampa de bidé a dar a volta ao pescoço, botas cardadas com solas esfomeadas e uma raquete de ping-pong pintada de vermelho e azul, as únicas cores existentes na moradia de dois andares, em cujo rés-do-chão ele era o cabeça de casal, enquanto que no de cima reinava a filha, e o “Dois Cús” em todo o logradouro. A cor vermelha forrava metade das torneiras do jardim, indicando que toda a água que por aí saísse debitava no contador do avô Mene. Por isso usava mais as azuis, da responsabilidade do genro!
- Aiiiii, - gritou pela centésima vez, indicando que o Cabeça de Ananás lhe passara novamente com os rodados por cima dos calos.
Estava tudo ainda muito fresco, na semana anterior ameaçara esganar o petiz que, seguindo a tradição familiar, aproveitara uma distracção e trancara-o no quarto das ferramentas, perdendo a chave logo de seguida. A Milu só deu pela falta dele quando o chamou pela enésima vez para o almoço, onde só se apresentara o Dois Cús, que comia alegremente um ovo estrelado, exclusivo desta bisavó, que só era atirado para a frigideira quando a manteiga atingia o ponto de rebuçado, ameaçando aevaporar-se, tendo ainda ousado comentar:
- Que irresponsabilidade, pedi-lhe para tomar conta do menino e nem para isso serve!
O avô Mene já espumava, mas de nada lhe valia. Pediu que lhe trouxessem o petiz junto à porta, e deu-se início às negociações:
- Se tu disseres onde escondeste a chave, dou-te um chocolate, - prometeu, com uma voz suave.
O Dois Cus deu umas coordenadas e a Milu correu para o andar de cima, e espreitou por detrás do sofá. Falso alarme. Chave, nem vê-la!
- Pensa bem, o avô não se zanga, até te dá um Lego, - tornou a prometer, mas desta vez com um canino de fora, que o Dois Cus não conseguiu ver.
Novas coordenadas, e a bisavó escada acima outra vez. Falso alarme, na casa de banho com o tampo transparente para baixo, uma modernice da Milu, só havia restos de uma mija descuidada.
- Se eu te apanho meto-te os dentes para dentro, - berrou o avô Mene, cravando as unhas na porta. – Isto já se tornou um hábito.
Tinha razão, trancá-lo era já um comportamento inscrito nos genes dos seus descendentes, que o dissessem o Peidão e as irmãs, que um dia o tinham encurralado no torreão da casa da Base das Lages, onde permanecera parte do dia a gritar por socorro para o exterior, enquanto a Milu se ausentara com os petizes para fazer compras no “BX” dos americanos, loja conhecida como “BIEX” pelos autóctones. A única chave que conseguiu abrir a porta cinzenta de pinho maciço foi um machado, a segunda ferramenta preferida do avô Mene, a seguir ao martelo. O almoço decorreu dentro da normalidade, com o Cabeça de Ananás, ou Dois Cus, nicknames da responsabilidade do pai, que se tinha atrasado nos estudos devido a uma “pneumonia dupla”, como se costumava justificar, que se transformara em tripla devido ao estado em que lhe tinha deixado o Cérebro, a correr de um lado para o outro, incluindo várias passagens por cima da mesa. Nos dias de hoje teria levado com várias doses de Ritalina, destinada aos irrequietos de antigamente, classificados nos dias de hoje com o pomposo nome de “hiperativos”. Após a refeição as duas crianças, uma de cinco e outra de setenta, rumaram para a garagem e foram acabar a brincadeira do polícia sinaleiro. Avô Mene a rigor no seu papel de autoridade e o Cabeça de Ananás a pedalar freneticamente no carro.
- Aiiiii, - gritou o polícia sinaleiro após a passagem dos rodados por cima dos calos.
E continuaram! Até que os “ais” do avô Mene foram substituídos pelos gritos alucinantes do Dois Cus, que obrigaram a uma descida fulminante da Milu à cave. O petiz tinha um galo do tamanho dum capão, e o avô Mene segurava em pânico numa lata de tinta vermelha que, segundo ele, lhe tinha caído da mão e, azar dos azares, acertado nos cornos do pequenito. A versão do Dois Cus era diferente, o polícia sinaleiro tinha-lhe atirado deliberadamente com o objecto à tola, após mais uma passagem por cima dos seus calos. A brincadeira ficou por ali, a verdadeira autoridade mostrou um cartão vermelho ao polícia sinaleiro!  

