miguelbmiranda@sapo.pt
315 estórias

Friday, May 27, 2016

Os Cartonistas

O Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


O dinheiro que o Peidão tinha amealhado, como uma formiga, nos jornais, só lhe chegava para ir passar dois dias à quinta do Zé dos Porquinhos, em Manique, e ele queria ir para o Algarve. Por isso juntou-se ao Milhas e ao Kikas e os três foram labutar para uma fábrica de embalagens da zona, a Novembal. No contrato de trabalho dizia que tinham a categoria de “Cartonistas”, ou seja, “paus para toda a obra”. O Peidão foi destacado para o exterior, dobrar ferro para cima de uma enorme parede de um futuro pavilhão. O Milhas foi para o bem-bom, transportar caixotes de cartão e o Kikas passava o dia na praia, porque entrava de manhã pela porta principal, picava o ponto e saia por um buraco na parte de cima da empresa. Ao fim do dia fazia o caminho inverso e assim permaneceu durante todo o primeiro mês, no fim do qual recebeu o primeiro ordenado e despediu-se de imediato. Quanto ao Peidão, só esteve três dias no topo da fábrica, pois de cada vez que atingia o cume, escondia-se num buraco que lá havia e adormecia. O encarregado bem podia gritar pelo seu nome, mas devido a um “bem-aventurado” problema físico, era coxo, não tinha possibilidades de subir a escada. Por isso teve de o enviar para dentro, juntando-o com o Milhas. Com esta dupla a linha de produção nunca mais foi a mesma. Tinham como tarefa colocarem os caixotes num tapete rolante a um ritmo que permitisse ao colega, que estava na ponta longínqua, ter tempo para recolher o produto e empilhá-lo. Mas surgiu algo que desestabilizou a equipa maravilha. Descobriram que o colega do extremo oposto era o Álhi, o bombeiro mais famoso da vila, que não gostava que o tratassem por esse nome. O ritmo de caixotes colocados passou a ser de tal maneira alucinante, que o Álhi viu-se obrigado a “spintar” durante vários minutos até que desistiu depois de ter sido engolido por dezenas de caixas de cartão a dizer “Skip”. Quando o encarregado se apercebeu do caos, parou a máquina e viu-se obrigado a fazer ajustes. Os “cartonistas” Milhas e Peidão foram mudados de posição, ou seja, passaram para o lugar do Álhi e este foi ocupar o lugar que antes pertencia a estes. E ainda receberam um reforço de peso, um operário mais pequeno que o Trovãozinho, mas com muita vontade de trabalhar, que não era o caso daqueles “meninos de boas famílias”. Enquanto a dupla demorava dez minutos a arrumar uma simples unidade, o Pequeno Polegar fazia-o em rápidos segundos. O que valia era que o ritmo do Álhi estava tão lento, devido ao esforço anterior, que acabou por influenciar as prioridades dos dois membros do Gang dos Meninos Ricos e Caucasianos de Paço de Arcos. Resolveram construir um labirinto com as caixas e quando o concluíram, adormeceram. O coxo passou várias vezes por eles, estava desesperado à procura dos seus “cartonistas”, mas só os conseguiu encontrar no dia seguinte quando se apresentaram para mais um dia de trabalho. Tinha uma nova função para os seus subordinados: a Linha de Etiquetagem! Um rolo de papel passava por uma bacia de cola, era cortado mais à frente e o Peidão e o Milhas colavam as etiquetas nos caixotes. O trabalho era tão árduo, que eles começaram a ficar com calos nas mãos, uma violência inadmissível para estes “meninos de boas famílias”. Depressa descobriram uma maneira de se safarem. Bastava haver um atraso na fase da colagem para que mais tarde ou mais cedo tudo se encravasse e a bacia tombasse do alto do tripé e o chão ficasse forrado de cola, ao mesmo tempo que o monstruoso rolo de papel se enrolava na máquina que o puxava, entrando tudo na redline, sendo necessário carregar no botão encarnado para parar a produção. Isto significava trinta minutos de descanso para os nossos jovens e trabalho árduo para os verdadeiros operários. E mal as máquinas tornavam a roncar, mais tarde ou mais cedo a cena repetia-se. O coxo andava desesperado e tudo só voltou ao normal quando a dupla Milhas e Peidão foram separar tampinhas para uma arrecadação perdida algures numa ponta do Pavilhão. Mal o chefe os deixou sozinhos, descobriram um buraco e adormeceram. Tiveram azar. O Encarregado Geral e o Chefe Máximo detectaram-nos por acaso. O Milhas adormecera com os pés de fora! Agora iriam trabalhar a sério. Devido a serem muito religiosos, os céus ajudaram-nos. O mês chegara ao fim, os salários foram pagos e eles entregaram o papel do despedimento ao mesmo tempo que o Kikas.   

