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315 estórias

Thursday, October 28, 2010

O Bê à Bá do Filete


Camarada Choco 
Aventura 68
 
Além de ter nascido um Desaparafusado bronzeado, o Filete herdou do pai Filipe o “Fil” e da mãe Arlete o “ete”. Depressa a Escola de Aparafusados classificou o novo aluno como “Indigente”e enviou-o via “Correio Azul”, com aviso de recepção, não fosse o carteiro enganar-se e devolve-lo de novo às “Doutoras”. O novo aluno foi recebido com entusiasmo pelos semelhantes, também eles bronzeados, e sujeito de imediato a um conjunto de “praxes académicas tribais”, que também serviram aos técnicos para uma recolha de informações mais aprofundada. E houve um dado que se destacou em relação aos outros: de cada vez que o Filete levava com algum estímulo (palmada, bolada, pedrada, etc.) na cabeça, ouvia-se um eco! A Terapeuta da Fala, a Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo, uma mocinha do Entroncamento habituada a todo o tipo de fenómenos, nem queria acreditar no que ouvia:
- É um barulho a espaço vazio, o Filete parece ter uma cabeça oca, – disse, com um ar desanimado.
- O Filete é um “Calhau com Olhos”, - retorquiu o Stor Pobre, especialista em Pinos e Cambalhotas, com muitos anos de Desaparafusados no lombo, e também ele já com folgas nos carretos. – A técnica mais apropriada, caso tu pretendas tentar pôr o aluno a ler, passa pelo uso intensivo da “Banheira do Porres”.
- “Banheira do Porres”?
- É exclusiva aqui desta escola, e muito mais eficaz que a “Sala de Snozelan”, – explicou o Stor Pobre fazendo o exame final ao Filete, um soberbo “Toque Pedagógico” que teve como resposta “cinco ecos e um baralhar de olhos sem Jackpot” (parágrafo 2, ponto C, alínea A, da Escala Pedagógica Universal de Granitos e Afins - EPUGA).
- Estranho, - disse a Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo. – Numa me ensinaram isso na Faculdade.
- Nós estamos sempre à frente dos “Doutores” pelo menos vinte anos, – atirou de rajada o Stor Pobre, empunhando o panfleto de apresentação da famosa “Escola para Desaparafusados da Venteira”, com o Porres, actual Presidente Honorário, ainda de fraldas, e a brincar ao Lego com o Choco, ao mesmo tempo que reconfirmava tudo com um novo “Toque Pedagógico”, cujo eco acordou o colega do Filete de nome Paulo Bento.
A Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo não se convenceu dos novos métodos Pedodesaparafusados e recorreu aos clássicos. Agarrou numa bola azul de plástico e perguntou ao Filete:
- Querido aluno, que cor é esta?
O “Indigente” (classificação do Ministério), “Calhau com Olhos” (classificação EPUGA), olhou demoradamente para o esférico, rodou os glóbulos oculares dezenas de vezes, coçou a cabeça e por fim abriu a boca…mas não saiu nada.
- Que cor é esta, Filete? – Perguntou de novo a Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo, aumentando o volume da voz e colando a bola azul entre os olhos do “Indigente” (classificação do Ministério) ou “Calhau com Olhos” (classificação EPUGA).
O comportamento recorrente do Filete não alterou nem uma vírgula, encarou demoradamente o esférico, como um boi para um palácio, rodou os olhos, arranhou o coco, abriu a boca e respondeu com um ar triunfante:
- Verde!
- O que é que se passa aqui? – Perguntou o Cabo Pilas aparecendo por detrás de uns cabides.
- Ainda bem que estás aqui, Chiquinho, - disse a Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo, tocando-lhe no ombro. – Podes-me dar a tua opinião acerca das capacidades deste aluno?
Por momentos fez-se um silêncio ensurdecedor. O Cabo Pilas olhava para a mão da pequena com um ar ameaçador, e também ele rodou os olhos e coçou, não o coco, mas o baixo-ventre. Por fim falou:
- Desde quando é que uma Terapeuta da Fala estagiária se dirige nesse tom a um Pedopedagogo do meu tamanho. “Chiquinho”?!!
A Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo tirou a mão tão depressa, que todos pensaram que se tinha queimado. Se desejava um parecer do Dr. Cabo Pilas teria de se dirigir à secretaria e pedir por escrito. Optou por acompanhar o Stor Pobre na “Banheira do Porres”. Quando entrou no espaço pedagógico o nevoeiro era tanto que nem se apercebeu que o colega do Filete, o Buda, acabara de fazer uma portentosa mija que acertara em cheio nas calças de ganga da Mosca Morta, a mais antiga funcionária da Escola de Desaparafusados. A boiar estavam inúmeras bolas de várias cores, o Filete sentado na rampa, o Coxo Mais Rápido da Brandoa no fundo à caça de um dinossauro e um bacalhau de molho dentro de uma bóia chinesa, rodeado de chouriços. Como técnica apurada começou de novo a intervenção, mostrando ao Filete uma bola vermelha:
- Que cor é esta?
O mesmo do mesmo: rodou os olhos, arranhou o coco, abriu a boca e respondeu com um ar triunfante:
- Azul!
E assim continuou para desespero da Prima da Afilhada da Doutora Sem Canudo, que julgava que a água a entrar pelos ouvidos do Filete iria transformar o caroço de azeitona, que fazia a vez de Cérebro, numa abóbora do Entroncamento, permitindo ao “Indigente” (classificação do Ministério), “Calhau com Olhos” (classificação EPUGA) debitar todas as cores do Arco-Íris e mais algumas. Quando o Stor Pobre se apercebeu do desespero da colega, aproximou-se do Filete e teve uma humilde conversa junto à sua orelha. Passados alguns segundos o sucesso educativo concretizou-se:
- VERMELHA!