 

Tuesday, April 10, 2012

Projeto Golfinho

Camarada Choco
Aventura 87

O nome do projecto metia respeito, mas nada indicava que se destinava a Desaparafusados. E a mítica equipa dos “Tubarões do Seixo”, cujo “i” era de uso obrigatório de cada vez que saíam para o exterior, não fosse alguma tia considerar tal nome uma afronta aos grogues de todo o mundo, há muito que já estavam a preparar-se para o derby. A fama era tal, que até jogadores de outros estabelecimentos para desaparafusados tinham abdicado das suas equipas de coxos, e preparavam-se agora para dar o seu contributo aos “Tubarões do Sexo”, perdão, falta o “i”, “Tubarões do Seixo”. O pai do Samecas não o queria deixar ir, porque da última vez regressara a casa sem parte substancial dos dentes da frente após um sprint fabuloso, que lhe deu entrada direta na “Caderneta dos Grogues”, que só terminou no poste da baliza adversária. A visão traíra-o! Mas o Samecas insistia em mostrar ao seleccionador a sua excelente forma física, com constantes flexões e acelerações, que passavam razias aos cantos e aos colegas.
- Se perdes peças outra vez, o teu pai inscreve-te no Grupo de Zombies do Vira-Bicos, e penduras as botas para sempre, - avisou-o o Stor Pobre, dando-lhe um majestoso empurrão, para testar o equilíbrio, argumento a que o progenitor se agarrava agora para não o deixar ir.
Mas como tudo era tática, estes apertões eram feitos na presença de todos, para assim servirem de apoio ao campeão, que nunca se estatelava. E a opinião de todos acabou por ser diferente da do pai, e assim o mítico “69” teve autorização para fazer parte da selecção da Escola Para Desaparafusados da Venteira, e rumar em direcção ao colégio com nome de descobridor. Mas um problema grave estava a afetar a moral da equipa: o estado lastimoso do Cristiano Ranhocas, o fabuloso Choco, cuja mãe se tinha enganado na medicação, e passara o mês a dar-lhe dois comprimidos SOS por dia.
- Um de vez enquanto, e só se ele lhe atirar um móvel mexicano para cima. É dose de elefante, - advertira o médico dois meses antes. – E se for tomado em excesso queima-lhe o resto dos fusíveis, e depois nem a Proteção Civil lhe vale!
O ponta-de-lança, que iniciara a carreira futebolística no século anterior, e fora inteiramente moldado pelo seu padrinho Stor Pobre, arrastava-se agora pelos corredores, com a língua a deixar rasto no chão como o caracol, e um olhar sensual.
- Vai, e ponto final, - disse o treinador, contrariando a opinião generalizada de que ele estaria possivelmente mais para lá do que para cá.
A novidade na selecção era o regresso do velho Kodac, agora um trabalhador incansável no bar dos médicos do hospital da zona, responsável pela limpeza dos cinzeiros clandestinos, que ele também ajudava a encher, e pelo esvaziamento dos restos das bejecas que forravam os fundos das garrafas que tinham de ir vazias para o vidrão. A justificação encontrada para a ausência ao trabalho da quarta-feira seguinte, foi a excecionalidade do evento, e uma forma de compensar tão empenhado trabalhador. E tudo isto saiu da cabeça da Dona Espatinha, após uma insistência permanente do padrinho de todos eles. A frente de ataque estava decidida: um Leitão que só carburava com doses maciças de nicotina, um Míope com queda para a travadinha e um Zombie! O meio-campo também era de sonho. Decidiu-se por um atleta em formato de Buldózer, o Gorilão, que só costumava parar quando o adversário ficava reduzido a um grafitti ou o mister ameaçava cortar no empadão do almoço. Na ala esquerda estava o coxo-mais-rápido-da-Brandoa, o Ládi Manquê, poeta nas horas vagas, e carregador oficial da mochila do velho Stor Pobre. A baliza estava entregue a um estrangeiro, o Moreira, um ex-rival do clube de Oeiras.
- O tamanho da equipa dos “Tubarões do Seixo” é decidido pelo treinador, pois todos sabem que é a única que possui regras próprias de funcionamento.
Foram escolhidos dois para a defesa, o Castelinho, que tinha mais perfil para rendas e bordados, e preferiu ficar no banco no papel de enfermeira, e a Chinesa Queque, cuja experiência em jogos viris se reduzia à tentativa diária de violação do Ládi Manquê.
O dia D chegou, e quando a primeira equipa adversária apareceu, o Stor Pobre apercebeu-se que eles eram aqueles chicos espertos que sabiam qual a baliza onde deveriam marcar golos, e eram exímios em passar a bola. Alteração de tática, tudo o que era Desaparafusado na assistência foi mobilizado, e obrigado a dar o seu contributo para a vitória dos “Tubarões do Seixo”, o único team que condensava em si todos os golos do encontro. Iniciou-se assim a partida com vinte contra cinco! A primeira interrupção do encontro aconteceu quando o Choco resolveu estacionar-se dentro da baliza adversária, impossibilitando o guarda-redes de defender essa metade.
- É a zona indicada no plano de jogo, - esclareceu o seu treinador, lembrando que “fora” era só para os outros, e quando ele indicasse ao árbitro, que também podia marcar golos pelos “Tubarões do Seixo”.
E quem não quisesse jogar nestas condições que fosse esgalhar para outra freguesia! A selecção de Futebol da Escola para Desaparafusados da Venteira, os míticos “Tubarões do Seixo”, regressou à base com uma taça nas mãos e a sensação de dever cumprido.

 PS.: O Samecas mal entrou em jogo desequilibrou-se e caiu, conseguindo in extremis dar uma pirueta e cair de costas!