Saturday, May 14, 2016

O Relógio

O Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


Numa noite de Verão o Gang resolveu ir inaugurar um novo espaço de diversão, a piscina do Serapito. O local cheirava a novo e as mudanças da numerosa família estavam para breve, ou seja, o espaço ainda se encontrava vulnerável. A água azulinha convidava a uns mergulhinhos, mas os turistas não vinham preparados para o evento e por isso tiveram de improvisar. Foram todos nus. Todos?! Todos não, o mano mais velho do Citron foi o primeiro a inaugurar as instalações. Caiu no erro de ir espreitar para o fundo da piscina sendo de imediato arremessado lá para dentro. Ficou furioso, dizia que tinha avisado que estava na digestão, talvez da cerveja, mas foi de imediato confrontado com a dura realidade: se tivesse de lhe acontecer algo não era por estar aos berros à procura de um culpado que faria o tempo voltar para trás:
- Paciência, também já viveste muito, - sossegou-o o amigo Pontas.
- É melhor morreres de congestão do que cortado ao meio pelo rápido de Lisboa, como aconteceu com o primo surdo-mudo do João da Quinta, - reforçou o Peidão, outro amigo de longa data.
A festa estava animada, havia “bombas” por todos os lados e montes de terra e palha a alterar o outrora paraíso azul. Até já o “condenado à morte” participava nos saltos, mas todo vestido por causa da digestão. Havia mais água fora do que dentro, a relva acabada de plantar fora engolida pela lama, havia pegadas por todo o chão branco imaculado e os adolescentes carregadinhos de cerveja vertiam águas constantemente, tendo o cuidado de o fazer para dentro dos vasos. A quantidade de cevada descarregada iria com toda a certeza alterar o código genético das futuras rosa vermelhas que, com o choque, passariam para amarelo escuro. Por volta das três da manhã o João Pestana veio buscar os meninos rabinos, chegando muitos deles a casa sem acessórios. No dia seguinte o pai do Serapito, proprietário do espaço privado, teve um ataque de caspa. A piscina parecia mais o lago dos patos da Avenida, havia um cheiro intenso a mijo, e do rijo, e o limoeiro resolvera produzir cuecas, uma delas com marcas profundas, sinal de que o Bajoulo também participara na festa. No chão algo brilhou, era um relógio, a única prova decente. Lembrou-se que tinha deixado um dos filhos a guardar a casa, o mais corajoso, e acordou-o. Confrontou-o com a situação e teve de agarrá-lo de imediato, porque ele ameaçou descer as escadas e matar os prevaricadores.
- Calma filho, já não está lá ninguém.
Mostrou-lhe o que tinha descoberto no chão e o ele provou ao pai que o único mano capaz de ter amigos com cebolas daquelas era o Serapito. Foi de imediato à outra casa confrontar o outro filho com o achado e depois de ele ter feito um checklist mental das manias do gang a que pertencia, chegou à conclusão de que só um é que poderia gastar tão pouco na comprar de um relógio:
- O Peidão, esse relógio só pode ser do Peidão e com toda a certeza que virá buscá-lo.
- Peidão?! Então o menino tem amigos com esse nome?! Não foi essa a educação que lhe dei. Vou reforçar-lhe as idas à missa.
Nesse dia foi abordado pelo suspeito que queria o relógio de volta e estava decidido a ir pedi-lo ao proprietário. Foi um encontro cordial, o jovem afinal não era um pecador, prometeu não participar em mais invasões, aliás não seria mais necessário pois o pai do Serapito tinha-lhe posto o espaço à sua disposição. Reparou que o estranho nome daquele amigo do filho não condizia com a figura angelical que lhe pedira perdão pelo acto anti-social dos seus amigos que ele, como Menino da Luz, tentara evitar mas fora impotente perante a turba de selvagens que lhe tinham passado por cima e arrancado o relógio de pulso. 