Wednesday, October 20, 2010

Cabos à Solta


Comandante Guélas
Série Paço de Arcos



Quando a pátria os chamou gritaram “presunto”…perdão…”presente”, e cada um se apresentou na sua unidade: o senhor Carlos Ponta recebeu a boina preta da Cavalaria e o senhor Bigornas uma boina castanha dos “caga-e-tosse”, e porque tinham sido muito aplicados no Liceu de Oeiras foram ambos graduados em soberbos cabos. Por esta altura o Conan Vargas era boina verde, e passava os dias a tentar impressionar todas as fêmeas da Costa do Estoril contando as suas arriscadas missões, que na verdade estavam reduzidas a descascar batatas, às rodelas, em Tancos, uma vez que tinha ido para a especialidade de pára-cozinheiro; noutro canto do país o Zé Fotógrafo ostentava uma invejosa boina vermelha e, na praceta, para impressionar a Mula do Ártico, gritava bem alto “MAMA SUMAE”de cada vez que tinha sede, pois para ele o lema queria dizer “Mamã dá-me um sumo”. Mas também este estava ligado à gastronomia, mais propriamente às batatas em palito, na Amadora.
O Cabo Carlos Ponta foi colocado aos comandos da gloriosa PE, mais propriamente no Esquadrão Vermelho, de código “Tigre”. Este indomável paçoarcoense era o felino nº 28, senhor todo poderoso de um jipe Land Rover com motorista e dois ordenanças, uns Cro-Magnon vindos directamente de Tábua. E a juntar a tudo isto, e por uma questão de prestígio, o “Tigre 28” fazia sempre questão de montar em pêlo todas as éguas que lhe aparecessem pelo caminho, não fosse ele um grande senhor da Cavalaria paçoarcoense. E foi numa das incursões pelas zonas mais nobres de Lisboa, o Intendente, ao som de uma sonora “ópera-bufa”, porque o rádio a bordo não debitava música, que se deu o encontro de dois titãs de Paço de Arcos.
- Alto e pára o baile, vamos recolher um VIP.
No passeio estava o cabo Bigornas.
- Vai lá para trás, dá lugar ao teu superior hierárquico, - ordenou o “Tigre 28” ao ordenança que ia ao seu lado.
- Mas, meu comandante Pontas, ele não passa de um “caga-e-tosse”, enquanto nós somos uns boinas pretas, - refilou o soldado.
- “Caladinhos que o pessoal de Paço de Arcos está acima de todas as raças, um soldado cassanho de Paço de Arcos vale mais do que qualquer um boina preta ou mesmo do que um general de Cavalaria” (sic).
Os tempos não eram para brincadeiras, a noite anterior tinha sido longa, o PRP-BR da ex-terrorista Carmo e agora amiga dos gordos, andava à solta, uns dias antes a embaixada da Turquia fora visitada por uns arrebentas, e os “Tigres” tinham dado de caras, lá para os lados de Camarate, com um paiol abandonado, G-3 encostadas à parede, e as portas de acesso ao material escancaradas, talvez para sair a humidade. E quando os valentes guardas apareceram, em tronco nu, com franguinhos e cervejolas debaixo dos braços, adquiridos na zona fina da Musgueira, explicaram ao superior hierárquico Cabo Carlos Ponta que devido a estarem famintos, e para evitarem baixar o nível de atenção na defesa intransigente da pátria amada, tinham decidido em RGS (Reunião Geral de Soldados) adquirir umas buchas.
Assim,o glorioso Cabo Bigornas dos “caga-e-tosse” entrou para o banco da frente, sentou-se junto do seu colega Cabo Carlos Ponta de Cavalaria e, com motorista ao volante e seguranças atrás, passearam alegremente, sentindo com prazer o cheiro a maresia do local.

