Camarada Choco
Série "Malucos Anónimos"
1
“Senti
a minha Mente partir-se em duas / Como se o meu Cérebro se tivesse dividido /
Tentei uni-lo – Costura a costura / Mas não cheguei a consegui-lo”
Emily Dickinson
Os
peixes, as sereias e os malucos, não dormem. O mundo que nos rodeia parece tão
sólido e tão estável, mas afinal não passa de uma construção imaginária. Esta é
a estória de dois amigos inseparáveis, o Constantino e o Viriato, ambos com
predisposição para a dualidade, donos de problemas graves nas cablagens, que os
stressava com regularidade, altura em que os seus fantasmas complexos subiam
das catacumbas destas santas alminhas, e saiam-lhes pelas orelhas. Por dizer
muitas vezes que falava com os mortos, Constantino acabou sendo internado. Sonhava
com os olhos abertos e tinha sonhos oníricos, em criança sofrera de pesadelos
geométricos, cujas visões eram insuportáveis e asfixiantes, mas o que ninguém
sabia é que conseguia usar as emoções dos mortos e as suas relações que tinham
tido com os vivos, para entrar em contacto com eles. Viriato recebera o nome de
um herói, por isso tinham-lhe exigido que vivesse a condizer, mas não sabiam
que viera ao mundo arrastando o fantasma de um familiar morto, por isso já
tinha os neurónios passados a ferro pelos eletrochoques, aplicados a quente,
sem relaxantes ou anestesia, que numa noite o fez sentir um funeral no seu
cérebro. Nunca conseguiu ouvir o som do riso.
Os
sonhos do Constantino estavam repletos de anões, que lhe entravam pelo ânus e
faziam-lhe cócegas nas tripas. Quando acordava tinha sempre aos pés da cama um
cesto com ansiedades fresquinhas, insultava-se em várias escalas de furor
porque vivia sobre o dorso do vento. Puseram-lhe fraldas, “que são para os
bebés”, queixava-se, por isso pensava ser esse o motivo das negas que a Lucinda
Careca (que tinha sempre um pelo pecaminoso a sair-lhe da narina esquerda, em
que as rugas entre o seu nariz e os cantos da boca lhe davam um aspeto de uma
morsa triste, cujo corpo a derreter acentuava um traseiro comprido, como o
Diabo gostava, que mais parecia um par de braços gordos) lhe dava quando pedia
um “beijo com língua”:
-
Cheiras a merda, - respondia invariavelmente a sua Dulcineia, revirando os
olhos, a tudo e a todos, sinal de que só dispunha de sintomas.
Lucinda
Careca tinha uma idade em que todo o corpo ganhava calos, mesmo nos lugares
recônditos. Nunca conseguiu aprender a ultrapassar a nuvem de tristeza com que
nascera. A alegria, que nunca é trazida pelo vento, e que não anuncia a sua
chegada, ouviu-a um dia a chegar, mas foi efémera, por ser um sentimento
delicado. Até mudar de freguesia massacrou-se a ela e à família, quando cantava
e dançava com uma aceleração louca em frente à televisão, nas alturas em que a
mãe tentava ver a “Gabriela, Cravo e Canela”! Tinha vontade de reencarnar na
tia Mercedes, o único membro da família que lhe dera “miminhos na passarinha”,
como costumava contar ao psicoterapeuta, que a auscultava sempre que ia à
consulta. Em pequena dizia que queria ser pastora, depois mudou para bombeira
e, por fim, ficou maluca.
-
Sou a mais explícita, boto sempre o dedo direto nas feridas, - dizia com
frequência esta maluca cheia de nostalgias e amarguras que, quando morresse,
queria ser velada por guardas-noturnos, pelo presidente da república, por
prostitutos, artistas, gigolôs, políticos, chulos, cantores, assaltantes,
tunas, putas, fadistas, e ser cremada:
- Para
não me enterrarem viva. Tudo igual ao da feiticeira Natália Correia, a minha
madrinha do armistício com o Viriato, e sua amante. E quando as cinzas foram
lançadas ao Trancão, o meu amado lerá o poema mais lindo que me escreveu na
Fajã da Porcalhota.
“Numa noite de copos / Com o
meu chouriço rijo / O teu nome escrevi / Com um jato de mijo”.
Constantino
foi lentamente desenvolvendo uma paranoia em cima da esquizofrenia, e até já imaginava
um corno a crescer-lhe no lado esquerdo da testa. Cada vez sentia mais
necessidade de meter sonhos na vida. Tinha desejos negros, vontade de morrer. Fazia
xixi pelas pernas abaixo, cheio de angústias, sempre junto à mesma árvore, com
vontade de levantar a perna esquerda, mas quando tentou, caiu. A paixão
tenebrosa, misturada com demónios vindos do fundo da alma, impeliam-no na busca
de uma verdade ulterior. Por isso citava muitas vezes a frase que Joseph Conrad
escrevera no seu romance “O Coração das Trevas”:
-
“Está escrito que eu teria de assumir até ao limite a minha lealdade ao
pesadelo da minha escolha”! – Como se de uma oração se tratasse.
-
Quem será o cabrão que se anda a lambuzar-se com a minha Lucinda? – Gritou um
dia enquanto defecava, mostrando que estava com um Eu carente de osso.
Uma
noite, depois de lhe terem fechado a sela, uma combinação onírica fê-lo sentir
um cheiro dum flato, mas não era um peido qualquer, era o pum de um dragão.
Olhou para o amigo Viriato, que dormia um sono profundo e pensou:
-
Sacana, queres matar-me com metano, e finges que dormes, estás acordado que nem
um alho. Se não te paro dás cabo da camada de ozono e ficas com a Lucinda
careca!
E
continuou, depois de uma breve pausa contemplativa.
-
Fedes a enxofre, vou-te mandar para a cave, - gritou, vindo dum recanto negro.
Arregalou
os olhos e os dedos agarraram-se ao seu cabelo, era apenas energia pura,
tremia-lhe a voz, estava atestado de ódio. Numa mistura de fúria demoníaca com
cólera divina, não usou azeite a ferver, como costumava fazer Vasco da Gama aos
muçulmanos, mas álcool gamado na enfermaria, e um fósforo, só um fósforo!