Thursday, May 12, 2016

O Dente de Elefante

Comandante Guélas

Série Paço de Arcos


Depois de ter marrado com o descapotável do Chulo do Pimenta, o carro que dobrava ao meio de cada vez que arrancava, visto o proprietário ter-se limitado a serrar o tejadilho, o Bajoulo ficou atulhado de dívidas. Estava no top dos estudantes paço-arcoenses mais endividados da região de Cascais, visto que o Pierre-Pomme-de-Terre nunca chegava a essa situação enquanto o pai teimasse em coleccionar libras em ouro. Só muito mais tarde é que iria ter de se ausentar do país, porque quem andaria atrás dele não seria o Chulo do Pimenta, mas a Interpol. Tornou-se, por assim dizer, num “tio”, com direito a escolta policial e tudo. O Bajoulo tropeçou à noite na solução quando se preparava para recolher aos aposentos: um soberbo dente de Elefante a quem o papá dava lustro todos os dias. Ia-se estatelando no chão devido ao dito cujo e à grade de cervejas que lhe forrava o estômago.
- Amanhã já estás a morar noutra freguesia e o Chulo do Pimenta a chatear outro, – prometeu ao dente, expressando-se meio em português meio em alemão, com um arroto de cevada pelo meio.
Foi até à garagem arranjar espaço para o “canino” na sua Zundapp, cujo motor deveria estar no Algarve junto ao seu legítimo dono. Amarrou ao banco um caixote de fruta e irritou-se quando descobriu que só havia “meio-gordo” no frigorífico.
- Nestas condições deploráveis não consigo gamar…trabalhar, trabalhar. Vou ao “Bachil” buscar um suminho.
Por pouco não se cruzou com o Estudante Focas, o Pilas e o Irmão do Marreco, que iam fazer uma visita de cortesia ao Bakáus, o irmão mais velho. Os turistas bateram, bateram, mas o mano do Bajoulo dormia um sono profundo, sonhando com uma resma de suecas deitadas sobre a sua soberba “Honda 50”. Como não lhes abria a porta, ficaram preocupados com a saúde do luso-alemão. Treparam ao primeiro andar, entraram por uma janela e iniciaram de imediato uma batalha campal com laranjas, na cozinha, mas mesmo assim o Bajulão não acordou. Quando acabaram os citrinos, passaram para as roupas, arremessando-as da janela. Finda a brincadeira , saíram pela porta e foram interceptados pelos gritos estridentes duma das vizinhas, que lhes chamou “ladrões”. Quando o senhor Bajoulo regressou, achou estranho ver as suas cuecas mijonas penduradas no catavento do General e a toalha do bidé a ocupar o espaço reservado à bandeira nacional, mas a sua preocupação estava exclusivamente reservada para o incisivo do Elefante. Iria amarrar o dente à mota, logo após a última ronda do papá, para que no dia seguinte fosse o primeiro a sair para o “trabalho”, ou seja, ir vender o marfim lá para os lados da capital.