Friday, October 15, 2010

Fangiovargas



Comandante Guélas

Série Paço de Arcos

 
Há certas histórias que devem repetidas, repisadas, analisadas com mais pormenor, para assim compreendermos as motivações psicológicas dos elementos deste original gang caucasiano de Paço de Arcos. E uma delas passou-se com um monstro da cultura paçoarcoense, o hilariante Conan Vargas. Quando o ex-cozinheiro pára-comando recebeu a cartolina vermelha com o símbolo da DGV nem queria acreditar que era verdade.
- Já posso guiar em tudo o que mexe, desde o triciclo do João da Fruta até ao Fórmula 1 do Niki Lauda ….incluindo as mulheres deles - disse, tirando o documento oficial da República de Portugal de dentro do livro da tabuada dos dois, e mostrando ao seu colega de carteira, o Ánhuca, que estava mais entretido a esmagar os piolhos que trouxera da capoeira do Manelinho do Estrume, depois de uma noite bem passada com uma das ovelhas.
Estava decidido, à noite iria impressionar as queques lá para os lados do Santini, não com o velho Ford Escort LA-91-40, mas sim com muito mais estilo, o novinho Renault 16 BU-13-78, que a mãe acabara de adquirir. E a desculpa foi fácil, tinha um exame de Química Iónica à noite no Liceu de S. João do Estoril e esquecera-se de pôr gasolina no seu bólide, e o comboio estava parado porque o primo surdo-mudo do João da Quinta tinha decidido atravessar a linha no momento em que passava o rápido vindo de Lisboa e olhado para o lado do pára em todas de Cascais, acabando dividido em dois, o surdo para um lado e o mudo para o outro. Mas antes passou pelo Picadili e convidou os amigos mais parecidos com estrangeiros, estilo suecos, ou seja, o Bigornas, o Bajoulo e o Escoto. Assim, as queques olhariam logo para o Renault e, parafraseando o irmão com cara de papagaio do Bajoulo, “ia ser phoder à cagão”! A entrada na praceta foi feita em estilo “todo boneco”, com o braço de fora, cigarrito na ponta da boca e o agora saudoso cabelo ao vento, tudo isto acompanhado com um chiar de pneus estilo Charles Bronson. O Conan Vargas já quisera ser pastor, depois bombeiro, tropa especial, mas nesta altura estava bastante baralhado. O Bigornas assistiu a toda a cena, porque insistia em tomar o café na esplanada, onde uns dias antes fora detido pelo Chefe Bigodes, depois de se ter recusado a fugir para dentro do café após o Focas ter gritado “ó chui” quando o carro patrulha passou. O Bajoulo nem se mexeu, porque mesmo que quisesse o porte atlético já não lhe permitia grandes aventuras. O Escoto, o adolescente mais parecido com uma girafa, gritou “temos Fangio”, não se apercebendo que o que dissera entrara como uma seta no Super-Ego do Conan Vargas, mesmo que a resposta tenha sido uma aceleração em seco, cujo fumo acertou em cheio na cara do Trovão, que ia a passar. Antes de descolar, porque era de um voo que se tratava, passou a mão pela cabeça para verificar se ainda tinha cabelo e fez um checklist das curvas da vila que iria fazer no dia seguinte: curva do Manel da Leitaria, Curva do Trambolho que seria mais tarde batizada Curva da Rosa Cambalhota, em memória do Pilas, do Vélinho e do Serapito, que nunca mais seriam os mesmos.  Sentiu então um impulso, um ímpeto, um incitamento, e o Renault16 de cor branca, BU–13-78, saiu a guinchar. O Bigornas, que ia no banco de trás, ouviu o barulho da mioleira do condutor a ferver, estilo fumarola e teve um pressentimento terrível: no dia seguinte poderia não haver a fila interminável à porta da Jomarte. E ainda por cima tinha uma surpresa para os clientes: não um novo livro de quadradinhos que demorava sempre meio-dia a ler, mas sim um Curso Completo de Gestão. Quem fosse para a fila no primeiro dia do mês seria atendido no dia 31 às 14H00! Antes de rumar definitivamente, e pela última vez, a Cascais, o Renault 16 de cor branca, BU-13-78, guiado pelo Fangiovargas, cruzou-se com o Opel 1200 Caravan do Fangiocoelho, Menino Élinho para os amigos, que o tinha gamado pela centésima vez, e atingira agora os 120 junto ao Manuel da Leitaria. Quando entrou na marginal, na cabeça de Conan Vargas já rodava outro filme, imaginava-se no circuito do Mónaco ao volante de um Mc Laren, e quando ultrapassou o senhor Manuel da Fruta, que ia calmamente para casa no seu triciclo com caixa à frente, viu o Emerson Fitipaldi no seu Lótus, a seguir apareceu o Velinho e o Mini Clubman FF-62-88, que tinha ido às boxes para beber um sumo de cevada , como habitualmente, e que fazia a vez do Niki Lauda e do seu Ferrari. Na recta da praia de Carcavelos, já com fumo a sair das orelhas, ultrapassou o Serapito e o seu Opel Kadett EU-13-12, e avistou o Peugeot 304 paçoarcoense BM–18-35 a fazer a vez do James Hunt, mas ultrapassar o Pilas era uma tarefa quase impossível, apesar de ir só a 160 Km/h. O Renault 16 de cor branca, Bu-13-78, guiado pelo ex pára-cozinheiro de nome Conan Vargas, agora travestido de Fangiovargas, entrou a ganir e a rodopiar na curva do sanatório, completamente desequilibrado devido ao facto do Bigornas e a sua volumosa cabeça, que lhe dava o nome, estarem colados a um extremo do banco traseiro. Quando a lateral do motor bateu no poste, com um valor de 30 contos, o Escoto amolgou o tecto com a cabeça e dos olhos do Zé do Fotógrafo saíram vários flash multicolores, enquanto que o Conan Vargas gritava a tabuada dos 3 (3x1=4, 3x2=8, 3x3=15…), acompanhada de ratés de origem indeterminada. Mais uma volta e nova porrada, desta vez no muro e com o poste no encalço do carro. Aqui o Bigornas deixou de ter dúvidas e preparou-se para o mergulho final no mar, agarrando com sofreguidão a pesada tola, que o iria arrastar, com toda a certeza, para o fundo escuro do oceano, tal como uma poita. Seria o fim da Jomarte e de tudo o que ela significava para a Praceta. Mas contra todas as leis da física, o Renault 16 de cor branca e matrícula BU-13-78 ficou colado à parede, perpendicular, e apanhou com o pesado lampião na zona do motor. Nem um arranhão sofreram estes garbosos paçoarcoenses, que acabaram a noite a chupar no Santini!