Monday, May 02, 2016

Os Botões do 69


O  Comandante Guélas

Série Colégio Militar



Os Meninos da Luz sempre estiveram prisioneiros de um mundo subjectivo, cada aluno, muito mais do que um indivíduo distinto, dizia-se ser uma parcela do grupo, sobre quem pesavam todos os prejuízos, interesses e sentimentos, o ato de um responsabilizava todos. Mas nem sempre era assim! Os ex Meninos da Luz têm uma desenvolvida cultura da memória, cada qual é possuidor de um museu colegial, com várias secções, em que cada aventura tem o seu lugar bem definido. O Colégio Militar tem uma bizarra noção do tempo, por isso representa todas as posições, das mais extremadas, até às mais moderadas, as suas estórias são sempre fantásticas porque foram possíveis, o Menino da Luz caracteriza-se pela mobilidade, é capaz de percorrer grandes espaços em tempo curto, é original, irracional, fantástico, quem está perto sente as vibrações da sua alma, tem fome de liberdade, é rebelde, possui um sentimento de unidade, tem uma boa capacidade de orientação, a consciência do espaço e a possibilidade de o representar de uma forma íntima, uma espécie de GPS existencial: nos anos setenta era o bar da Dallas Cowboy, o Olímpia e Odivelas, enfim, tudo coordenadas com interesses hormonais. Por isso, ao contrário do 136 que diz agora que a ética e a seriedade não são coisas que se ponham por escrito, as estórias do colégio têm de ser escritas para memória futura.
Na Páscoa de 1978 uma ilha do Atlântico nunca mais foi a mesma após a breve passagem destes extraordinários meninos com “tosões de oiro”. O panfleto que lhes deram à entrada do avião militar tinha como título “Visita de estudos dos alunos finalistas à ilha da Madeira”, com as informações básicas sobre a zona. O primo Orelhas (649), que captava as fêmeas por instinto, ficou finalmente a saber, depois de sete anos de estudos, e de várias reprimendas do professor Lufinha, especialista em torcer orelhas em câmara lenta, que não aceitava que um descendente dum ilustre catedrático da faculdade de letras da universidade de Coimbra tivesse comportamentos semelhantes aos de um asno, que tinha sido o João Gonçalves Zarco e o Tristão Vaz Teixeira, os descobridores da ilha de Porto Santo, no ano de 1418:
- Deviam ir com uma fomeca dos diabos, - exclamou, folheando uma “Gina”.
- E no ano seguinte foi a Madeira, que também era deserta. Já deviam ter calos nas mãos! – Retorquiu o Dani (661).
- E para se vingarem dos tempos de carestia encheram a ilha de minhotas e algarvias, e não de alentejanas peludas, - gritou o Cebola (360), dando um carolo ao 299.
- Tomara tu teres no teu colo a Albertina das Mamas Grandes, ou a Dallas Cowboy, - atirou o 649, fazendo referência às senhoras que mais tinham contribuído para a formação humanista de alguns destes rapazes durante o período dos “cinco estudos” de 1976, que os obrigaram a fugas permanentes em direção ao Bairro Alto, onde muitos mudaram o óleo pela primeira vez, ou tentaram mudar, mas a piroca não contribuiu, como aconteceu ao Broche.
Ainda o avião não aterrara e já o 649 estava de cabeça perdida, via-se com o primo 278 a correr pela ilha atrás das suecas da revista, tal como um pastor com as suas ovelhas, num estado de “rebarbamento”, o equivalente a uma overdose de luxúria. Por isso quando desceu as escadas e tocou a pista, em vez de beijar o solo como costumava fazer o papa João Paulo II, inspirou com sofreguidão o ar da ilha, e sentiu o “riberalves” das autótones. Em cada curso havia sempre um filósofo de serviço, e neste caso o pensador chamava-se Ginho, e os neurónios eram tantos que lhe permitiram corrigir vezes sem conta os erros de matemática do professor Fufu que, se não fosse o 61, seria o responsável pelo insucesso escolar de muitos. O Ginho dizia que em todos os cursos havia um gangue, o que provava o quão avançados estavam os Meninos da Luz para a época. O 240 (Rita), o 360 (Cebola) e o 661 (Dáni) encaixavam que nem luvas no perfil comportamental definido pelo camarada, que também atribuíra a alcunha ao 191, não por ele ser “metanocompetente”, mas por ameaçar, na sua posição de chefe de turma no início do curso, “pontapés na peida” a quem o comprometesse na missão impossível de manter trinta crianças fardadas de cotim devidamente formadas e bem comportadas, porque caso não o fizesse seria ele a sofrer as consequências do oficial de dia, cujas probabilidades de ser um psicopata eram grandes. Junto ao aeroporto aguardava-os umas Berliets com lonas, e foi neste tipo de transporte que os levaram para o Regimento de Infantaria do Funchal. Os alunos ficaram em camaratas e os cães e professores na messe de oficiais. E o extenso rol de visitas de estudo, em que eram obrigados a ir fardados, deu início ao conflito.
- Se aparecermos assim num hotel, as miúdas confundem-nos com os paquetes, e só nos convidam a ir até à porta dos quartos levar-lhes as malas, - protestou o 27, atirando o barrete ao chão.
- Se me tivessem dito que isto iria ser uma continuação das aulas, e não uma semana de cama com as suecas, tinha ficado em casa a gozar as férias da Páscoa na metrópole, - insistiu o 207.
Mas havia algo que intrigava um dos cães da região.