Monday, October 11, 2010

Fangiocoelho



Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
O Menino Élinho nasceu com um sonho entranhado, em que se via sentado ao volante dum Porsche Carrera, tendo acrescentado mais tarde à lista um soberbo Opel Manta 1900. Assim, acelerava em tudo onde se metia, desde o carro a pedais até às máquinas de flippers do Manuel da Leitaria, tendo gripado várias. Muitas foram as vezes em que o que o Professor Coelho deu de caras, não com a tabuada, mas sim com desenhos de Ferraris. O seu corredor favorito era da terra e dava pelo nome de Pinguim. O irmão do Pingalim corria em duas rodas, “no autódromo do Estoril, e por convite” explicava, e para não deixar dúvidas mostrava sempre as cartas que lhe eram enviadas, com selos nacionais e remetentes estrangeiros, pormenores que só um chato como o Carlos Ponta ousava denunciar. Assim, para o Menino Élinho o Pinguim era um modelo, estilo Elvis Presley, que era impossível igualar, a não ser que a modalidade competitiva fosse outra: as 4 rodas! Já se via na Feira Popular em parceria com o Pinguim numa dupla imbatível e famosa, um numa mota e outro num Ferrari, dentro do Poço da Morte, ambos vestidos com fatos de leopardo e máscaras do Zorro. E foi numa destas ocasiões que as aulas da Escola do Coelhinho tiveram de ser interrompidas: o Menino Élinho fizera um desenho, em vez da tabuada dos 3, de dois artistas vestidos de tigre à porta do Café do Papagaio! O Professor Coelho fora obrigado a ausentar-se do estabelecimento de ensino para ir falar com o padre, alegando que o jovem paçoarcoense deveria estar possuído pelo demo, pois o desenho, além de pornográfico, atentava contra a moral e os bons costumes da vila, pois mostrava dois meninos muito amigos com vestidos femininos. Mas, contra tudo o que era de esperar, o clérigo mostrou um interesse guloso em conhecer os jovens, e o Professor Coelho fugiu assustado para a toca, que já estava num rebuliço tão grande, que o tecto da Papelaria Dani ameaçava ruir a qualquer momento. O tempo passou e o Menino Élinho cresceu, muito à conta das batatas fritas da Dona Rosa, vendidas em saquinhos compridos de papel encerado, produzidas na fábrica “Pim Pam Pum” na Avenida, e das “Bolas de Berlim” transaccionadas pelo Senhor José na praia, e guardadas com carinho na sua caixinha branca de duas gavetas. Mas o sonho nunca esmoreceu, e já crescido andava sempre a acelerar no Opel 1204 Caravan do pai, pensando estar no seu eterno Porsche Carrera, muitas vezes substituído por um Opel Manta 1900, conforme a alucinação do momento. Mas para ter acesso ao Opel Caravan teve de fazer uma cópia das chaves e ia busca-lo sempre à noite quando os pais já estavam recolhidos e convencidos de que o seu Menino Élinho tinha obedecido ao “Vamos Dormir” da RTP. Nem tudo foram favas contadas, pois muitas foram as ocasiões em que ao regressar a casa o Fangiocoelho deu de caras com o lugar ocupado por outro carro. Nestas ocasiões a manhã do pai nunca era pacífica, pois o senhor jurava que tinha estacionado o carro ali e ele estava acolá. “Estás a fazer confusão”, explicava de imediato o filhote, todo preocupado. O ponto alto desta preciosa carreira atingiu-o numa certa noite no Largo do Jardim, às 4 horas da manhã, na companhia do Maia e da Tina. Andava a mostrar aos amigos o seu próprio bólide, quando o casal de pombinhos que o acompanhava lhe pediu para os deixar dar uma volta sozinhos, um possível ensaio para a vida futura de casados. O menino Élinho saiu do carro, puxou de um cigarrito, e foi logo encadeado pela figura mítica do neto do Bruce Lee, o Kovac’ Olhões, trazendo-lhe à memória a visita de cortesia que anos antes fizera com guerreiros amigos à barraca dos gelados ali tão perto. Nem ouviu o chiar dos pneus, sinal de que o Maia tinha colado o acelerador ao chão do bólide e a sua Tina às costas do banco. Quando o carro passou por ele a deslocação do ar apagou-lhe o cigarro, mas o Kovac’ Olhões era mais forte do que o vento, e por isso o Menino Élinho nem se apercebeu dos pedidos de socorro do seu querido pópó. Mas um barulho infernal trouxe-o de novo à realidade. Foi quando o Maia se despistou e entrou pelos caixotes de lixo que estavam em frente da Sede do Real Clube de Paço de Arcos.
- Até a traseira do carro empinou, - explicou a Tina, ao mesmo tempo que tentava endireitar o vinco do pára-choques frontal.

Sunday, October 10, 2010

O Submarino III


O Comandante Guélas
Série Paço de Arcos
 
A Regata da Açorda

 
O quotidiano da tripulação do “Submarino” não é assim tão normal como pensamos. O comandante da embarcação ficara toda a noite a preparar a estratégia para a regata, empunhando um candelabro com velas, de olhos fixos no retrato do Patrão Lopes, a porta de entrada do seu espírito sonhador. Boacara sempre tivera uma paixão bela, simples e frágil por aquele lobo-do-mar com estátua em Paço de Arcos. Estava agora num trapézio sem rede, assinava a sangue e na primeira pessoa, porque pretendia uma sublime transformação dos seus homens, exigindo-lhes agora o quarto lugar, a contar de cima, numa regata de vinte e sete, em vez do habitual primeiro, a contar da cave. Naquela noite viu universos inteiros de regatas, e foi com convicção que na manhã seguinte se dirigiu à tripulação alinhada no convés, comunicando-lhes mais por gestos do que por palavras. Discursou com uma fúria tão feroz, que nem reparou nas grades de sumo de cevada que entravam clandestinamente no saco do soro do velho Saul, directamente para o beliche do Mac Macléu Ferreira , uma espécie de Poppey, que comia lulas recheadas em vez de espinafres. No momento da largada a voz subiu-lhe com insistência, persistência e resistência, chegando a ameaçar encerrar a tripulação no convés com as cuecas do Bajoulo, caso não trouxessem para a Marina de Oeiras um certificado a atestar o quarto lugar, não tendo no entanto reparado no riso fininho da tripulação, e no ar embasbacado do velho Saul, que tinha acabado de engolir uma carica, arrancada apressadamente com a dentadura.
- Hoje as nossa preferências não são o habitual convívio no convés, mas sim o quarto lugar, - disse, ao mesmo tempo que alguém dava início ao esquentamento duma açorda que entrara clandestinamente no Submarino.
- Comandante Boacara, hoje trouxe uma surpresa, uma refeição energética que não vai deixar a tripulação adormecer, quebrando-se assim a tradição destes lobos-do-mar.
- As minis estão proibidas a bordo, e tudo com elas relacionado, como “Galinha com Cerveja”, “Pato Bock”, “Cadelinhas embebidas em Tinto”, “Gelado de Rum”, alimentos anti-regata. – Gritou o proprietário do Submarino, espreitando com raiva para as mochilas dos amigos.
- Calma patrão, isto é uma simples açorda feita com pão, - explicou o Velho Saul, ao mesmo tempo que tomava uma pílula energética.
- E o pão foi embebido em quê?
- Água, só água!
- E açorda é condimentada com quê?
- Piripiri.
- Piripiri, um afrodisíaco? Nem pensar. Para mastro basta-me o do barco, não preciso de canas da índia, - gritou, colando a boca aberta na testa do Velho Saul, deixando sair uma tempestade inesperada, brilhante, veloz e aterradora, como se fosse, não do domínio do ar, mas do seu interior obscuro.
O grito apanhou o marujo Mac Macléu Ferreira a meio do sono, na precisa altura em que enchia com a boca uma “Sereia Acompanhante”, da marca “Use e Abuse”, tendo-se precipitado do beliche para anões a ele destinado, onde dormia com tudo dobrado, batendo com estrondo no fundo do Submarino, que fez uma volta de 180º. Foi por isso que o Chefe Máximo do Submarino achou estranho cortar a meta três horas antes e em primeiro lugar, com a tripulação a festejar o feito heróico, só comparável à chegada do Pedro Álvares Cabral ao Brazil, também ele vítima de uma açorda traiçoeira. Mas do Submarino espera-se tudo, e a atracagem foi diferente de todas as outras. Mac Macléu Ferreira foi incumbido de saltar para a doca com um cabo na mão, mal a proa do navio passa-se à vertical da primeira madeira, evitando assim que o mesmo fosse marrar mais à frente. Ao nosso herói das lulas recheadas faltava um pormenor: as lunetas com 5 dioptrias cada e uma barriga atestada de açorda e minis clandestinas. Saltou antes, muito antes, logo à entrada da Marina de Oeiras, que estava atestada de tios e de tias, e ficou preso na corda, pendurado com a cabeça a roçar na água e uma catrefada de Robalos no seu encalço.