- Ó Bolacha, mas os putos que se sentam nas pontas regressam sempre com as calças molhadas à frente, - protestou o camarada do capitão Santola, quando viu a Berliet  regressar ao quartel apinhada de adolescentes vestidos de pinhão, vindos diretamente da Quinta das Cruzes, a morada do Zarco, o Descobridor, que o primo Orelhas , o Cobridor, para impressionar as meninas do Maria Amália que também estavam a visitar a ilha, acompanhadas por outro primo, insistia em dizer ser seu familiar.
- O que é que queres, a rapaziada entra ao domingo à noite e só sai ao sábado à tarde, e só têm a Rosa, a mulher do Patronilha não conta, e ainda por cima vocês têm a Madeira cheia de miúdas iguais às das revistas mais estudadas do Colégio Militar, as “Ginas”, que batem aos pontos o “American Language Course” do Tabi!
Mal sabia o cão do Funchal que tudo se devia ao facto de se deslocarem em Berliet de caixa aberta, tapadas com lonas da guerra colonial, cujos buracos nas extremidades eram a prova da existência de minas em África, que era por onde entrava a água que caia em torrente sobre os veículos à entrada e à saída dos túneis. Por isso já se sentia no ar um clima de “golpe de estado”, porque farda significava veículo militar, e calças molhadinhas, e à civil dava direito a transporte civilizado, com direito a perfume sedutor. Que o digam o 649, o Gordini, o Dáni, o Maneli, e o Teta que numa noite arrancaram para os lados do aeroporto ao encontro das finalistas do Maria Amália. O 601 tinha motorista privado na ilha, um amigo do pai, e tudo porque fizera a instrução primária na região, que o ia buscar diariamente ao quartel, enchendo o carro com rapaziada que era largada nas noites quentes do Funchal. Quando o Primo Orelhas deu de caras com a menina do Maria Amália, sentiu o seu “tosão de oiro” mordiscar-lhe as pernas, desejoso de passar da mão do dono para um lugar mais ao seu gosto, o pote do tesouro, assim lhe pedia o seu pescoço tratado ultimamente com uma violência extrema pelo amo, que o esganava como a um ganso. O estado de exaltação tornou-o imprudente, arrogante, crédulo, cintilante, as orelhas mexiam como as asas de um beija-flor, apalpando a rapariga com o olhar, tirando-lhe o rosto e transformando-a num par de mamas, uma espécie de Albertina, mas com cheiro a Lavanda, e não a Pó de Talco e coiratos. Mas um dia a pacata viagem de finalistas do ano letivo de 1977/78 atingiu o seu zénite em mais uma viagem oficial com farda obrigatória. Ao regressarem do Funchal, e uma vez na camarata, as fardas foram despidas com raiva e atiradas com desprezo para trás de um armário, ao mesmo tempo que alguns atacavam um dólmen com raiva. E o dia seguinte foi o “D”! O aluno que tinha o “número mais vergonhoso do Colégio Militar”, palavras sábias do saudoso 125, o Horrível, o maior engatatão de todos os tempos que dava “oito de seguida sem ver a luz do sol” (sic), atrasou-se para o encontro na parada, comportamento inabitual neste detentor de todos os lacinhos disponíveis no mercado, que esporadicamente mudavam de farda nas ações de caridade da Conferência de São Vicente de Paulo, que incluíam gamanços de bolama no mini mercado junto às cavalariças. Onde estaria o 69? Perdido com alguma sueca mais atrevida que pernoitara no Regimento do Funchal? Com uma ressaca de Sumol de laranja?
- Já estamos atrasados, onde raio é que se meteu o comandante de batalhão? – Protestou o cão Estorninho, o Comandante do Corpo de Alunos que, após a revolução, teve como missão libertar o Colégio Militar do espírito de externato que se instalara, e faze-lo regressar aos tempos áureos da Inquisição.
O ten-Coronel, conhecido pelas “secas pedagógicas”, que numa mocada teve como homenagem a presença do esqueleto de Biologia com uma tabuleta a dizer “uma hora com o secas”, secas estas muito mais violentas do que a clássica estalada em sentido, pressentia de novo um clima de pré-revolução e isso não o agradava, ainda por cima fora das paredes da instituição que tradicionalmente resolvia tudo dentro de portas. O que é que iriam pensar os camaradas da Madeira?
- As visitas de estudo estão a dar cabo deles, - disse baixinho o professor de português, o Nasca, para o colega de Físico Químicas.
O 69 apareceu em camisa, os botões dourados do dólmen tinham desaparecido! O Regimento de Infantaria do Funchal deu ordem de prisão aos “turistas”, até que os responsáveis pela blasfémia se acusassem. E foi aqui que a rapaziada se apercebeu que o mítico “Um por Todos, Todos por Um” tinha ficado no continente, porque houve bufos que entregaram de imediato dois dos autores da blasfémia, que foram separados dos colegas, recambiados para casa e expulsos às escondidas, sem direito ao contraditório e a saber qual a opinião da maioria dos camaradas, para quem tudo não passara de uma inofensiva brincadeira. A medida mexeu com todos os que permaneceram na ilha, e quando alguns ilhéus ousaram meter-se com os Meninos da Luz que arrefeciam o desânimo numa piscina da Matur, um deles teve um ataque de caspa monumental, estilo o do Kebab do Cais do Sodré, que os levou à debandada quando se aperceberam que ia decidido a fazer-lhes a folha de ponta e mola na mão. Só pararam no ponto mais longínquo da ilha, onde se organizaram num grupo maior e partiram em direção ao quartel, numa excursão de vingança. Tiveram sorte, quando chegaram ao aeroporto já o avião militar ia no ar, de regresso à capital!